Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

terça-feira, 9 de julho de 2019



AS CANTÁRIDAS



A cantharis vesicatoria, ou lytta vesicatoria, também conhecida por Mosca de Espanha, é um coleóptero da família das cantaradiae. Trata-se uma espécie de mosca de cor verde-azulada metálica, bonita mas malcheirosa, comum no sul da Europa, onde se encontra em sabugueiros, álamos e freixos. Existe em Portugal.
Em tempos, os insetos eram mortos com vapor de vinagre forte e secos ao sol. Recolhiam-se os que se encontram em melhores condições e reduziam-se a pó.
    O pó é corrosivo e vesicatório. O seu elemento ativo é o terpenoide cantaridina (C10H12O4), substância irritante que provoca localmente rubefação e vesicação. Para obter um bom emplastro, são necessárias três partes de pó, uma de azeite e duas de cera amarela, resina e aguarrás de pinheiro.
     As cantáridas são referidas no Papiro de Ebers, um texto egípcio de 1550 a.C. e no Corpus Hippocraticum.
     A cantaridina foi isolada, em 1810, pelo químico francês Pierre Robiquet. Foi considerada um dos venenos mais violentos até então conhecidos. 
     Ao longo dos séculos, as cantáridas foram responsabilizadas por muitas mortes, tanto em consequência de homicídios como de suicídios. Nos meados do século XVII  ganharam fama as “pastilhas Richelieu”, que terão sido usadas para colher vidas sem deixar rasto.
Ingeridas, as cantáridas são suscetíveis de causar erosão da mucosa digestiva, podendo desencadear hemorragias gastrointestinais severas. Têm sido descritas necrose tubular e glomerular renal, seguidas de insuficiência renal. Pode levar à morte.
Utilizam-se em unguentos e emplastros vesicatórios. “Nunca se hão de administrar interiormente, pelos muitos dados que costumam causar” (Coelho, 1735, 168).
    A Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira dá informações interessantes sobre a utilização médica das cantáridas. Hipócrates aconselharia o uso do seu pó na hidropisia, na icterícia e em partos difíceis. Terá sido também utilizada para provocar abortos. Oribásio de Pérgamo, no sec. VI a.C., recomendou o seu emprego como epispástico ou vesicatório. Ribeiro Sanches defende a sua utilização no tratamento de certas lesões cutâneas da sífilis. Curvo Semedo refere casos de disúria como complicação da sua ingestão.
     As cantáridas foram utilizadas durante séculos na medicina tradicional europeia, como vesicatórios, diuréticos e afrodisíacos. Ainda hoje se recorre a elas, como afrodisíacos e para a remoção de verrugas. São utilizadas em homeopatia e publicitadas, para venda livre, na Internet.
Curiosamente, tiveram aplicação culinária no norte de África. Em Marrocos, o tempero conhecido como ras el hanout (“o máximo da minha cozinha”) chegava a contar com mais de 100 ingredientes, incluindo cantáridas. A sua comercialização foi proibido por volta de 1990. O dawamesk, um molho norte-africano complexo, contém ocasionalmente cantáridas.
O uso das cantáridas está associado a algumas histórias interessantes. Em junho de 1772, o marquês de Sade deslocou-se a Marselha para recrutar prostitutas. No regresso, organizou uma orgia em que terá oferecido às mulheres bombons de anis alegadamente recheados com pós de cantáridas, com a intenção de lhes aumentar a libido. A festa correu mal e várias das convidadas adoeceram, com vómitos copiosos. Uma acabou por morrer.


       Em consequência de mais este escândalo, o marquês foi preso e chegou a ser condenado à morte. Evadiu-se, em circunstâncias rocambolescas. Curiosamente, o inquérito levado a cabo pelas autoridades judiciais, com a colaboração de peritos químicos (com os conhecimentos e as tecnologias da época) não detetou, nem nas pastilhas de anis restantes, nem na análise do vómito da vítima, vestígios de substâncias tóxicas.


       Consta que Simão Bolivar, o padrinho de muitas nações que emergiram do império colonial espanhol, morreu de envenenamento acidental por cantáridas, aplicadas por um suposto médico francês na forma de emplastro na nuca. A história é retomada por Gabriel Garcia Marquez, na sua novela “O general no seu labirinto”.


         O rei “Católico” Fernando II de Aragão terá tido também a vida abreviada pelo consumo de cantáridas. Usava-as, juntamente com testículos de touro e outros produtos de reputação afrodisíaca. Pretendia conseguir um filho da sua segunda esposa, a jovem Germana de Foix.
      Curiosamente, algumas constatações recentes sugerem que o efeito das cantáridas resulta em dor e não em prazer.

Fontes:
Coelho, Manoel Rodrigues. 1735. Pharmacopeia Tubalense. Lisboa: Of. António de Sousa da Silva.

Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Editorial Enciclopedia, Lisboa, Rio de Janeiro.
Remy (Pierre Jean). 2001. Le marquis de Sade a-t-il empoisonné des files publiques em 1972? Trésors et secrets du Quay d`Orsay. Paris. J.-C. Lattès.

Sellen, Adam. 2017. Cantáridas mexicanas: una fuente para la historia de la medicina natural. Relaciones: Estudios de História y Sociedade, vol.38, nº1.