RELACÃO MÉDICO-DOENTE
NA LITERATURA PORTUGUESA
FERNANDO NAMORA
Fernando
Gonçalves Namora nasceu em Condeixa-a-Nova, em abril de 1919 e faleceu em
Lisboa, em janeiro de 1989. Licenciou-se em Medicina, em Coimbra. Como
escritor, fez parte da geração de 1940, juntamente com Carlos de Oliveira,
Mário Dionísio, Joaquim Namorado e João José Cochofel. Exerceu Medicina em
regiões rurais da Beira Baixa e Alentejo. Fixou-se mais tarde em Lisboa, como
médico do Instituto Português de Oncologia.
Foi um dos
fundadores da Sociedade Portuguesa de Escritores Médicos.
É autor de uma
extensa obra que se repartiu pela poesia, pelo conto, pelo romance e pelas
crónicas de viagem. Aventurou-se também pela pintura, chegando a ser premiado
nessa forma de arte.
Neste trabalho
despretensioso sobre o modo como é tratada a relação entre médicos e doentes na
literatura portuguesa, cito quatro prosadores médicos. Deixo, agora, Amato
Lusitano de parte, por não ser ficcionista. Entre todos, foi claramente
Fernando Namora quem mais se preocupou em aprofundar a questão. Três dos seus
romances (Retalhos da vida de um médico (1949), O Homem disfarçado (1957) e
Domingo à tarde (1961) têm médicos como protagonistas. No entanto, o
relacionamento do clínico com os seus pacientes é bem aparente ao longo de boa
parte do resto da sua obra.
Nela, o médico
procura olhar-se a si próprio e olhar os doentes e, ainda, ver-se a si mesmo
pelos olhos deles. É que somos todos animais de grupo e dependemos da impressão
que os outros formam de nós. Será isso
que nos leva a fingir e pretender ser outra coisa, para abrigar a alma de
olhares alheios. É a esse tipo de atitude que Fernando Namora designa como o
uso da máscara social.
A doença coloca os humanos em situações de fragilidade e
leva muitos doentes a pôr de lado as máscaras e a olhar o clínico nos olhos. O
abandono do fingimento permite uma aproximação especial entre médicos e
doentes.
… esta relação íntima e o contexto dramático
da doença (com a iminência da morte) potenciam a autenticidade, a queda das
máscaras sociais e a revelação do verdadeiro “eu”.
O tema é recorrente na sua escrita. Em “Retalhos da vida de
um médico”, Fernando Namora relata a sua experiência clínica em pequenas
povoações do interior do país. As narrativas correspondem ao início da sua vida
profissional.
Eu queria lutar com desespero contra a
doença, chamá-la a mim, vigiá-la infatigavelmente; reanimar de vida esse corpo
vencido. Mais soro, mais tónicos, tudo o que havia à mão. Foram horas de febre,
às vezes de desalento, outras de esperança, ao lado do inimigo que se apoderava
irresistivelmente duma vida.
Escreve, mais adiante:
Precisava de persistir. E entreguei-me
a cada doente que me procurava com um ardor desesperado. Dias e noites, a horas
escusas, faminto de êxito e simpatia, ia rondar o sofrimento, animar os
impacientes, oferecer-me inteiro à vida alheia”.
O médico parece
sentir a dor dos que lhes pedem ajuda.
Contudo, também ele usa a máscara social. O protagonista de
“O homem disfarçado” tem “como principal objetivo ver-se a si próprio com clareza, livrar-se de uma carga de simulações.
Namora escreveu, em “A vacina”:
Tem sido de há muito minha convicção de
que ao médico não bastam a sabedoria universitária, as patologias dos livros, a
argúcia clínica que as desvenda e subjuga; o humanismo perspicaz, comovido,
diligente, do velho médico de família, legenda romântica da nossa infância,
continua válido se o pudermos ajustar às coordenadas atuais – e, em muitas
circunstâncias, é ele que substitui a droga no seu objetivo de dar esperança e
alívio a quem o sofrimento desesperou. Deseja-se ao médico uma sólida
consciência profissional, pois não há missão tão eriçada de responsabilidade –
mas que não falte, nesse complexo de virtudes, a que advém de um homem lúcido e
sensível que se disporá oferecer a outro a simpatia humana que pode traduzir-se
sob várias e sempre fecundas expressões. A atmosfera do ato médico é, antes do
mais, um diálogo entre dois homens – o que ouve, decifra, decide, em quem se
confia, e o que não pode ser repelido ou defraudado na sua necessidade de
proteção. O êxito da terapêutica muito depende, pois, da maneira como o médico,
mestre desse diálogo, o faz desenrolar.
Em “Domingo à Tarde”,
Fernando Namora disserta sobre a incapacidade de comunicação com os doentes.
Nesse romance, o seu personagem principal é um médico de um hospital de Lisboa
que se refugia na distância e no isolamento. Pouco fala com os enfermos –
limita-se a resmungos e a acenos de cabeça.
Trata-se de um
oncologista desanimado com a eficácia limitada do seu arsenal terapêutico.
Fernando Namora retrata um personagem ao contrário do que ele acredita deverem
ser os médicos: um clínico azedo, solitário, cético e pouco esperançoso,
mostrando dificuldade em distinguir pieguice de ternura
A redenção do
oncologista dá-se pela influência de Clarisse, doente incurável, uma espécie de
santa padroeira que o convence da importância da solidariedade e da compreensão
da parte de quem socorre os humanos em sofrimento.
Clarisse ajuda o médico a pôr a máscara de lado e a voltar
ser ele mesmo. Ela afasta também os seus disfarces. Modifica-se, ao saber que
sofre de leucemia. Escreve Namora:
… horas depois, quando
entrei no laboratório, fui encontrá-la num banquinho baixo, quase aninhada, a
fazer perguntas assustadoramente ingénuas à minha assistente.
Ela própria confessa, no
seguimento do livro:
Nada tenho dentro de mim a
não ser o medo.
O comportamento
da doente acaba por alterar a atitude do clínico, que entende que ele e os
pacientes navegam na mesma embarcação, enfrentam o mesmo inimigo e têm os
destinos chegados. O doente depende do seu doutor, mas o médico compreende que
a sua vida só faz sentido enquanto for capaz de transmitir a quem sofre carinho
e compaixão. Não se trata apenas de sentir, mas também de mostrar que se sente.
O médico deve pôr a máscara de lado.
Em “Estamos no Vento”, Namora retoma um
dos seus temas favoritos: a doença põe à mostra a autenticidade humana enquanto
a proximidade da morte torna o fingimento quase impossível.
A medicina continua a não se bastar com os manuais, indo
sempre mais dentro do homem para o entender na saúde e na doença, sabendo que
esta, por lhe afrouxar as resistências, não raro desvenda o que até aí se
dissimulara em disfarces.
A prática médica é, fundamentalmente,
uma relação entre pessoas.
Em algumas
aldeias portuguesas, pouco terá mudado nos três quartos de século que separam
os textos de Júlio Dinis e Fernando Namora. O consultório permanece arredado do
quotidiano. O internamento hospitalar é uma possibilidade distante. As pessoas
adoecem, são tratadas, melhoram ou pioram, e, quando lhes calha a vez,
agonizam, nas próprias casas. As consultas médicas são predominantemente
domiciliárias. Os meios auxiliares de diagnóstico constituem uma referência
afastada. Para o diagnóstico, o médico apoia-se no próprio saber e na observação
meticulosa dos doentes.
O contacto com o
sofrimento, o desalento e até o desespero, terá tornado confessional a escrita
de Fernando Namora.
Segundo Eduardo
Lourenço, irmão de um médico que me calhou operar e de quem fui amigo, Namora
foi um dos que esteve sempre «em uníssono
com as dores do mundo”.
A minha
experiência profissional teve início decorridos vinte anos sobre a publicação
da primeira edição de “Retalhos da vida de um médico” e desenrolou-se durante
quatro décadas. Aconteceu em meio urbano, em ambiente hospitalar, com
possibilidades de recurso a meios complementares de diagnóstico cada vez mais
sofisticados. Reler Fernando Namora, o escritor português que mais páginas
dedicou ao relacionamento entre médicos e doentes, transportou-me a um tempo
que me parece pertencer a um mundo mais antigo.
Julgo ter
entendido, ao longo da vida, a necessidade de estar perto dos doentes e de lhes
fazer sentir a minha solidariedade com palavras, gestos e atitudes. Raramente
me terei deparado, contudo, com a tal “máscara social” com que Fernando Namora
tanto se preocupou. Poderá faltar-me sensibilidade para esse tipo de visão das
relações humanas. Sinto-me, porém, tentado a considerar que ela constitui
essencialmente uma realidade literária. Quanto muito, Namora terá feito
generalizações a partir de uma ou outra experiência mais marcante da sua vida
clínica
Texto retirado
do capítulo “Relação Médico doente na Literatura Portuguesa”, do livro a
integrar o Processo de candidatura da Relação Médico Doente a Património
Imaterial da Humanidade.
Sem comentários:
Enviar um comentário