Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

       

      OS DESGASTES DO TEMPO


Não lembro o nome do colega que me relatou esta conversa. Tenho, contudo, bem presente no registo da lembrança, a sua figura. Contaria um pouco mais que os meus quarenta anos. Era alto, magro, reservado e tinha sido engenheiro antes de se fazer médico. Julgo que era proprietário de uma ou duas empresas de certa dimensão e que mudara de trajeto pessoal por gosto. Conheci-o no Serviço 10 do Hospital de S. José, onde ele trabalhou como anestesista, durante algum tempo.


Contou-me, um dia, uma história que ainda me agrada repetir. Falava dum amigo que tinha emigrado para África (não sei se para Angola, se para Moçambique) uma dezena de anos atrás. Voltara a encontrá-lo, por acaso, na baixa lisboeta. Trocaram um abraço e conversaram.
- Os anos não passaram por ti – disse o nosso Colega. Estás na mesma!
Respondeu-lhe o outro, com voz grossa:
- Dizes isso porque não dormes comigo…


sábado, 21 de fevereiro de 2015

             
                      JOAQUIM BARRADAS

     A ARTE DE SANGRAR

                DE CIRURGIÕES E BARBEIROS
           


O título do livro induz em erro. Joaquim Barradas não se limita a estudar a história da sangria. Ao longo das 247 páginas do seu trabalho, resume a história da Medicina, de Hipócrates ao dealbar da época modera. Cirurgião que é, defende a sua dama, sem deixar de atentar nas grandes conceções de que enfermou a nossa Arte, dando realce à descrição crítica da teoria dos humores. Presta a atenção devida aos estudos anatómicos, à emancipação da Cirurgia em França e à sua prática no Hospital Real de Todos os Santos. Refere o passado da sangria, mas também do seu presente, ao citar o tratamento da Policitemia rubra vera.


Voltarei a tratar deste livro interessantíssimo, num futuro próximo. Nesta introdução, irei sublinhar apenas as duas indicações que o autor defende para a prática da sangria nos tempos antigos: o tratamento das hérnias encarceradas e estranguladas e os ferimentos em combate. 
Nas hérnias estranguladas, o relaxamento muscular obtido pela extravasão de sangue levado até à perda de consciência permitiria «manipular a hérnia e forçar o intestino para dentro da cavidade abdominal». 
As motivações para a sangria dos que caíam na luta eram bem diferentes e aproximavam-se da eutanásia, ainda que não seja certo que essa intenção tenha estado sempre presente na mente dos cirurgiões de batalha. Passo a citar Joaquim Barradas.  


No fim da batalha, muitas vezes, ficavam milhares de feridos no terreno, que chegavam a passar uma noite inteira ao relento, sem assistência, tendo por companhia milhares de mortos e os lamentos dos companheiros igualmente feridos. No ar, um cheiro adocicado a sangue ajudava a compor o inferno…  … A sangria iria prejudicar a recuperação dos feridos e afetar a sua robustez, contribuindo para agravar o estado geral… … Na ausência de outras formas de aliviar o sofrimento, sem dúvida que a sangria foi benéfica para muitos soldados… … A sangria feita no campo de batalha embotava a perceção da dor e provocava alguma obnubilação que transportava os soldados para um nível de consciência que, de alguma forma, os afastava do sofrimento…


A ser assim, tratava-se de um modo de exercer a piedade. As Valquírias tornavam-se bem-vindas. 

Imagens: Capa do livro e Internet.

Editora: Livros Horizonte, 1999.

sábado, 14 de fevereiro de 2015

     DE HUMANIS CORPORI FABRICA


             UMA INTRODUÇÃO À OBRA DE VESÁLIO


                                                                                                 III



   A Fabrica representa, para alguns historiadores, o início da Medicina moderna. Quando a fez publicar, André Vesálio tinha 29 anos. Durante o resto da sua vida, o grande anatomista pouco mais produziu.



Que razões o terão convencido a investir tanto nesse projecto? Que causas o terão levado a abandonar tão cedo a investigação científica e a carreira universitária para se tornar médico da corte?
Não se conhecem todos os motivos.
O próprio Vesálio refere alguns deles. Escreveu que a Medicina constava de três partes: medicamentos, dieta e o «uso das mãos». Ao falar das mãos, referia-se obviamente à prática cirúrgica, para a qual os conhecimentos de anatomia tinham uma importância determinante. André Vesálio pesquisou e fez desenhar gravuras anatómicas que proporcionassem aprendizagem mesmo aos que não tinham acesso à disseção de cadáveres. 
   A meu ver, Vesálio queria ser médico. Pretendia tratar doentes. Poderia, contudo, ter feito isso em Pádua.




 O anatomista deu precocemente  conta dos erros que enfermavam a obra de Galeno. Claudio Galeno foi um grande médico e um grande cirurgião. Os seus seguidores, em vez de se inspirarem na sua capacidade de recolher informações por observação directa, fizeram dos seus ensinamentos «bíblia». As suas obras, traduzidas em hebraico e árabe e retraduzidas para latim, foram praticamente incontestadas durante os treze séculos que decorreram entre a sua morte e o nascimento de Vesálio. Para que se desse a evolução nos conhecimentos médicos, era necessário romper com o passado. Tornava-se indispensável criticar Galeno. Era tempo de substituir os dados (tantas vezes falsos), recolhidos das dissecações de animais diversos, pelo estudo directo da anatomia humana.



 Era o espírito científico a desabrochar. André Vesálio descreveu estruturas antes desconhecidas e corrigiu erros assumidos como verdades havia séculos. Enganou-se algumas vezes, como era natural. As suas imperfeições seriam corrigidas progressivamente pelos anatomistas que se lhe seguiram, como Realdo Colombo, Gabriele Falloppio, Fabricio d`Acquapendente e Bartolomeo Eustáquio. 


                       Realdo Colombo
  Pensou preparar um livro de Anatomia em parceria com Miguel Ângelo





Eustáquio

 De certo modo, foram todos «anões aos ombros dum gigante».
 A publicação da Fabrica foi dispendiosa e o salário dum jovem professor da Universidade de Pádua não seria suficiente para um projecto desse fôlego. A imprensa contava com pouco mais de meio século de existência e era cara. As xilografuras de elevada qualidade terão custado a André Vesálio os olhos da cara. Não consta que se tenha endividado. Vesálio provinha duma família de médicos e farmacêuticos. O pai trabalhara na corte do imperador Carlos V. O anatomista teria fortuna pesoal. Parte dela terá sido consumida na publicação da Fabrica.


  Embora pareça redutor considerar o livro De humanis corporis fabrica apenas como um investimento visando compensações futuras, profissionais e económicas, o desejo de promoção pessoal não deve ser relegado para lugar secundário na motivação das grandes obras humanas. André Vesálio pretendia reconhecimento e proveito. O ensino de Anatomia e Cirurgia na Universidade mais importante do mundo dar-lhe-ia certa visibilidade, mas é provável que o cargo de médico da corte do imperador fosse, na época, o emprego mais apetecível para um médico ambicioso.



Os ensinamentos de Andreas Vesalius Bruxelliensis influenciaram a prática cínica de todos os médicos que trabalharam no meio milénio que se seguiu. Incluo-me, obviamente, entre eles e presto homenagem humilde à sua obra imperecível. Sou, contudo, obrigado a supor que a História da Medicina moderna teria começado mais cedo se os trabalhos anatómicos de Leonardo da Vinci tivessem sido publicados. 


 Lembro que Leonardo efectuou as suas últimas disseções em cadáveres humanos em 1514, o ano do nascimento de Vesálio.


  




sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015


    DE HUMANIS CORPORI FABRICA


           UMA INTRODUÇÃO À OBRA DE VESÁLIO


                                                                                               II


A Fabrica foi publicada num único volume e consta de sete «livros» ou capítulos que ilustram os diversos aspectos da anatomia humana. É escrita em latim e profusamente ilustrada com magníficas xilogravuras. São apresentadas 22 ilustrações grandes e 187 pequenas.
Vamos passar os «livros» em revista, de forma sintética.


O primeiro capítulo trata da descrição dos ossos, enquanto o segundo ilustra os ligamentos e os músculos que asseguram os movimentos voluntários. O autor descreve ainda os processos de disseção a que recorreu.




Estes dois «livros» apontam para vários erros de Galeno e constituem o que de melhor Vesálio conseguiu em matéria de exactidão. As gravuras são duma beleza diícil de ultrapassar. Serão também as ilustrações anatómicas mais famosas de todos os tempos.









O terceiro «livro» trata do sistema circulatório. Nesta matéria, Vesálio não foi capaz de se libertar da influência de Galeno. A sua descrição dos ramos do arco aórtico parece inspirada na anatomia dos macacos.



No entanto, há aqui avanços científicos: André Vesálio descreveu a veia mesentérica inferior e as veias hemorroidárias.


O «livro» IV trata do sistema nervoso. Vesálio clarificou o significado da palavra «nervo» como estrutura capaz de conduzir sensações e movimentos, diferenciando-o de ligamento e de tendão. Aceitou, ainda assim, que a acção dos nervos residia na distribuição do «espírito animal» a partir do cérebro, como sugeria Galeno. 


As noções transmitidas pelo sábio greco-romano, que dividia os nervos cranianos em sete pares, estavam presentes no pensamento de todos os médicos da época e Vesálio não refutou este conceito, apesar de ter descrito parte do nervo troclear. Pôde, entretanto, constatar que o nerco óptico não era oco, como se supunha. Sem atingir o brilhantismo que demonstrou noutros capítulos, fez algum avanço na descrição dos nervos espinhais.
No «livro» V, André Vesálio descreve as vísceras abdominais, aproximando os órgãos da nutrição dos reprodutores. Aceitou a ideia de Galeno, segundo a qual o sangue era produzido no fígado, mas rejeitou a noção de que esta víscera era composta de sangue solidificado.

Gravura renascentista anterior a Vesalio


Negou também que a veia cava se originasse no fígado e que este órgão se dividisse em múltiplos lobos, como afirmara Galeno, assentando em observações de animais. Rejeitou ainda a existência duma abertura directa das vias biliares para o estômago.
No que respeita ao aparelho urinário, sugeriu que o «sangue seroso» atravessava a substância membranosa dos rins onde se libertava do seu «humor seroso» que seria então conduzido à bexiga através dos ureteres.


Ao tratar dos órgãos da reprodução, André Vesálio refutou a ideia antiga do útero segmentado, proveniente de dissseções em animais. Curiosamente, a sua representação da vagina humana assemelha-se antes a um pénis.


Estariam em causa ideias correntes sobre a suposta simetria dos géneros. Vesálio considerava que o útero e a vagina eram um só órgão e apelidou a vagina de «colo». Os ovários eram também chamados «testículos da mulher».
O «livro» VI trata dos órgãos torácicos. Vesálio achou a substância do coração parecida com a dos músculos, sem lhe atribuir essa qualidade, por não dispor de movimentos voluntários. Considerou-o formado por duas câmaras ou ventrículos. A aurícula direita seria uma continuação das veias cavas e a esquerda faria parte da veia pulmonar.

Vesálio não poderia encontrar no septo interventricular os inexistentes pequenos orifícios através dos quais, de acordo com Galeno, o sangue passaria do ventrículo direito para o esquerdo, mas não descortinou explicação melhor para a circulação sanguínea.
O coração era geralmente considerado o local onde se situava a alma. Não a achando, o anatomista adoptou uma atitude prudente e ambígua que lhe permitiu evitar a hostilidade do clero.


O sétimo e último «livro» trata da anatomia do cérebro e expõe as fases da sua disseção. Aborda ainda os órgãos dos sentidos.


O contributo de Vesálio para a compreensão dos mecanismos do pensamento foi revolucionário. Até então, aceitava-se que as actividades intelectuais residiam nos ventrículos cerebrais, localizando-se a percepção nos ventrículos anteriores, o julgamento no médio e a memória no posterior. A sensação e o movimento resultariam da ação do «espírito animal» segregado na retemirabili, uma fina teia de artérias existentes na base do crânio. Ora, já Berengario de Carpi questionara a existência da retemirabile. As suas dúvidas foram confirmadas por Vesálio que demostrou que a tal rede de pequenas artérias existia apenas em alguns animais, como os ungulados.
André Vesálio negou aos ventrículos cerebrais outra função que não fosse a drenagem de líquido. Recusou também a ideia de que a mente, ou espírito, pudesse ser dividida em faculdades separadas.
Rematou o seu trabalho sobre o cérebro aconselhando os métodos a utilizar na sua disseção.
A Fabrica termina com um subcapítulo sobre a vivisseção.
Nenhuma obra anatómica voltaria a obter tamanho sucesso, nem modificaria tão profundamente os conceitos anatómicos anteriores.
                                                            (continua)



quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015




    DE HUMANIS CORPORI FABRICA

  

      UMA INTRODUÇÃO À OBRA DE VESÁLIO


                                 I


   Quando, no último dia de 2014, publiquei aqui um pequeno artigo a assinalar o quinto centenário do nascimento do grande anatomista André Vesálio, prometi voltar a falar da sua figura e dos seus trabalhos. É o que faço agora. O texto que se segue tem ambições modestas. As fontes de que me servi foram limitadas. Não adquiri livros, não me levantei da cadeira em que me sento quando escrevo, nem saí do espaço virtual para fazer investigações. Tudo o que li está na Internet. O meu objectivo é divulgar a importância da obra de Vesálio e o reflexo que teve na Medicina dos nossos dias.


  A Fabrica não foi o único trabalho publicado por André Vesálio. Antes e depois dele, o anatomista produziu outros escritos de menor fôlego. 


   Na Paraphrasis in nonum librum Rhazae ad Regem Almansorem (Lovaina, 1537), Vesálio comparou as concepções terapêuticas galénica com as do médico e alquimista árabe Rhazes (854-925) sem se comprometer. 

                         Imagem fictícia de Rhazes

  Inclinou-se para o lado de Galeno, respeitando, contudo as opiniões de Rhazes. 
    No ano seguinte, apresentou, em Veneza, as Tabulae anatomicae sex.Tratava-se de seis grandes desenhos anatómicos feitos por ele próprio, com base nas suas dissecções. 


   Destinavam-se a facilitar o estudo aos seus alunos e representavam as veias cava e porta, as artérias e o sistema nervoso. 
   Ainda em 1538, fez sair uma edição revista e aumentada do manual de disseção de Guinter de Andemach, seu antigo professor em Paris. 
   Em 1539, Vesálio publicou em Basileia um trabalho em que expunha a sua opinião sobre a sangria: Epistola docens venam axillari dextri cubiti in dolore laterali secundam.
   Em 1546, opinaria sobre a terapêutica médica num artigo bastante contestado, intitulado Epistola rationem modunque propinandi radices chynae.


   Em 1543, imediatamente antes da publicação da Fabrica, fez imprimir o Epitome, provavelmente uma das suas obras menos conhecidas. Tratava-se de um resumo da Fabrica, destinado aos seus alunos e preparado segundo uma concepção revolucionária de ensino. 


   A segunda parte do livro, escrito em latim, era composta por onze gravuras anatómicas com índices. O leitor era convidado a recortar as duas últimas e a colá-las nas anteriores, emprestando aos desenhos uma dinâmica até então desconhecida nas universidades. 

                                 Falópio

   Em 1564, André Vesálio fez editar em Veneza o trabalho a que chamou Anatomicarum Gabrielis Fallopii observationem examen, em que aceitava parte da críticas que Falópio lhe dirigira e refutava outras.


  Apesar de terem importância científica e histórica, esses trabalhos foram eclipsados pela publicação, em 1543, da sua obra monumental De humani corporis fabrica, que teria uma segunda edição revista em 1555.
   Vesálio levou dois anos a completar a Fabrica. Recorreu a ilustradores da oficina de Ticiano. Diz-se que as tábuas anatómicas (não assinadas) foram desenhadas por Jan Stephen van Calcar, mas não existe consenso quanto a isso. 
  Não foram descuradas a preparação das gravuras em madeira nem o trabalho de impressão, que o anatomista encomendou a Joannes Oporinus, em Basileia.
                                                                                                            
 (Continua)


sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

       
         BOCAGE, MOLIÈRE E OS MÉDICOS



Estando a preparar um pequeno estudo sobre Bocage, tive oportunidade de rever parte da obra do poeta setubalense. Tropecei numa série de curtos poemas satíricos apontados aos médicos. Eis um deles:
            Aqui jaz um homem rico
                 nesta rica sepultura:
                 escapava da moléstia,
                         se não morresse da cura.

   Lembrei-me de Molière (1622-1673). 



     O comediante sofreria duma forma crónica de tuberculose pulmonar que o obrigaria a consultas médicas repetidas durante as quais teria podido observar a conduta profissional dos clínicos da época e constatar as limitações das terapêuticas prescrita. Ridicularizou-os em diversas peças de teatro.
    Os médicos tinham grande visibilidade social e expunham-se facilmente a críticas e sarcasmos. Constituíam uma classe profissional bem diferenciada, com formação universitária. Vestiam de forma especial e comunicavam mediante uma linguagem técnica repleta de expressões latinas incompreensíveis para o doente comum. 
   As possibilidades terapêuticas eram limitadas. Constavam de sangrias, clisteres, purgas, vomitórios e aplicações de ventosas, complementados com uma grande variedade de poções, xaropes e unguentos, associadas a prescrições dietéticas.
   Ao longo dos séculos XVII e XVIII, curavam-se as doenças que tinham evolução espontânea favorável e alguns padecimentos cirúrgicos. Não raras vezes, a agressividade terapêutica agravava a enfermidade. Lembre-se a cena final de «O doente imaginário», com a imposição do barrete e da toga a Argan. «Com este barrete, venerável e douto, dou-te a virtude e o poder para medicar, purgar, sangrar, abrir, cortar e matar de modo impune em todo o mundo.» Curiosamente, os clínicos pareciam formar boas imagens deles próprios e tratavam os doentes com alguma sobranceria.
    No começo do século XVII, a medicina começou a libertar-se da prolongada herança galénica. Aos grandes estudos anatómicos renascentistas, seguiram-se avanços fisiológicos que incluíram o entendimento da grande circulação.
O conhecimento da fisiologia da respiração teria de esperar pela descoberta do oxigénio por Lavoisier, no século XVIII. 
  A invenção do microscópio permitiu a identificação dos glóbulos vermelhos, bactérias e protozoários e deu oportunidade ao fisiologista Malpighi de estudar a histologia de vários órgãos. 



   Seguiu-se Morgagni, criador da Anatomia Patológica, que ajudou a localizar as doenças em órgãos específicos. Poucos anos volvidos, Bichat entendeu que as doenças se instalavam em tecidos e não em órgãos inteiros.
 Os meios de diagnóstico também se foram aperfeiçoando. Thomas Willis identificou a presença de açúcar na urina de diabéticos.



   Boerhaave adaptou o termómetro à prática clínica e Laennec inventou o estetoscópio.



A terapêutica médica conheceu avanços decisivos.
Muitos deles tiveram origem na Inglaterra. Thomas Sydenham propôs a utilização da casca de chinchona, que continha quinina, para tratar o paludismo.



    O cirurgião naval James Lind demonstrou que os citrinos curavam o escorbuto, uma doença devastadora nas viagens navais de longa duração. 
   William Withering, método e botânico, adaptou a digitalis (extraída da planta dedaleira) ao tratamento da insuficiência cardíaca.



 Foi ainda um inglês, Edward Jenner, quem popularizou a vacina contra a varíola.
A Medicina evoluía e tornava-se eficaz. Foi, entretanto, lenta a aplicação dos avanços científicos à prática clínica. Lembremos que William Harvey se queixou de ter perdido doentes depois de publicar o resultado dos seus estudos sobre a circulação sanguínea.
Muitos clínicos resistiram à introdução de ideias novas. As práticas tradicionais não deixavam de ser seguidas. A sífilis, por exemplo, continuava a ser tratada com doses eventualmente fatais de mercúrio, enquanto a «teriaga» de Galeno, que se compunha de mais de setenta ingredientes e tratava quase tudo, para além de neutralizar a maioria dos venenos, era preparada correntemente nas farmácias. A prática da sangria foi corrente na Europa durante o século XIX.




  Ouçamos agora Manuel Maria Barbosa du Bocage:

Lavrou chibante receita
um doutor com todo o esmero;
era para certa moça
que ficou sã como um pêro.
«Tão cedo! É milagre!» (assenta
a mãe, que de gosto chora).
«Minha mãe, não é milagre,
Deitei o remédio fora».


       Homem de génio impaciente,
       tendo uma dor infernal,
       pedia para matar-se
       um veneno ou um punhal.
       «Não há (lhe disse o vizinho
       velho, que pensava bem) 
       não há punhal nem veneno;
       mas o médico aí vem.

Muitas vezes, as críticas teriam razão de ser. Lembro uma frase que o Dr. Valadas Preto (em cujo Serviço fiz parte do Internato Geral) gostava de repetir, em situações em que o doente melhorara espontaneamente, ou mesmo contra os efeitos das prescrições clínicas: «Graças à sábia medicação instituída…»