Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019


A HISTÓRIA CLÍNICA 


DO REI D. JOSÉ



DESCRITA 


PELO MARQUÊS DE POMBAL


 Júlio Dantas, escritor, político e médico, dedicou vários artigos às doenças que afetaram os monarcas da dinastia de Bragança. Entre eles, é notável o estudo que dedica ao “síndroma glosso labiado do rei D. José”. Trata-se da paralisia lábio glossofaríngea, provocada por lesão dos nervos cranianos IX,X e XII.

                    D. José
O que empresta um interesse excecional a este trabalho é o facto de se basear num manuscrito do Marquês de Pombal, intitulado «Relação compendiosa do que se tem passado e vae passando na enfermidade d`El-Rei, meu Senhor». Escrito sob a forma de diário, no período que decorre de setembro de 1776 a janeiro de 1777, ilustra, numa inesperada exuberância de pormenores, o relato da última doença do rei D. José. (Dantas). O Grande Marquês elabora uma história clínica plena de argúcia, de capacidade de observação e de objetividade que não se encontra com facilidade em registos clínicos da época.

D. José, por volta de 1775, sofria de úlceras nas pernas. Eram «chagas calosas e duras», que «se haviam feito como hereditárias nos senhores da casa sereníssima de Bragança».


        Marquês de Pombal

No final de setembro de 1776, quando Pombal começa a escrever a sua «Relação compendiosa», o rei está melhor das úlceras, mas tem as penas secas, atrofiadas. É sujeito, primeiro, a banhos nas Alcaçarias. Como as chagas recidivam, é tratado com «cicatrizantes» e «incarnativos». O Marquês informa que os médicos aplicam nas úlceras do rei um unguento de fezes de ouro, alvaiade e vinagre. Dantas acha que deveria ser o triapharmacum, ou «unguento nutrido», também chamado «unguento áureo», composto de fezes de ouro (protóxido de chumbo), vinagre forte e óleo rosado, a que teria sido associado o alvaiade, utilizado na época em diversos unguentos cicatrizantes. Dias depois, as úlceras estavam fechadas e as pernas do rei «enxutas e secas».

A etiologia das reais úlceras é desconhecida e a sífilis é sempre mencionada na discussão. Tratava-se de úlceras antigas, de muitos anos.
A seguir a uma infeção cutânea acompanhada de febre, iniciada a 1 de novembro de 1976, começou a «esboçar-se o síndroma paralítico que daí a pouco há de dominar a situação patológica do rei. Este síndroma, que se estabelece insidiosamente, sem ictus apoplectiforme, e que durante cerca de quatro meses se vai definindo, completando e agravando, até determinar a morte por síncope ou por asfixia, é descrito pelo marquês de Pombal com a mais inesperada clareza nas poucas folhas da Relação Compendiosa» (Dantas):
Manifestou-se, logo nos dias 4,5 e 6, um tealismo ou salivação extraordinária, que, trazendo consigo um grande impedimento dos queixos, e na língua, privou o dito senhor da articulação das palavras, sem poder pronunciar alguma que fosse percetível.
Acresceu ainda a tudo o referido, de 6 a 7 de novembro, o sintoma de umas tão fortes convulsões na perna e no braço do mesmo lado esquerdo, que os médicos julgaram já estar o dito senhor atacado de uma paralisia: o que com estes tristíssimos motivos pediu a religiosíssima piedade de sua Majestade o sagrado Viatico, que se lhe administrou…
Tinha porém sobrevindo o sintoma de um escarro detido na garganta, que os médicos (naturalmente espavoridos como pequenos homens à vista de tão grande senhor) temeram que fosse estertor…
… Nos outros dias que se têm seguido, veio a descobrir-se que o escarro, que antes se havia suposto, não era um escarro; mas sim uma convulsão na garganta, tão forte e rebelde que, apesar de todos os remédios, impedia a deglutição quase inteiramente; ou de sorte que sua Majestade não tem podido engolir: nem alguns bocados de uma sopa fervida; nem de um gigote igualmente miúdo e suave; nem alguns sorvos de água; sem uns grandes esforços e sem um grande aperto de respiração tal, que o tem feito parecer que sufocava. 
D. José sobreviveu três meses à doença. Não foi autopsiado.
    Segundo Pombal o rei não sofreu a menor perturbação de cabeça. Não existiam paralisias dos membros. Terão ocorrido algumas atrofias musculares nas pernas, onde tivera úlceras.  
A salivação parecia extraordinária porque a disfagia impedia o rei de engolir a saliva. Privado da articulação das palavras pela disartria, o rei emitia apenas sons inarticulados. Tem de servir-se de pena de lápis para determinar o que convêm ao arranjo da sua consciência. A paralisia do palato e da faringe permitia a entrada de alimentos na laringe, determinando episódios de sufocação.
Apesar da eloquência do Marquês de Pombal na descrição da doença, não é possível, no caso do rei D. José, distinguir a paralisia bulbar da pseudobulbar. A diferenciação faz-se pelo maior grau de atrofia dos músculos inervados pelos pares cranianos baixos na forma bulbar. Quanto às convulsões jaksonianas, não integram habitualmente os quadros de paralisia bulbar e pseudobulbar, levando a supor que as lesões encefálicas que atingiram o rei tinham também localização cortical.
A paralisia bulbar ocorre na esclerose lateral amiotrófica, que raramente mata tão depressa e produz geralmente atrofias musculares acentuadas e acompanhadas de fasciculações, que não são descritas. As paralisias pseudobulbares podem ser provocadas por lesões cerebrais vasculares bilaterais, envolvimento por sífilis das artérias cerebrais, tumores e quistos cerebrais, esclerose múltipla, meningite tuberculosa e aneurismas do tronco basilar.
Não sou capaz de propor uma etiologia credível para a doença que levou à morte o rei D. José I. Não podemos, contudo, esquecer que as paralisias começaram três dias após uma infeção cutânea acompanhada de febre, o que faz pensar numa meningoencefalite, ou num abcesso cerebral com localização bulbar.


Bibliografia
                   Dantas, Júlio. Dantas, Júlio. 1914. “O síndrome glosso labiado 
                   de D. José”, Academia das Sciências de Lisboa, Boletim da 
                   Segunda classe; Actos e pareceres, estudos, documentos 
                   notícias,  Volume VII, 1912-1913, pg 339-350, Coimbra: 
                   Imprensa da Universidade.

                   Haymaker, Webb. Bing`s local diagnosis in neurological diseases. 
                   1969. Saint Louis: The C. V. Mosby Company.

                   Merritt, Houston. A texbook of Neurology. 1973. Philadelphia: 
                   Lea & Febiger.



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