A
ESPINHELA CAÍDA
Encontrei em saldo, numa
livraria prestes a encerrar, um livro precioso de um historiador de Coimbra que
aborda as crenças mágicas prevalecentes na região na segunda metade do século
XVII e na primeira do século XVIII.
José Pedro Paiva esmiuçou os registos das
visitas pastorais da diocese de Coimbra ao longo de 90 anos, procurando relatos
referentes às acusações de prática de magia recolhidas pelos religiosos
visitadores. Sistematizou-os e produziu uma obra cheia de interesse que abre
uma janela sobre uma realidade social paralela à nossa e muito próxima dela.
No começo, a Medicina e a
Magia andaram de mãos dadas. Segundo a limitada informação disponível, os
“curadores”, “benzedores”, “mezinheiros” e “bruxos” continuam em plena
atividade, escondendo as suas práticas dos olhares profanos. Pouco terá mudado
nas crenças populares. Lembro-me de um “bruxo” de Almada que me enviava
ocasionalmente doentes que não sabia tratar. Nunca falei com ele (que eu saiba)
mas tratava-se seguramente dum homem sensato. A triagem a que procedia não era
pior que a praticada pela maior parte dos meus colegas de profissão.
Irei publicar neste blogue
alguns pequenos artigos sobre as entidades clínicas mais ou menos definidas
diagnosticadas e tratadas pelos curandeiros. Parti das informações contidas
neste livro e fui-as completando com achegas provenientes de outras fontes,
contando-se entre elas artigos publicados na Internet.
Neste pequena “nosologia”
começarei por descrever a abordagem da “espinhela caída”, uma doença frequente.
É, pelo menos, um dos males mais vezes referidos no livro de José Paiva. Houve
quem lhe chamasse “mal do estômago” e a caracterizasse essencialmente pelos
sintomas de dor e sensação de opressão no epigástrio.
A “espinhela” é o apêndice
xifoide. Ficará “caída” se torcer ou dobrar. As etiologias propostas para a
modificação anatómica são muito variadas. Do dicionário mais ou menos
enciclopédico do padre francês Raphael Bluteau, começado a publicar em Coimbra
em 1712, os mecanismos possíveis para fazer cair a espinhela vão de esforços e
traumatismos à tosse e a distúrbios alimentares.
As entidades nosológicas
da Medicina Mágica têm contornos mais esbatidos que as da nossa. Existindo poucas
vezes em forma escrita, são transmitidas de geração em geração e o significado
das palavras varia com o tempo e com a geografia. Enquanto nos registos feitos
em português, “espinhela caída” designa geralmente formas diversas de padecimento
gástrico, nas publicações de origem brasileira, fáceis de encontrar na
Internet, o termo traduz-se mais ou menos por lombalgia de esforço. É apontado
para o mal um critério objetivo de diagnóstico. Mede-se, com uma linha, a
distância que vai da ponta do dedo anular até ao cotovelo e aplica-se o dobro
dessa medida à cintura do doente. Se faltar, ou exceder um palmo, a espinhela
está caída.
As terapêuticas são também
variadas. Associam, de modo geral, rezas ou formulações mágicas orais à
aplicação de substâncias pretensamente curativas.
Deixando de lado as variadas propostas brasileiras de tratamento, passo a citar José Pedro
Paiva:
Maria Antónia, de
Trouxemil, curava este mal aplicando na região das queixas um emplastro feito
de mel misturado com incenso e mandando rezar nove credos em louvor da Paixão
de Cristo, nove Avé Marias em honra do parto da Virgem e um Padre Nosso e uma
Avé Maria pelas almas do Purgatório.
Maria Rodrigues, de Albergaria-a-Velha
mandava aquecer um pouco de vinho, mergulhava nele um raminho de alecrim e
esfregava com ele a testa e a “boca do estômago” do doente, mandando-lhe rezar
nove salve rainhas e cinco credos, enquanto repetia as seguintes palavras: se
tu tens a espinhela caída, eu ta levanto em louvor da Virgem Nossa Senhora.
Isabel Luís, da Celavisa,
dispensava o uso de medicamentos. Ajoelhava-se, benzia-se e rezava: tens a
espinhela caída, a Virgem Nossa Senhora ta concerte e ta torne a seu lugar; espinhela
têm-te em ti assim como Nosso Senhor se teve em si, espinhela ergue-te no corpo
assim como Nosso Senhor Jesus Cristo se teve no horto, espinhela ergue-te na
veia assim como Nosso Senhor Jesus Cristo se teve na ceia, espinhela ergue-te
forte, assim como Nosso Senhor Jesus Cristo se teve na morte; assim como vosso
corpo meu Senhor Jesus Cristo foi rendido, sentido, desconjuntado na cruz e
crucificado, vós meu Senhor para remir e salvar pecadores fostes servido de os
visitar em Val de Manos, assim vós, Senhor, remediai esta necessidade.
Fontes:
José Pedro Paiva. Práticas e crenças mágicas. O medo e a
necessidade dos mágicos na Diocese de Coimbra (1650 – 1740). Minerva Histórica,
Coimbra, 1992.
Bluteau, Raphael. Vocabulario portuguez e latino. Colégio das Artes da Companhia de Jesus, Coimbra, 1712-1728.
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