Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019



RELAÇÃO MÉDICO-DOENTE


 NA LITERATURA PORTUGUESA


   JOSÉ CARDOSO PIRES




José Cardoso Pires (1925-1998) é um dos escritores portugueses do século XX que mais admiro. Nascido em São João de Peso (Castelo Branco) e filho de um oficial da Marinha Mercante, mudou-se cedo para Lisboa, onde frequentou o Liceu Camões. Matriculou-se, depois, em Matemática, na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, mas não terminou o curso. Conheci-lhe uma irmã médica, especializada em Pediatria.
Com vinte anos, Cardoso Pires alistou-se na Marinha Mercante e deu-se mal.
Resolveu, mais tarde, fazer-se jornalista. Depois de participar em vários projetos editoriais, colaborou no Diário de Lisboa e na Gazeta Musical.
Publicou 18 livros de romances, contos, ensaios e crónicas. Andou perto do neorrealismo, mas recebeu influências várias, entre as quais ressalta a de Hemingway, com tendência para uma escrita sucinta, com diálogos concisos. Confesso que bebi da mesma fonte.
O seu “De Profundis, Valsa lenta” não chegará ao brilho de obras como “O delfim”, “O anjo ancorado” ou “O hóspede de Job”, mas tem a característica ímpar de ilustrar o modo como o autor foi capaz de reagir à tragédia pessoal. Em 1996, o escritor foi atingido por um acidente vascular cerebral que o impediu de falar e de escrever. Recuperado, Cardoso Pires abordou, no ano seguinte, com sentido de oportunidade e um toque de génio, a reação ao mal que se abatera bruscamente sobre ele. Tão diferente se achou, a partir desse instante, que falou de si próprio na terceira pessoa.
Assim, também, o foi encontrar uma jovem médica que o veio observar com as primeiras perguntas, no tom de quem vem de recado pensado.
Perguntas a aviar, é bom que se diga, pelo menos foi o que lhe pareceu a ele uma abordagem daquelas, e como tal, com respostas prontas é que a devia despachar. Estropiadas ou não, respostas prontas e o rosto eternamente apontado para uma vastidão qualquer. Seria realmente uma vastidão, um espaço ermo, para onde olhava? Pouco importa. Horizonte, interrogação ou nada, era nessa direção que ele estava a responder ao exame e infelizmente com o descanso e a irresponsabilidade que eram de prever, parecia anotar a médica pela maneira de o escutar, pelo insólito dos desacertos com que ele correspondia ao diagnóstico que lhe tinha sido atribuído, conformava a médica com o silêncio do olhar, claro, tudo certo, tudo conforme, «agora», despediu-se ela, «o que é preciso é pôr-se bom depressa para voltar a escrever. De acordo?»
Escrever?
O que restaria de mim no homem que ficou para ali estendido à espera de coisa nenhuma?
O mal acabaria por vencer. José Cardoso Pires foi atingido, no ano seguinte, por novo acidente vascular cerebral que lhe roubou a vida.

Texto retirado do capítulo “Relação Médico doente na Literatura Portuguesa”, do livro a integrar no Processo de candidatura da Relação médico doente a Património Imaterial da Humanidade.

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