RELAÇÃO MÉDICO DOENTE
NA LITERATURA PORTUGUESA
ANTÓNIO LOBO ANTUNES
António Lobo Antunes nasceu
em 1942, no seio duma família de médicos ilustres. A par de José Saramago, foi
um dos escritores portugueses mais notáveis, no terceiro quartel do século XX e
no início do século XXI.
A sua experiência como
médico militar em Angola, durante a guerra colonial, centrou os enredos de
vários dos seus livros.
No regresso de Angola,
António Lobo Antunes especializou-se em Psiquiatria e trabalhou durante muitos
anos no Hospital Miguel Bombarda, em Lisboa. A balança dos seus interesses
foi-se deslocando da Medicina para a Literatura, até se tornar apenas escritor.
Escreve António Lobo Antunes em
“Conhecimento do Inferno”:
Sou médico e vou ser psiquiatra, entender as pessoas, perceber o seu desespero
e a sua angústia, tranquilizá-las com o meu sorriso competente de sacerdote
laico manejando as hóstias das pastilhas em eucaristias químicas.
E, mais adiante:
Alterando as posições de médico e doente, invertendo a própria condição ao
ser confundido com um internado, médicos e pacientes destabilizam os papéis
desempenhados por um e outro, a ponto de lhe assaltar a impressão de que eram
os doentes quem tratava os psiquiatras com a delicadeza que a aprendizagem da
dor lhes traz, que os doentes fingiam ser doentes para ajudar os psiquiatras,
iludir um pouco a sua triste condição de cadáveres que se ignoram, de mortos
que se supõem vivos e cirandam lentamente pelos corredores na gravidade
comedida dos espetros.
António Lobo Antunes
não se mostra agradado, nem com a metodologia, nem com os resultados da sua
atividade profissional. A dada altura propõe, para os doentes, uma fuga
poética:
Devíamos tentar, como as gaivotas, furar o céu de gesso que nos emparedava,
quebrar os espelhos, recusar os cartuchos, e partir antes que nos medicassem,
nos condicionassem, nos psicanalizassem, nos medissem a inteligência, o
raciocínio, a memória, a vontade, as emoções, nos catalogassem e nos atirassem
por fim, rotulados, para a escura gaveta de uma enfermaria, aguardando,
aterrados, o imenso morcego da noite.
O autor escreveu num
artigo da revista Visão, em 2012:
O lugar onde, até hoje, senti mais
orgulho em ser pessoa foi o Serviço de Oncologia do Hospital de Santa Maria,
onde a elegância dos doentes os transforma em reis. Numa das últimas vezes que
lá fui encontrei um homem que conheço há muitos anos. Estava tão magro que
demorei a perceber quem era. Disse-me
− Abrace-me porque é o último abraço que me dá! Tenho muita pena de não
acabar a tese de doutoramento.
Ao afastarmo-nos, sorriu. Nunca vi um sorriso com tanta dor entre
parêntesis, nunca imaginei que fosse tão bonito.
… A extraordinária delicadeza e atenção dos médicos, dos enfermeiros,
comoveu-me. Tropecei no desespero, no mal-estar físico, na presença da morte,
na surpresa da dor, na horrível solidão da proximidade do fim, que se me
afigura de uma injustiça intolerável. Não fomos feitos para isto, fomos feitos
para a vida. O cabelo cresce-me de novo, acho-me, fisicamente, como antes,
estou a acabar o livro e o meu pensamento desvia-se constantemente para a voz
de um homem no meu ouvido.
Texto retirado
do capítulo “Relação Médico doente na Literatura Portuguesa”, do livro a
integrar no Processo de candidatura da Relação médico doente a Património
Imaterial da Humanidade.
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