Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

TROCAS


Já lá vão anos. Aconteceu no Serviço 10 do Hospital de S. José.
De manhã, ao entrar para o trabalho, deparei com uma gritaria invulgar.
Numa unidade hospitalar que recebia uma grande parte dos acidentados graves de Lisboa e do Sul do País, assistia-se a muita desgraça. Dessa vez, porém, os gritos não eram de dor, mas de raiva.
Aproximei-me. O Enfermeiro-chefe António Trindade, um excelente profissional, parecia inibido, bem contra o seu costume. Mantinha os ombros descaídos e o rosto baixo, como se estivesse à espera que o vendaval abrandasse, sem nada dizer que pudesse piorar ainda mais a situação.
Quando percebi o que se passava, enfiei-me na primeira porta que encontrei, para que não me vissem rir. Ficava-me mal e corria algum risco.
Tinham trocado os corpos de dois doentes falecidos. Como todos os acidentados que morriam eram sujeitos a autópsia, a culpa tanto podia ser nossa como do Instituto de Medicina Legal, mas o barulho era ali.
Uma das famílias recebera o seu defunto e apressara-se a enterrá-lo, sem que ninguém se lembrasse de o espreitar. Horas depois, e a dezenas de quilómetros de distância, a outra família, ao prestar as honras fúnebres, quis olhar pela derradeira vez o rosto do morto querido. Abriram o caixão. Não conheciam aquela cara de lado nenhum.