RELAÇÃO MÉDICO-DOENTE
NA LITERATURA PORTUGUESA
JOSÉ
CARDOSO PIRES
José Cardoso
Pires (1925-1998) é um dos escritores portugueses do século XX que mais admiro.
Nascido em São João de Peso (Castelo Branco) e filho de um oficial da Marinha
Mercante, mudou-se cedo para Lisboa, onde frequentou o Liceu Camões.
Matriculou-se, depois, em Matemática, na Faculdade de Ciências da Universidade
de Lisboa, mas não terminou o curso. Conheci-lhe uma irmã médica, especializada
em Pediatria.
Com vinte anos,
Cardoso Pires alistou-se na Marinha Mercante e deu-se mal.
Resolveu, mais
tarde, fazer-se jornalista. Depois de participar em vários projetos editoriais,
colaborou no Diário de Lisboa e na Gazeta Musical.
Publicou 18
livros de romances, contos, ensaios e crónicas. Andou perto do neorrealismo,
mas recebeu influências várias, entre as quais ressalta a de Hemingway, com
tendência para uma escrita sucinta, com diálogos concisos. Confesso que bebi da
mesma fonte.
O seu “De Profundis, Valsa lenta” não chegará ao brilho de
obras como “O delfim”, “O anjo ancorado” ou “O hóspede de Job”, mas tem a
característica ímpar de ilustrar o modo como o autor foi capaz de reagir à
tragédia pessoal. Em 1996, o escritor foi atingido por um acidente vascular
cerebral que o impediu de falar e de escrever. Recuperado, Cardoso Pires
abordou, no ano seguinte, com sentido de oportunidade e um toque de génio, a reação
ao mal que se abatera bruscamente sobre ele. Tão diferente se achou, a partir
desse instante, que falou de si próprio na terceira pessoa.
Assim, também, o foi encontrar uma jovem médica que o veio
observar com as primeiras perguntas, no tom de quem vem de recado pensado.
Perguntas a aviar, é bom que se diga, pelo menos foi o que
lhe pareceu a ele uma abordagem daquelas, e como tal, com respostas prontas é
que a devia despachar. Estropiadas ou não, respostas prontas e o rosto
eternamente apontado para uma vastidão qualquer. Seria realmente uma vastidão,
um espaço ermo, para onde olhava? Pouco importa. Horizonte, interrogação ou
nada, era nessa direção que ele estava a responder ao exame e infelizmente com
o descanso e a irresponsabilidade que eram de prever, parecia anotar a médica
pela maneira de o escutar, pelo insólito dos desacertos com que ele
correspondia ao diagnóstico que lhe tinha sido atribuído, conformava a médica
com o silêncio do olhar, claro, tudo certo, tudo conforme, «agora», despediu-se
ela, «o que é preciso é pôr-se bom depressa para voltar a escrever. De acordo?»
Escrever?
O que restaria de mim no homem que
ficou para ali estendido à espera de coisa nenhuma?
O mal acabaria por vencer. José Cardoso Pires foi atingido,
no ano seguinte, por novo acidente vascular cerebral que lhe roubou a vida.
Texto retirado
do capítulo “Relação Médico doente na Literatura Portuguesa”, do livro a
integrar no Processo de candidatura da Relação médico doente a Património
Imaterial da Humanidade.
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