RELACÃO MÉDICO DOENTE
NA LITERATURA PORTUGUESA
MIGUEL
TORGA
Adolfo Coelho da
Rocha, que adotou o pseudónimo literário de Miguel Torga, nasceu em S. Martinho
de Anta, em 1907, e morreu em Coimbra, em 1995. Filho de um agricultor modesto,
trabalhou durante a adolescência na fazenda do seu tio José, no Brasil. Foi o
tio quem lhe pagou os estudos de Medicina, em Coimbra.
Ainda me lembro
da placa do seu consultório, no Largo da Portagem, na mesma cidade.
Não são frequentes as referências a médicos nem a doentes
nos textos de Miguel Torga. Depois de muito procurar, encontrei no IX Diário a
nota que transcrevo. Foi escrita em S. Martinho de Anta, a 26 de dezembro de
1960. Por essa altura eu, caloiro de Medicina, comemorara em Coimbra um Natal
triste, frio e chuvoso.
Consultas e mais consultas a esta pobre
gente, que parece guardar as mazelas durante o ano para quando eu venho.
Ausculto, apalpo, dou os remédios e prometo a cura. Mas acabo por me sentir o
verdadeiro beneficiário do bodo clínico. Reencontro nele o gosto do ofício, que
a cidade tem progressivamente amortecido. Há um lance no exercício da profissão
que sempre me apaixonou: a anamnese. O relato dos padecimentos, feito pelo
doente à cordialidade inquisidora do médico. É ele o grande momento humano do
ato clínico. O instante em que o abismo se abre ou não abre, a verdade que vem
à tona ou não vem, se realiza ou não o encontro da aflição com a piedade. A
civilização tornou quase impossível esse rasgar de trevas, essa entrega total e
confiada da alma dorida ao desvelo hipocrático. A conjugada ação de mil forças
inibidoras invalida a instintiva ânsia reveladora do sofrimento. Cada palavra
diz outra coisa, cada queixume vem mascarado. As conveniências sociais, a
covardia, a suspicácia e o hábito arreigado de hipocrisia impedem qualquer
sinceridade. E o infeliz facultativo cansa-se e degrada-se no consultório a
interrogar clientes de má-fé. Nenhum talento, nenhuma cultura, nenhuma
autoridade, nenhum ardil conseguem desfazer a ambiguidade da confissão, que
acaba sempre por ser uma longa mentira premeditada. Ora, no camponês, tudo se
passa doutra maneira. Dono dum campo de consciência restrito, virgem ainda nas
reações, quando adoece todo ele se concentra na observação dos sintomas do mal
que o rói, e descreve-os depois objetivamente, com a candura dum primário e a
precisão dum cientista. Sem falsos pudores, sem perturbadoras interferências,
faz um relato leal e vigoroso da enfermidade. E é uma aventura emocionante e
dignificadora acompanhá-lo pelas veredas da angústia, o apelo e a solicitude de
mãos dadas, fraternos, a caminho da desilusão ou da esperança.
Não deixa de ser curioso anotar a preocupação de Miguel
Torga com o abandono das máscaras sociais, tão cara a Fernando Namora, como
veremos adiante.
Texto retirado
do capítulo “Relação Médico doente na Literatura Portuguesa”, do livro a
integrar no Processo de candidatura da Relação médico doente a Património
Imaterial da Humanidade.
Sem comentários:
Enviar um comentário