Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

quinta-feira, 31 de janeiro de 2019


RELAÇÃO MÉDICO DOENTE


NA LITERATURA PORTUGUESA


 JOSÉ RODRIGUES MIGUÉIS




José Rodrigues Miguéis nasceu em 1901 e viria a morrer em 1980. Descontente com o Estado Novo, passou nos Estados Unidos da América mais de meia vida, tem-se mesmo nacionalizado americano, em 1942. Posteriormente, viveu alguns períodos de tempo em Portugal.
Na obra de cariz autobiográfico “Um homem sorri à morte com meia cara” Migueis relata a sua experiência pessoal quando, no ano de 1945, adoeceu e esteve internado durante vários meses no serviço de neurologia de um hospital público de Nova Iorque, o Bellevue. Terá sofrido de uma infeção no ângulo ponto-cerebeloso, provavelmente em resultado de uma otite média crónica colesteatomatosa. Queixou-se de cefaleias e alterações da visão, antes de lhe aparecer uma paralisia facial esquerda.
Afirmou José Rodrigues Miguéis:
Procurei pintar um ambiente real: o dos hospitais numa grande metrópole moderna onde a dor e a brutalidade, a doçura e o humor, e em particular a devoção dos médicos e das enfermeiras põem traços de tragédia e de epopeia, diante das quais o tema pessoal se apaga e some.
Não guardou, porém, boa memória dos médicos que o assistiram no Hospital Bellevue. Escreveu:
Estava agora na presença de estranhos que nada sabiam de mim nem tinham comigo nenhum laço, e para quem eu era apenas mais um caso de hospital, um objeto de curiosidade clínica.
Eu não existia, era um feixe de sintomas.
Rodrigues Miguéis encontrou, depois uma enfermeira excecional:
Mrs. Abbey não me abandonou um só instante. Inclinada para mim, sorria-me, falava-me como se fala a um bebé no berço, friccionava-me, aconchegava-me melhor, dizia palavras animadoras. Que solicitude e que brandura as desta mulher autoritária e brusca, e que cordialidade a sua, após mais de quarenta anos de calejante profissão.
Mais adiante, corrigiu, em parte, a sua opinião sobre os médicos:
 Se, ao traçar alguns destes episódios, roço aqui além pela ironia, é sempre com profundo respeito e comovida gratidão que me refiro aos autênticos apóstolos da medicina que tenho conhecido. Os erros são de todos nós, humanos, e não seria de esperar que deles estivessem isentos os homens de bata branca. Nem de longe tentei reincidir na sátira de que há milénios eles têm sido alvo.

Texto retirado do capítulo “Relação Médico doente na Literatura Portuguesa”, do livro a integrar o Processo de Candidatura da Relação Médico Doente a Património Imaterial da Humanidade.


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