DE HUMANIS CORPORI FABRICA
UMA INTRODUÇÃO À OBRA DE VESÁLIO
II
A
Fabrica foi publicada num único volume e consta de sete «livros» ou capítulos
que ilustram os diversos aspectos da anatomia humana. É escrita em latim e
profusamente ilustrada com magníficas xilogravuras. São apresentadas 22
ilustrações grandes e 187 pequenas.
Vamos
passar os «livros» em revista, de forma sintética.
O
primeiro capítulo trata da descrição dos ossos, enquanto o segundo ilustra os
ligamentos e os músculos que asseguram os movimentos voluntários. O autor
descreve ainda os processos de disseção a que recorreu.
Estes
dois «livros» apontam para vários erros de Galeno e constituem o que de melhor
Vesálio conseguiu em matéria de exactidão. As gravuras são duma beleza diícil de ultrapassar. Serão também as ilustrações anatómicas mais famosas de todos os tempos.
O
terceiro «livro» trata do sistema circulatório. Nesta matéria, Vesálio não foi
capaz de se libertar da influência de Galeno. A sua descrição dos ramos do arco
aórtico parece inspirada na anatomia dos macacos.
No entanto, há aqui avanços científicos: André Vesálio descreveu a veia mesentérica inferior e as veias hemorroidárias.
O «livro» IV trata do sistema nervoso. Vesálio clarificou o significado da palavra
«nervo» como estrutura capaz de conduzir sensações e movimentos,
diferenciando-o de ligamento e de tendão. Aceitou, ainda assim, que a acção dos
nervos residia na distribuição do «espírito animal» a partir do cérebro, como
sugeria Galeno.
As noções transmitidas pelo sábio greco-romano, que dividia os
nervos cranianos em sete pares, estavam presentes no pensamento de todos os
médicos da época e Vesálio não refutou este conceito, apesar de ter descrito
parte do nervo troclear. Pôde, entretanto, constatar que o nerco óptico não era
oco, como se supunha. Sem atingir o brilhantismo que demonstrou noutros
capítulos, fez algum avanço na descrição dos nervos espinhais.
No «livro» V, André Vesálio descreve as vísceras abdominais, aproximando os órgãos da nutrição dos reprodutores. Aceitou a ideia de Galeno, segundo a qual o sangue era produzido no fígado, mas rejeitou a noção de que esta víscera era composta de sangue solidificado.
Gravura renascentista anterior a Vesalio
Negou também que a veia cava se originasse no
fígado e que este órgão se dividisse em múltiplos lobos, como afirmara Galeno,
assentando em observações de animais. Rejeitou ainda a existência duma
abertura directa das vias biliares para o estômago.
No
que respeita ao aparelho urinário, sugeriu que o «sangue seroso» atravessava a
substância membranosa dos rins onde se libertava do seu «humor seroso» que
seria então conduzido à bexiga através dos ureteres.
Ao
tratar dos órgãos da reprodução, André Vesálio refutou a ideia antiga do útero
segmentado, proveniente de dissseções em animais. Curiosamente, a sua
representação da vagina humana assemelha-se antes a um pénis.
Estariam em causa
ideias correntes sobre a suposta simetria dos géneros. Vesálio considerava que o
útero e a vagina eram um só órgão e apelidou a vagina de «colo». Os ovários eram também
chamados «testículos da mulher».
O
«livro» VI trata dos órgãos torácicos. Vesálio achou a substância do coração parecida com a dos
músculos, sem lhe atribuir essa qualidade, por não dispor de movimentos
voluntários. Considerou-o formado por duas câmaras ou ventrículos. A aurícula direita seria uma continuação das veias cavas e a esquerda faria parte
da veia pulmonar.
Vesálio
não poderia encontrar no septo interventricular os inexistentes pequenos orifícios através
dos quais, de acordo com Galeno, o sangue passaria do ventrículo direito para o
esquerdo, mas não descortinou explicação melhor para a circulação sanguínea.
O
coração era geralmente considerado o local onde se situava a alma. Não a
achando, o anatomista adoptou uma atitude prudente e ambígua que lhe permitiu
evitar a hostilidade do clero.
O
sétimo e último «livro» trata da anatomia do cérebro e expõe as fases da sua
disseção. Aborda ainda os órgãos dos sentidos.
O
contributo de Vesálio para a compreensão dos mecanismos do pensamento foi
revolucionário. Até então, aceitava-se que as actividades intelectuais residiam
nos ventrículos cerebrais, localizando-se a percepção nos ventrículos anteriores,
o julgamento no médio e a memória no posterior. A sensação e o movimento resultariam
da ação do «espírito animal» segregado na retemirabili, uma fina teia de artérias
existentes na base do crânio. Ora, já Berengario de Carpi questionara a existência
da retemirabile. As suas dúvidas foram confirmadas por Vesálio que demostrou que
a tal rede de pequenas artérias existia apenas em alguns animais, como os ungulados.
André
Vesálio negou aos ventrículos cerebrais outra função que não fosse a drenagem de
líquido. Recusou também a ideia de que a mente, ou espírito, pudesse ser dividida
em faculdades separadas.
Rematou
o seu trabalho sobre o cérebro aconselhando os métodos a utilizar na sua disseção.
A
Fabrica termina com um subcapítulo sobre a vivisseção.
Nenhuma
obra anatómica voltaria a obter tamanho sucesso, nem modificaria tão profundamente
os conceitos anatómicos anteriores.
(continua)
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