A HISTÓRIA CLÍNICA
DO REI D. JOSÉ
DESCRITA
PELO MARQUÊS DE POMBAL
Júlio
Dantas, escritor, político e médico, dedicou vários artigos às doenças que
afetaram os monarcas da dinastia de Bragança. Entre eles, é notável o estudo
que dedica ao “síndroma glosso labiado do rei D. José”. Trata-se da paralisia lábio
glossofaríngea, provocada por lesão dos nervos cranianos IX,X e XII.
D. José
O que empresta um interesse excecional a
este trabalho é o facto de se basear num manuscrito do Marquês de Pombal,
intitulado «Relação compendiosa do que se tem passado e vae passando na
enfermidade d`El-Rei, meu Senhor». Escrito sob a forma de diário, no período
que decorre de setembro de 1776 a janeiro de 1777, ilustra, numa inesperada exuberância de
pormenores, o relato da última doença do rei D. José. (Dantas). O Grande
Marquês elabora uma história clínica plena de argúcia, de capacidade de
observação e de objetividade que não se encontra com facilidade em registos
clínicos da época.
D.
José, por volta de 1775, sofria de úlceras nas pernas. Eram «chagas calosas e duras», que «se haviam feito como hereditárias nos
senhores da casa sereníssima de Bragança».
Marquês de Pombal
No
final de setembro de 1776, quando Pombal começa a escrever a sua «Relação
compendiosa», o rei está melhor das
úlceras, mas tem as penas secas, atrofiadas. É sujeito, primeiro, a banhos
nas Alcaçarias. Como as chagas recidivam, é tratado com «cicatrizantes» e
«incarnativos». O Marquês informa que os médicos aplicam nas úlceras do rei um
unguento de fezes de ouro, alvaiade e
vinagre. Dantas acha que deveria ser o triapharmacum, ou «unguento
nutrido», também chamado «unguento áureo», composto de fezes de ouro (protóxido
de chumbo), vinagre forte e óleo rosado, a que teria sido associado o alvaiade,
utilizado na época em diversos unguentos cicatrizantes. Dias depois, as úlceras
estavam fechadas e as pernas do rei «enxutas e secas».
A
etiologia das reais úlceras é desconhecida e a sífilis é sempre mencionada na
discussão. Tratava-se de úlceras antigas, de muitos anos.
A seguir a uma infeção cutânea
acompanhada de febre, iniciada a 1 de novembro de 1976, começou a «esboçar-se o
síndroma paralítico que daí a pouco há de dominar a situação patológica do rei.
Este síndroma, que se estabelece insidiosamente, sem ictus apoplectiforme, e
que durante cerca de quatro meses se vai definindo, completando e agravando,
até determinar a morte por síncope ou por asfixia, é descrito pelo marquês de
Pombal com a mais inesperada clareza nas poucas folhas da Relação Compendiosa» (Dantas):
Manifestou-se, logo nos dias 4,5 e 6,
um tealismo ou salivação extraordinária, que, trazendo consigo um grande
impedimento dos queixos, e na língua, privou o dito senhor da articulação das
palavras, sem poder pronunciar alguma que fosse percetível.
Acresceu ainda a tudo o referido, de 6
a 7 de novembro, o sintoma de umas tão fortes convulsões na perna e no braço do
mesmo lado esquerdo, que os médicos julgaram já estar o dito senhor atacado de
uma paralisia: o que com estes tristíssimos motivos pediu a religiosíssima
piedade de sua Majestade o sagrado Viatico, que se lhe administrou…
Tinha porém sobrevindo o sintoma de um
escarro detido na garganta, que os médicos (naturalmente espavoridos como
pequenos homens à vista de tão grande senhor) temeram que fosse estertor…
…
Nos outros dias que se têm seguido, veio a descobrir-se que o escarro, que
antes se havia suposto, não era um escarro; mas sim uma convulsão na garganta,
tão forte e rebelde que, apesar de todos os remédios, impedia a deglutição
quase inteiramente; ou de sorte que sua Majestade não tem podido engolir: nem
alguns bocados de uma sopa fervida; nem de um gigote igualmente miúdo e suave;
nem alguns sorvos de água; sem uns grandes esforços e sem um grande aperto de
respiração tal, que o tem feito parecer que sufocava.
D. José sobreviveu três meses à doença. Não foi autopsiado.
Segundo Pombal o rei não sofreu a menor perturbação de cabeça. Não existiam paralisias dos membros. Terão ocorrido algumas atrofias musculares nas pernas, onde tivera úlceras.
Segundo Pombal o rei não sofreu a menor perturbação de cabeça. Não existiam paralisias dos membros. Terão ocorrido algumas atrofias musculares nas pernas, onde tivera úlceras.
A
salivação parecia extraordinária porque a disfagia impedia o rei de engolir a
saliva. Privado da articulação das
palavras pela disartria, o rei emitia apenas sons inarticulados. Tem
de servir-se de pena de lápis para determinar o que convêm ao arranjo da sua
consciência. A paralisia do palato e da faringe permitia a entrada de
alimentos na laringe, determinando episódios de sufocação.
Apesar
da eloquência do Marquês de Pombal na descrição da doença, não é possível, no
caso do rei D. José, distinguir a paralisia bulbar da pseudobulbar. A diferenciação faz-se pelo maior grau de atrofia dos
músculos inervados pelos pares cranianos baixos na forma bulbar. Quanto às
convulsões jaksonianas, não integram habitualmente os quadros de paralisia
bulbar e pseudobulbar, levando a supor que as lesões encefálicas que atingiram
o rei tinham também localização cortical.
A
paralisia bulbar ocorre na esclerose lateral amiotrófica, que raramente mata
tão depressa e produz geralmente atrofias musculares acentuadas e acompanhadas
de fasciculações, que não são descritas. As
paralisias pseudobulbares podem ser provocadas por lesões cerebrais vasculares
bilaterais, envolvimento por sífilis das artérias cerebrais, tumores e quistos
cerebrais, esclerose múltipla, meningite tuberculosa e aneurismas do tronco
basilar.
Não
sou capaz de propor uma etiologia credível para a doença que levou à morte o
rei D. José I. Não podemos, contudo, esquecer que as
paralisias começaram três dias após uma infeção cutânea acompanhada de febre, o
que faz pensar numa meningoencefalite, ou num abcesso cerebral com localização bulbar.
Bibliografia
Dantas, Júlio. Dantas, Júlio. 1914. “O síndrome
glosso labiado
de D. José”, Academia das Sciências de Lisboa, Boletim da
Segunda classe; Actos e pareceres,
estudos, documentos e
notícias, Volume VII, 1912-1913, pg
339-350, Coimbra:
Imprensa da Universidade.
Haymaker, Webb. Bing`s local diagnosis in neurological
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1969. Saint
Louis: The C. V. Mosby Company.
Merritt,
Houston. A texbook of Neurology. 1973.
Philadelphia:
Lea & Febiger.
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