Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019



RELAÇÃO MÉDICO DOENTE


NA LITERATURA PORTUGUESA


ANTÓNIO LOBO ANTUNES




António Lobo Antunes nasceu em 1942, no seio duma família de médicos ilustres. A par de José Saramago, foi um dos escritores portugueses mais notáveis, no terceiro quartel do século XX e no início do século XXI.
A sua experiência como médico militar em Angola, durante a guerra colonial, centrou os enredos de vários dos seus livros.
No regresso de Angola, António Lobo Antunes especializou-se em Psiquiatria e trabalhou durante muitos anos no Hospital Miguel Bombarda, em Lisboa. A balança dos seus interesses foi-se deslocando da Medicina para a Literatura, até se tornar apenas escritor.
Escreve António Lobo Antunes em “Conhecimento do Inferno”:
Sou médico e vou ser psiquiatra, entender as pessoas, perceber o seu desespero e a sua angústia, tranquilizá-las com o meu sorriso competente de sacerdote laico manejando as hóstias das pastilhas em eucaristias químicas.
E, mais adiante:
Alterando as posições de médico e doente, invertendo a própria condição ao ser confundido com um internado, médicos e pacientes destabilizam os papéis desempenhados por um e outro, a ponto de lhe assaltar a impressão de que eram os doentes quem tratava os psiquiatras com a delicadeza que a aprendizagem da dor lhes traz, que os doentes fingiam ser doentes para ajudar os psiquiatras, iludir um pouco a sua triste condição de cadáveres que se ignoram, de mortos que se supõem vivos e cirandam lentamente pelos corredores na gravidade comedida dos espetros.
António Lobo Antunes não se mostra agradado, nem com a metodologia, nem com os resultados da sua atividade profissional. A dada altura propõe, para os doentes, uma fuga poética:
Devíamos tentar, como as gaivotas, furar o céu de gesso que nos emparedava, quebrar os espelhos, recusar os cartuchos, e partir antes que nos medicassem, nos condicionassem, nos psicanalizassem, nos medissem a inteligência, o raciocínio, a memória, a vontade, as emoções, nos catalogassem e nos atirassem por fim, rotulados, para a escura gaveta de uma enfermaria, aguardando, aterrados, o imenso morcego da noite.
O autor escreveu num artigo da revista Visão, em 2012:
O lugar onde, até hoje, senti mais orgulho em ser pessoa foi o Serviço de Oncologia do Hospital de Santa Maria, onde a elegância dos doentes os transforma em reis. Numa das últimas vezes que lá fui encontrei um homem que conheço há muitos anos. Estava tão magro que demorei a perceber quem era. Disse-me
− Abrace-me porque é o último abraço que me dá! Tenho muita pena de não acabar a tese de doutoramento.
   Ao afastarmo-nos, sorriu. Nunca vi um sorriso com tanta dor entre parêntesis, nunca imaginei que fosse tão bonito.

… A extraordinária delicadeza e atenção dos médicos, dos enfermeiros, comoveu-me. Tropecei no desespero, no mal-estar físico, na presença da morte, na surpresa da dor, na horrível solidão da proximidade do fim, que se me afigura de uma injustiça intolerável. Não fomos feitos para isto, fomos feitos para a vida. O cabelo cresce-me de novo, acho-me, fisicamente, como antes, estou a acabar o livro e o meu pensamento desvia-se constantemente para a voz de um homem no meu ouvido.


Texto retirado do capítulo “Relação Médico doente na Literatura Portuguesa”, do livro a integrar no Processo de candidatura da Relação médico doente a Património Imaterial da Humanidade.



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