Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011


     RECORDANDO JOSÉ PAULINO PEREIRA


     Conheci o doutor Paulino quando me instalei em Setúbal, finda a minha comissão de serviço militar a bordo do navio hospital Gil Eannes. Paulino Pereira fazia parte de um grupo ilustre de médicos que se radicara na cidade  duas ou três décadas atrás e contribuíra para elevar a eficácia e o bom nome do Hospital de São Bernardo, ajudando a aproximar o nível técnico dos Hospitais Distritais de muito do que de bom se fazia nos Hospitais Centrais.
     No fim da vida, elaborou um livro de lembranças e de reflexões, muito ao jeito do que tenho procurado fazer no “historinhasdamedicina”. O destino não quis que visse a obra publicada. Faleceu semanas antes, no termo de uma vida longa e proveitosa.
     Coube-me a honra de representar a Ordem dos Médicos na cerimónia de apresentação do seu livro “Bisturi do tempo”. Vou divulgar aqui uma das histórias da sua vida clínica, contada nesse livro.

     Recordo alguns momentos emocionantes, como aquele que vivi, numa noite, quando nos apareceu um rapazinho dos seus vinte anos, com uma facada no coração. Alguém, numa rixa noturna, à saída duma «boîte», lhe vibrara o golpe que o deixara assim, sem acordo, lavado em sangue, entre a vida e a morte. Não havia tempo a perder. Embora não vocacionado para a cirurgia torácica, decidi avançar imediatamente. Era o tudo ou o nada. Uma vez recuperado do estado de choque e enquanto se comprimia a ferida, refleti uns segundos: aguentará a intervenção de tórax aberto? O anestesista acenava-me afirmativamente. Atirei-me então para o desconhecido, como se à porta de um avião, munido de para quedas, me convidassem a saltar para o espaço imenso, onde jamais mergulhara…! Pela primeira vez na minha vida de cirurgião, senti palpitar nas minhas mãos aquele órgão vital que marca o ritmo da vida. O meu ajudante, debaixo da máscara, balbuciava monossílabos que o meu subconsciente interpretava como incitamento: «Vamos bem… Já sangra menos… Aqui está a ferida… Falta só suturá-la…»
     Sentia a máscara ensopada de suor e de sangue que, por vezes, esguichava. Era forçoso andar depressa, pois o coração no seu bater constante, não permitia que os «pontos» passassem com facilidade. Ao dar o primeiro, aquela torneira diminuiu o seu débito. O ajudante voltou a balbuciar: «Bom…» Mas a intervenção ainda estava longe do final. Eu sentia-me mais senhor da situação. Outro «ponto» e tinha a vitória comigo. E foi mesmo assim. Como por encanto, aquela ferida, quase mortal, deixou de sangrar. Um olhar vago para o anestesista deu-me a certeza de que a primeira parte da batalha estava ganha. Apertei então a mão do meu ajudante, sem dizer palavra…
     … Enquanto nos lavávamos, eufórico com o acontecimento, tão fora do comum, não pude deixar de dizer em voz alta:
     − E diz a minha mulher que, lá em casa, por falta de jeito, nem sou capaz de pregar um prego na parede…

Referências:
José Paulino Pereira, Bisturi do Tempo, Edição de autor, Setúbal, 2008.
Fotografia: contracapa do mesmo livro.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011


            RECORDANDO AMÍLCAR CASTANHINHA

Conheci o doutor Castanhinha no Hospital dos Capuchos e trabalhei com ele durante anos em S. José. Homem inteligente, culto, dotado de fino sentido de humor e de conversa agradável, tinha uma sólida formação neurológica mas não era propriamente um aficionado do trabalho clínico. Quando tínhamos muito que fazer, chegávamos a recear encontrá-lo nos corredores do Hospital. Sendo ele mais velho, não nos ficava bem interromper a conversa e abalar.
Militara ativamente na oposição ao salazarismo e, a dada altura, refugiara-se em Argel, onde foi representante oficial do general Humberto Delgado até ao seu assassinato em 1965. Ocorriam dissidências entre os oposicionistas portugueses no exílio e Castanhinha foi preso, juntamente com um grupo de portugueses, pela polícia argelina. Foi libertado por ordem de Ben Bella, após intercedência de Josie Fanon, esposa do mítico pensador e psiquiatra Frantz Fanon. Não conheço as circunstâncias do seu regresso. Poderá ter feito com o Regime um acordo do género “tu não nos incomodas e nós deixamos-te em paz”, já que pôde voltar ao País e à carreira hospitalar.
Não tenho conhecimento de qualquer atividade política que tenha posteriormente exercido fora do âmbito profissional. Durante anos, foi dos pensadores mais notados a registar as suas reflexões no Boletim da Ordem dos Médicos. Quando a fação a que se aliara foi vencida, reagiu com amargura e com humor, ao seu estilo pessoal: “Aquilo não é uma Ordem! É um Bando!”
Numa tarde do tempo antigo, cruzei-me com ele num corredor do Hospital de S. José. Estava bem-disposto e provocou-me:
−Trabulo! Eu, às vezes, leio a Bíblia. Sabe que o profeta não sei quê (disse-me o nome, mas não o fixei) se zangou quando um jovem lhe chamou careca. Amaldiçoou−o e o rapaz morreu.
Respondi:
− O profeta era ruim…
Sorriu com os olhos e afastou-se.
Encontrei-o pela última vez na sede da Ordem dos Médicos. Terá sido por altura de eleições. Eu cumpria algumas horas de serviço em volta das urnas por conta do Colégio de Neurocirurgia. Por alguma razão que não recordo – eventualmente por ter sido sugerida a possibilidade de vitória de um candidato a bastonário que não nos agradava, bati com os nós dos dedos no tampo de uma mesa. Amílcar Castanhinha questionou-me:
− Sabe donde vem esse seu gesto?
− Não faço ideia. Não sou supersticioso…
− Eu conto-lhe. Nas cruzadas, os cavaleiros cristãos usavam armaduras pesadas que lhes protegiam quase todo o corpo. No entanto, antes dos combates, levantavam o braço para fazer o sinal da cruz e expunham as axilas. Uns tantos foram atingidos pelas flechas muçulmanas. O papa (disse-me o nome, mas esqueci-o) fez sair uma bula que substituía o sinal da cruz por três pancadas na sela do cavalo. As selas, ao tempo, eram de madeira.
A história tanto podia ter sido recolhida como inventada. É bonita à mesma e conto-a muitas vezes.
Nesse dia, o doutor Castanhinha estava feliz por ter finalmente podido dispensar a algália, meses após a cirurgia da próstata. Comentava:
− Sabe, Trabulo? O meu PSA nem era elevado…
Faleceu poucos meses depois. O coração atraiçoou-o. Acho que, tal como eu, fazia coleção de máscaras. Ficou um colecionador a menos. Deixou-nos também um homem bom.


sexta-feira, 11 de novembro de 2011


                     AMATO LUSITANO 

    HISTÓRIAS DAS CENTÚRIAS


    Na obra de João Rodrigues de Castelo Branco encontram-se pequenas histórias saborosas. Vejamos a  CURA XLVII da segunda CENTÚRIA. Intitula-se:

      DE UM INDIVÍDUO QUE, ESTANDO ATORMENTADO DE DISENTERIA, COMETEU COITO COM A MULHER E FICOU SÃO.

  Curámos muitos doentes atacados de disenteria epidémica e, entre eles, um alveitar (veterinário). 
 Como a disenteria o oprimisse fortemente encaminhou-se de noite para uma mulher sua vizinha, de pénis ereto, e teve com ela agradável himeneu, cessando logo as dejeções, como me contou depois, ao visitar-me pela manhã. Ficou de boa saúde.

     Nos comentários , Amato Lusitano cita o Médico da ilha de Cós:

     Disse Hipócrates nas últimas palavras dos livros De Morbis Vulgaribus que a disenteria se cura com a vida lasciva. A frequência dos prostíbulos é, como ele diz, uma torpe licenciosidade, de que o cínico Diógenes usou quando esperava a meretriz. Como tivesse chegado tarde junto dele que a esperava, apresentou-se-lhe vergonhosamente e contra o preceito de Deus. A mão antecipara-se à celebração da cópula. Havia lançado o sémen ao chão com levar a mão às partes pudendas.


    Embora fosse preciso aguardar, parecia mais fácil, no tempo de Diógenes, encontrar mulheres que homens.

terça-feira, 8 de novembro de 2011


                           AMATO LUSITANO

              ROMA E LISBOA



Na cura XIII da Terceira Centúria, João Rodrigues estabelece comparações entre Roma e Lisboa e refere-se à capital do reino português de forma elogiosa. O judeu de Castelo Branco deixa transparecer as saudades da Pátria.


Lisboa tem cerca de quarenta graus de elevação polar e Roma quarenta e um. Lisboa é a cidade mais ocidental de toda a Hispânia e a mais ilustre de toda essa zona ocidental, na opinião de todos. Fica assente num terreno plano, e as suas praças são banhadas pelo Mar Oceano em que desagua o Tejo aurífero. Não é dominada por ventos de montes nevados nem corrompida por florestas temerosas ou pântanos infetos, nem por águas estagnadas, lagoas, fossos ou cavernas donde é costume levantarem-se cheiros pestilentos que quase sempre infetam as cidades, como acontece com várias urbes da Itália e da Grécia. Pelo contrário, tem nos arredores campos férteis, jardins agradabilíssimos, fontes de água límpida, ribeiros cristalinos, vinhas aprazíveis, pomares abundantíssimos. De tudo isto resultam ares salubérrimos, mantendo a melhor temperatura nas quatro estações do ano, uma vez que no pino do verão o calor não é insuportável a ponto de sufocar as pessoas, nem o frio do inverno é tão rigoroso que os obrigue a refugiarem-se junto ao lume. É raro ver-se em Lisboa a geada ou a neve, sendo por isso que em pleno inverno até usam vestuário muito simples, sem precisarem de se defender com peles. A cidade é bafejada, em grande parte, por uma brisa muito suave, provinda do oceano, propiciadora de tudo, como querem Hesíodo e Homero.
Roma também possui tudo o que foi dado a Lisboa mas fica a Oriente e está mais voltada ao Sul que ao Norte. Por isso a sua temperatura é superior em calidez e humidade e portanto, como disse Galeno, sujeita a destilações. É atravessada pelo rio Tibre, chamado outrora Abbula que desagua no mar, não muito longe, de modo a partilhar com razão a mesma temperatura que tem Lisboa. Daqui vem que os romanos são fisicamente semelhantes aos lisboetas e outros portugueses, a ponto de até serem iguais na duração de vida, como esclareceremos um pouco mais adiante.


Que bom seria viver em Lisboa sem engarrafamentos de trânsito e sem poluição! Pena seria a falta de esgotos e de água e a lama nos caminhos…

Referências:
Amato Lusitano, Centúrias de Curas Medicinais. Centro Editor Livreiro da Ordem dos Médicos, Lisboa, 2010.
Gravuras
Lisboa antiga - Internet

quinta-feira, 3 de novembro de 2011


                            PAI E FILHO

O senhor Filipe (o nome verdadeiro é outro) teria cerca de 25 anos quando foi internado no Serviço de Neurocirurgia do Hospital dos Capuchos. Vinha da Urgência de S. José, onde fora admitido na véspera por hematoma intracerebral espontâneo.



A anamnese não forneceu dados relevantes e a angiografia não mostrou sinais de anomalia vascular.
Os hematomas temporais têm má fama. Quando o efeito de massa aumenta, leva ao encravamento rápido do uncus e ao coma muitas vezes irreversível. Este era do lado direito e não se acompanhava de alterações do estado de consciência nem de défices neurológicos aparentes. Resolvi intervir e conversei com o doente para obter o seu consentimento. Olhou-me com olhos de carneiro que vai para a degola, mas aceitou a operação.
A cirurgia foi simples e a recuperação rápida. Os exames neurorradiológicos de controlo foram normais. Aos sete dias, dei-lhe alta e passei a segui-lo em consulta externa.
Apesar de casado, vinha sempre acompanhado pela mãe, com quem tinha uma ligação muito forte. Os testes neuropsicológicos detetaram um compromisso da memória recente que, a perdurar, iria comprometer a sua atualização profissional. Estava deprimido e teve de ser medicado nesse sentido.
Apenas na segunda consulta entendi a razão de ser da sua falta de esperança. O homem estava à espera da morte e não acreditava nas minhas palavras quanto ao prognóstico. Achava que eu mentia para o não assustar. Lá me revelou um facto que ocultara na anamnese de entrada: o pai fora operado por mim de glioblastoma cerebral anos antes e falecera em menos de um ano. Contava ter o mesmo destino.
Passou muito tempo, mas ainda aparece na minha consulta de vez em quando. Nunca perdeu o olhar triste.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011


   O MEU TEMPO DE ESTUDANTE

     Eu tinha boa cabeça e pude ser o melhor aluno do meu Liceu sem me esforçar por aí além. Era minimamente responsável e sentia a necessidade de estudar mais e melhor. Tardei, contudo, a concretizar esses objetivos. A verdade é que eu queria ser “marrão” e nunca fui capaz de o conseguir.
     Há alguns anos, a minha filha mais velha, médica também, esteve alguns meses com a AMI em S. Tomé. De volta, contava que os naturais da terra eram preguiçosos e explicava por quê: quase nem era preciso sairem do carreiro para estenderem a mão e colherem bananas de um cacho; entravam na água, lançavam a rede mesmo ali ao pé e obtinham uma refeição para a família. Provavelmente, quem precisa apenas de molhar os tornozelos ou os joelhos para conseguir uma boa pescaria nunca se fará grande navegador.
     Eu fixava objetivos e, de modo geral, cumpria-os, ainda que adiasse habitualmente para Outubro os exames mais difíceis.  
   Como outros cábulas, aprendi cedo o que era indispensável para passar de ano. Na Anatomia Descritiva, por exemplo, quem se contentava em chegar aos treze ou catorze valores escusava de estudar o aparelho urogenital. Eu até estava a fazer um bom exame quando o velho professor Maximino me mandou descrever a loca prostática. Nunca tinha ouvido falar de tal coisa. O meu “ Ãn?” foi tão espontâneo e sentido que a assistência desatou a rir. Saí de lá com treze.
     No ano seguinte, estudava, por vezes, num café com um colega que hoje é Professor Catedrático. Quando fomos a provas, eu obtive um treze e ele um catorze. Não ficou satisfeito e declarou:
     − Entre o meu catorze e o teu treze há um abismo de sabedoria!
     Haveria...
     Julgo que em todo o lado há pessoas que ganham tanto como as outras mas que fazem mais e melhor. O prestígio da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra assentava na qualidade de meia dúzia de professores. Renato Trincão, o “Trinquinhas” era um deles. Ensinava Anatomia Patológica.
   Eu tinha boa memória visual e engracei com o microscópio. No exame prático, o Trinquinhas entusiasmou-se com a minha prova e fez-me elogios rasgados. Não me deslumbrei. Sabia o que me esperava. Tinha um conhecimento razoável dos dois primeiros volumes da sebenta. O terceiro estava reservado a quem ambicionava mais de quinze valores. O meu ficou por abrir. Poucos dias depois, lá veio a prova oral. O professor Renato Trincão julgava ter acabado de descobrir um grande aluno e interrogou-me apenas sobre a matéria que constava do terceiro volume. Para desconsolo do Mestre, não fui capaz de responder a qualquer pergunta. Ainda assim, deu-me quinze valores.


     Um rapaz cresce e faz-se homem. Uns amadurecem mais cedo e outros mais tarde. Nas duas semanas que se seguiram ao exame de Patologia Médica, no quinto ano, continuei a estudar durante um par de semanas, estando já em férias. Tinha finalmente dado conta de que o saber era imprescindível. Um ou dois anos mais e teria os doentes à porta do consultório. Ai de mim, se não fosse capaz de os tratar!
     Acabei o curso com média de quinze valores, o que me classificava entre os quinze ou vinte melhores de um curso de cerca de cem. Soube-me a pouco, mas a verdade é que eu não merecia mais.
     Com o tempo, lá fui ganhando hábitos de trabalho e de estudo organizado. Mesmo assim, não me livrei, até hoje, de um pesadelo que se vai repetindo, com pequenas variações: o exame é daqui a dias e eu não comecei a estudar. Muitas das vezes, ainda nem sequer comprei a sebenta... 

terça-feira, 18 de outubro de 2011


                



     HUMOR EM AMATO LUSITANO

Amato Lusitano cita frequentemente os antigos e segue os seus ensinamentos. O que o faz grande é o cuidado que põe na anamnese e na observação dos doentes e o esforço constante para compreender as doenças que combate.
Trata-se de um médico com sentido de humor. Vejamos a pequena história que se segue à CURA LXXXI da segunda Centúria.

Como em certa ocasião uma senhora nobre pretendesse capar uns galos, preparou os testículos com mel e substâncias aromáticas de modo a obter uma excelente refeição para o marido.
Ao jantar, este comeu o manjar e saltou-lhe um tal priapismo que a esposa, após demorado coito, começou a sentir-se cansada e não podendo já suportar o trabalho, fugiu do quarto comum.
O marido, porém, furioso da matéria ainda pruriente correu atrás da mulher e, não podendo alcançá-la, visto se ter fechado num outro quarto, encaminhou-se ao das três ou quatro criadas e obteve com cada uma delas satisfação cabal. De manhã cedo, chamado o médico (pois o humor continuava titilando) o caso foi levado para o gracejo. Após ter bebido semente de anho casto, com cânfora, e feito um linimento de choupo sobre os rins, ficou livre do furor e da irritação venérea.