Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

segunda-feira, 28 de novembro de 2016


CAMILO CASTELO BRANCO


ESTUDANTE DE MEDICINA
 


Anos atrás, escrevi duas biografias na primeira pessoa: “O Diário de Salazar” e “Eu, Camilo”. Em ambas, coloquei ao lado dos textos produzidos pelos personagens biografados os redigidos por mim. Se foi relativamente fácil imitar a escrita de Salazar, seguir o mesmo processo com Camilo representou algum descaramento e um esforço considerável de mimetismo.


É difícil falar em beleza na nossa literatura em prosa sem evocar Camilo Castelo Branco. Percebo que os escritores são todos datados, uns mais do que outros. Os problemas que afligem uma geração poderão parecer distantes e artificiais um século mais tarde. No entanto, há na escrita de Camilo um vigor, uma excelência no domínio da construção das frases que, até hoje e a meu ver, não foi ultrapassada na língua portuguesa.
    Camilo fez brilhar o romantismo em Portugal quando ele começava a envelhecer no centro da Europa. Os escritores românticos apreciavam os sentimentos fortes e carregados. O ciúme, a vingança e o desespero exigiam um estilo declamatório e frenético. Camilo emprestou-lhe o seu timbre pessoal. Os discursos dos seus personagens são elaborados e muitas vezes espetaculares. Camilo Castelo Branco chegou a ser considerado o maior romancista da Península Ibérica.
A vida do escritor começou mal e acabou pior. Filho ilegítimo de um nobre e de uma criada, nasceu em Lisboa. Órfão aos 10 anos, foi recebido em Vila Real de Trás-os-Montes por uma tia que se aproveitou da sua mocidade para lhe roubar o património.
Após as primeiras letras, apenas o padre António, cunhado de sua irmã Carolina, lhe ensinou rudimentos de francês e de cantochão. Os primeiros livros que leu pertenciam ao padre, cuja biblioteca era reduzida.
Camilo passou a adolescência em aldeias do Norte de Portugal. Aos 16 anos, já o tinham casado. O futuro escritor abandonou a mulher e a filha pequena. Ambas morreram cedo.
     O jovem Camilo resolveu fazer-se médico, como o cunhado Francisco José de Azevedo, irmão do padre António. Informou-se sobre as condições para a admissão na Escola Médico-Cirúrgica do Porto. Era necessária a aprovação em Gramática e Língua Francesa e, segundo se infere do "Dicionário" de Alexandre Cabral, em Filosofia Racional e Moral.

  Corpo sul do Hospital de Santo António, onde esteve instalada a Escola Médico-Cirúrgica

Camilo preparou-se, ninguém sabe bem como, dada a sua pouca escolaridade anterior. Prestou provas em outubro de 1843, no Liceu Nacional do Porto e foi aprovado. Três dias depois, matriculou-se na Escola Médico-Cirúrgica. O primeiro ano constava das cadeiras de Anatomia e Química. Como a Química podia ser frequentada noutro sítio, inscreveu-se na Academia Politécnica.

            Desenho da Academia Politécnica do Porto, no séc. XIX

Eu morava na Rua Escura, um beco fétido de coirama surrada, em uma esquina que olha para a viela de Pelames. Éramos dois os estudantes que ocupávamos o terceiro andar, com uma retorcida varanda de pau debruçada em ameaças sobre os transeuntes…

      No verão de 1844, concluiu o primeiro ano. Foi aprovado em Química e Anatomia. A 15 de outubro, matriculou-se no segundo ano da Escola Médica e na cadeira de Botânica da Academia Politécnica.

Fotografia do livro de exames da Escola Médico-Cirúrgica do Porto

Camilo entendeu cedo que não tinha vocação para médico. Perdeu o ano por faltas.

O certo é que eu, em 1845, há quase vinte anos, bem que nem sequer entressonhasse o céu e o inferno de escritor, já me empenhava de tecer enredos de romances, enquanto os meus lentes de química e botânica se desvelavam em me fazer crer que há ácidos e óxidos, e que há vegetais monocotiledóneos e vegetais andróginos: coisas de que eu sinceramente não duvido nem sei nada. (Em A filha do Doutor Negro).

     Mudou-se para Coimbra, com a intenção de estudar Direito. Em 1846, as aulas encerraram, devido à revolução que ficou conotada com o nome de Maria da Fonte. Camilo voltou a Vila Real.
     Em 1848, com 23 anos, foi para o Porto e começou a sua carreira de jornalista. Abandonou em Vila Real a namorada grávida.
     No Porto, levou uma vida atribulada. Após uma ligação sentimental com uma freira, chegou-lhe a vocação religiosa e inscreveu-se no Seminário do Porto. 
     O seminarista assistiu a poucas aulas. Graças à qualidade dos artigos que ia publicando nos jornais católicos, acabou por receber ordens menores. Passava muitas horas na Biblioteca de S. Lázaro. Estudou os clássicos portugueses antes de se virar para os autores europeus contemporâneos.
   Camilo Castelo Branco foi a primeira pessoa em Portugal a viver exclusivamente da escrita.


Bibliografia
Cabral, Alexandre. Dicionário de Camilo Castelo Branco. Editorial Caminho, Lisboa, 1988.
Viale Moutinho, José. Camilo Castelo Branco. Memórias fotobiográficas. Editorial Caminho, Lisboa, 2009.
    

quarta-feira, 9 de novembro de 2016


HOSPITAIS -BARRACA



A Anestesia propriamente dita não foi a única preocupação do historiador médico Joaquim Figueiredo Lima. Obviamente, a Anestesia não se desenvolveu de forma isolada e esteve ligada, desde o início, à Cirurgia, à Obstetrícia e, também, à Estomatologia. As condições em que os doentes eram anestesiados e operados e, por conseguinte, a assepsia, a antissepsia e a conceção das edificações hospitalares representam uma preocupação constante do autor, expressa num número significativo das páginas do seu livro.
Como foi dito anteriormente, o trabalho de Figueiredo Lima assenta nas Teses de Dissertação Inaugural de alunos finalistas das Escolas Médico-Cirúrgicas de Lisboa e do Porto, no final do sec. XIX e no início do sec. XX.
Em 1867, José Victorino de Sousa Albuquerque dissertou sobre as condições higiénicas do Hospital de Santo António do Porto, com relação às operações de grande cirurgia. Afirmou, a dada altura:
As bases sobre as quais devem assentar a forma dos hospitais encontram-se nas seguintes palavras de Trelat: «É preciso que tudo esteja disposto para a livre e abundante circulação de ar; que os ventos varram as superfícies de construção, que não encontrem nem ângulos nem partes reentrantes, e que o sol possa penetrar na totalidade das salas espaçosas e completamente separadas umas das outras, para não constituírem focos de infeção recíproca.
Albuquerque escreve, mais adiante, referindo-se à enfermaria: «A ventilação lá é impossível, porque, abertas as janelas que comunicam com a arcaria, o ar pode entrar, mas não tem por onde estabelecer corrente, por não haver em nenhuma das paredes opostas abertura para a sua saída. Em frente da entrada para esta enfermaria está o quarto chamado de operações, apenas separado daquela por uma pequena casa escura e imunda onde estão as latrinas, que muitas vezes lançam para a enfermaria um cheiro insuportável.
Mais à frente, José Albuquerque resume os resultados das más condições cirúrgicas: «Das amputações da coxa não nos consta que uma só tenha vingado, sendo tal o receio destes resultados que só se praticam tais operações quando a inevitabilidade da morte é reconhecida não se operando».
Dez anos mais tarde (em 1877) José Dias de Almeida Júnior, que viria a ser cirurgião, pediatra, Lente da Escola Médico-Cirúrgica e Diretor do Hospital de Santo António, volta a sublinhar a questão do arejamento e critica duramente as condições higiénicas do hospital: «Pelo que diz respeito ao sistema de despejos, nós já aludimos a ele em algumas partes; para provar as suas más condições basta dizer que, no centro de cada uma das novas enfermarias de mulheres, há uma latrina, onde a limpeza não pode ser bem mantida, porque lhe falta a grande abundância de água que seria necessária; que não há a desinfeção tão aconselhada hoje e que tão bons resultados tem dado».
No espaço de tempo mediado entre as teses de Sousa Albuquerque e de Almeida Júnior acontecera, nos Estados Unidos da América, a Guerra da Secessão. Tornara-se necessário tratar os feridos na proximidade dos campos de batalha. Para os abrigar, montavam-se, lado a lado, pequenas barracas de madeira. Verificaram-se reduções surpreendentes nas taxas de mortalidade e morbilidade, em comparação com registadas nos hospitais tradicionais.
Por indicação de Virchow, o projeto foi recuperado durante a guerra franco-prussiana (1870-1971) e os resultados voltaram a ser animadores. Em 1871, o Correio Médico de Lisboa propôs a construção de hospitais barracas para prevenir as infeções hospitalares. A ideia foi apresentada, no mesmo ano, à Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa.
José de Almeida Júnior, na terceira parte da sua tese, defendeu a construção de hospitais barracas para a prática de cirurgia. Escreveu:
Os hospitais barracas fizeram a sua prova como hospitais de guerra; como hospitais civis a sua carreira não tem sido menos brilhante.
A separação, o espalhamento dos doentes é o único meio de evitar os efeitos perniciosas da acumulação.
Constituídos por pavilhões isolados, cada um com a sua atmosfera própria, suficientemente separados entre eles, colocam os doentes em ótimas condições. Podem-se multiplicar os pavilhões que se não altera significativamente a salubridade do conjunto.
A ideia da dispersão das construções hospitalares, compostas por diversos pavilhões em lugar duma construção monolítica vingou, durante algum tempo. O exemplo dessa conceção vê-se ainda hoje, em Lisboa, no Hospital que tem o nome de Curry Cabral e foi construído entre 1902 e 1904.

                          Hospital de Curry Cabral

Mais tarde, o progresso da engenharia de construção hospitalar iria permitir melhorar as condições de higiene dos edifícios e os grandes hospitais de Lisboa, Porto e Coimbra foram sendo inaugurados entre 1953 e 1987. 

terça-feira, 8 de novembro de 2016



A HISTÓRIA DA ANESTESIA EM PORTUGAL


Joaquim Figueiredo Lima prestou um serviço inestimável à História da Anestesia em Portugal ao publicar, este ano, o primeiro trabalho sistematizado sobre o passado da sua Especialidade. 
Escolheu alicerçar o seu estudo na análise das Teses de Dissertação Inaugural que afloram temas de Anestesia e foram apresentadas por alunos finalistas das Escolas Médico-Cirúrgicas de Lisboa e do Porto, no final do século XIX e no início do século XX. Recolho aqui algumas ideias avulsas que poderão contribuir para motivar a leitura do livro.
O hipnotismo era utilizado para combater a dor durante as intervenções cirúrgicas desde 1838.
A primeira anestesia com éter foi efetuada em Boston, em 1846, pelo dentista William Morton. A palavra “anestesia” foi criada logo a seguir. O procedimento chegou à Europa ainda nesse mesmo ano, e o éter foi utilizado, em dezembro, em Londres, Edimburgo e Paris. A partir de então, a sua utilização em cirurgia generalizou-se no mundo inteiro.
Em Portugal e no Brasil, começaram a realizar-se anestesias gerais com éter na primeira metade de 1847. No mesmo ano, a sociedade de Ciências Médicas de Lisboa divulgou a nova técnica por todo o país.  
O clorofórmio foi aplicado pela primeira vez como anestésico, no Porto, numa parturiente, por José Sinval.
As tentativas de anestesia nem sempre foram bem-sucedidas, registando-se alguns falhanços. Surgiram reações contra a sua utilização, tendo sido utilizados mesmo argumentos de natureza religiosa.
Aos poucos, foram sendo conhecidos os primeiros efeitos secundários da técnica: bronquites, pneumonias e “inflamação do cérebro”. Surgiram também as primeiras mortes atribuídas à anestesia.
Em 1850, Narciso Sampaio apresentou, na Escola Médico-Cirúrgica do Porto, uma Tese de Dissertação Inaugural intitulada “Reflexão acerca das vantagens e inconvenientes que resultam da aplicação dos anestésicos nas operações cirúrgicas”. No mesmo ano, Lima e Bastos formulou um trabalho sobre a utilização do Método anestésico considerado em suas relações com a Arte dos Partos.
Foram sendo publicados numerosos estudos sobre as vantagens e inconvenientes dos anestésicos de inalação. Em janeiro de 1859, o jornal “The Times” citou um artigo de “The Westminster Review” no qual se estimava em 1,2 milhões o número de anestesias realizadas nos dez anos anteriores nos Estados Unidos da América, Inglaterra, França e Alemanha. O número de mortes resultantes da aplicação do processo era estimado em 74, sendo o clorofórmio o mais utilizado e, portanto, o que provocava mais óbitos.
Em 1869 foi utilizada, pela primeira vez, uma anestesia mista, proposta alguns anos antes por Claude Bernard. Baseava-se na injeção hipodérmica de cloridrato de morfina, antes da inalação de clorofórmio.
Em 1879, Paul Bert publicou um trabalho intitulado Anesthésie par le Protoxyde d`Azote mélangé d`Oxygène et employé sous pression. Referia-se a experiências efetuadas em animais. A aplicação a seres humanos não tardou e, em 1880, Raphael Blanchard publicou em Paris uma tese de dissertação que referia o emprego da nova técnica. A novidade chegou depressa a Portugal. Em Julho de 1880, António Magalhães apresentou na Escola Médico-Cirúrgica do Porto uma Tese de Dissertação Inaugural subordinada ao tema “Anestesia Proto-azótica”.
Aos poucos, foram sendo experimentados novos agentes anestésicos. O Brometo de Etilo foi apresentado em Portugal por António Leitão, em 1882, com base na experiência de autores franceses.
O éter e o clorofórmio foram os produtos mais utilizados em Anestesia Geral durante meio século. Foram sendo progressivamente abandonados à medida que foram sendo conhecidos agentes anestésicos mais eficazes e seguros.
Em 1946, um século após o seu início da anestesia clínica, foi proposta na Sociedade de Ciências Médicas de Lisboa a criação de especialistas em Anestesia. 

Fonte: Figueiredo Lima, Joaquim. A Anestesia em Portugal (sec. XIX e início do sec. XX). Chiado Editora, Lisboa, 2016.

domingo, 6 de novembro de 2016


“AR” E OUTRAS MALEITAS


O “Ar” seria uma paralisia provocada pelo ar corrupto. Bluteau atribui-lhe o significado de “acidente de paralisia”.
A pesquisa a que procedi na Internet deu resultados insuficientes para caracterizar o suposto mal. Não fui capaz de entender se o “vento excomungado ou ar brabo” que passou causando paralisia em alguma parte do corpo (Rezas e simpatias – Professora Marly) e “ar arrenegado” de Manezinho da ilha (blogue Folclore) englobam ou não as inúmeras doenças neurológicas que provocam paralisias ou parésias, com relevância estatística para os acidentes vasculares cerebrais.
José Pedro Paiva dedica mais atenção à terapêutica do “Ar” que ao seu diagnóstico. Descreve várias fórmulas de tratamento.
Maria Fernandes, a Grila de alcunha, da freguesia de Macinhata de Seixa tratava os seus doentes com rezas: Fulano, pela graça de Deus e da Virgem Maria aqui te tiro o ar da noite e o ar da lua e o ar da morte e o ar do vivo e o ar de toda a coisa ruim, com S. Pedro e S. Paulo e todos os santos e santas.
António Martins, da freguesia de Avelãs de Cima, denunciado pelo próprio filho, mandava pôr o pé direito do doente sobre uma tábua em que tinha botado terra e o cercava com uma ponta de faca e isto antes do meio-dia e em tempo em que o sol fosse descoberto, e nunca depois do meio-dia, nem quando estivesse turvo e que nesse tempo rezava, e que da terra que estava debaixo do pé direito do enfermo, metia em uma bolsinha e a punha ao pescoço do doente e que lhe mandava rezar nove Padre-nossos e nove Ave Marias por espaço de nove dias.
José Pedro Paiva descreve ainda os tratamentos praticados pelos curandeiros para o “Mal do sentido”, que designava uma série de afeções ortopédicas, o “Cobrão”, palavra que ainda hoje é usada como sinónimo de Herpes Zooster ou Zona e abarcava uma série de irritações cutâneas atribuídas ao contacto com um animal repelente como as cobras, aranhas e lagartos. O “Fogo” ou “Osagre” era outra afeção cutânea que provocava ardor. As lombrigas eram tratadas principalmente com rezas e as mordeduras de répteis e de “cães danados” com rezas e ervas “virtuosas”.
As feridas, designadas por “carne talhada” ou “carne rendida”, eram vulgarmente tratadas aplicando sobre elas panos em forma de cruz. O benzedor bafejava-as e recitava algumas palavras em voz baixa. Havia quem colocasse sobre os ferimentos “uma massinha de pão com azeite, que era boa para puxar as matérias”.
Dou aqui por findas as referências ao livro do historiador José Paiva e às citações da sua obra cheia de interesse. Tenciono rematar esta série de pequenos artigos sobre as práticas de curandeiros e benzedores com o testemunho de um “curador" atual.


Fontes
José Pedro Paiva. Práticas e crenças mágicas. O medo e a necessidade dos mágicos na Diocese de Coimbra (1650 – 1740). Minerva Histórica, Coimbra, 1992.
Internet.


sábado, 5 de novembro de 2016



QUEBRANTO


O “quebranto”, ou “olhado” é uma entidade mais fácil de delimitar que o “ar”, a “espinhela caída” ou o “cobrão” e tem como única etiologia conhecida o mau-olhado, motivado geralmente por sentimentos de inveja.
Segundo o Dicionário de Bluteau, escolhido por ter sido publicado durante o período de vigência do estudo de José Paiva e também pela sua riqueza descritiva, olhado, quebranto e fascinação são três nomes que significam o mesmo. Olhado denota a causa, quebranto denota o efeito e fascinação significa uma e outra coisa… Entre os muitos sintomas que causa, é notável o quebrantamento, pouco vigor e grande lassidão de todo o corpo, donde nascem grandes desejos de estar deitado, suspiros longos, bocejos muitos, apertos do coração, aborrecimento a todo o comer, as cores do rosto mudadas, a cabeça descaída, o rosto triste…
O conjunto dos sintomas configura um estado depressivo. Para o tratamento, ouçamos dois relatos de José Pedro Paiva.
Martinho Afonso, de Anobra, mais tarde preso pelo Santo Ofício, curava o quebranto proferindo as palavras seguintes: Eu te benzo em nome de Deus, em nome de Jesus, a hora em que Deus nasceu, meu Senhor Jesus Cristo, eu ponho minhas mãos vós ponde Vossa Divina virtude, Santa Eusébia pariu Santa Ana, Santa Ana pariu a Virgem, a Virgem pariu Jesus Cristo, assim como estas palavras são santas verdades, assim vós meu Senhor Jesus Cristo, este mal, este olho, este quebranto seja fora do corpo e das ilhargas e de todos os membros deste pecador. Em seguida rezava três Padres-nossos e idêntico número de Ave Marias em honra da Santíssima Trindade, com o que, segundo ele, melhoravam os enfermos.
Maria Antunes, viúva, de trinta e três anos, moradora no Pedrógão Grande tomava sete brasas que fizera das palhas duma vassoura com que varria a casa e as lançava numa tigela com água, dizendo: dois to deram, três to tiraram e ia lançando as brasas até fazer o dito número; rezava cinco Padre-nossos e cinco Ave Marias em louvor das chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo e dava a beber ao doente três golos da água da tigela e depois disso lhe dava três voltas ao redor da cabeça e tomava a dita água e a lançava para trás do lume.
José Pedro Paiva comenta o significado simbólico desta prática. Dois olhos foram os que deram o quebranto e três as pessoas da Santíssima Trindade que os tiraram; a vassoura é um instrumento de poder sagrado, na medida em que serve para limpar; as cinzas transportam o valor residual deste caráter sagrado; a água tem um caráter purificador e regenerador; os círculos em volta da cabeça visavam preservar o corpo dos malefícios do olhado e o ritual de lançar a água para um local por onde se não passasse simbolizava a retenção dos poderes maléficos no instrumento de cura, que deveria ser colocado num local inacessível, para que o mal se não repetisse.
Na Internet, encontram-se inúmeros artigos sobre o quebranto e os modos de o combater. São descritos métodos de confirmar o diagnóstico, sobretudo em crianças, em que a semiologia é mais pobre. Eu assisti a um, em Coimbra, há cinquenta anos. Os que são repetidamente descritos na Net são semelhantes ao que presenciei. Deita-se água num prato e deixam-se depois escorrer cinco pingos de azeite. Se o azeite se juntar numa só bolha, estará tudo bem. Se o azeite continuar separado, há quebranto e deve ser tratado.
Na terapêutica e prevenção, para além das rezas, recorre-se ao uso de amuletos conhecidos, como as figas, as patas de coelho, os olhos turcos e as ferraduras. Há quem coloque determinados cristais nos aposentos. Nos rituais de tratamento entram muitas vezes os ramos de arruda e de rosmaninho.
Curiosamente, para quem acredita nele, o olhado não atinge apenas humanos. Animais que perdem a vivacidade e esmorecem e plantas que murcham sem causa aparente podem também ser vítimas do malefício.

Fontes:
Bluteau, Raphael. Vocabulario português e latino. Coimbra, Colégio das Artes da companhia de Jesus, 1712 – 1728.
José Pedro Paiva. Práticas e crenças mágicas. O medo e a necessidade dos mágicos na Diocese de Coimbra (1650 – 1740). Minerva Histórica, Coimbra, 1992.

Internet.

sexta-feira, 4 de novembro de 2016



A ESPINHELA CAÍDA




Encontrei em saldo, numa livraria prestes a encerrar, um livro precioso de um historiador de Coimbra que aborda as crenças mágicas prevalecentes na região na segunda metade do século XVII e na primeira do século XVIII. 
José Pedro Paiva esmiuçou os registos das visitas pastorais da diocese de Coimbra ao longo de 90 anos, procurando relatos referentes às acusações de prática de magia recolhidas pelos religiosos visitadores. Sistematizou-os e produziu uma obra cheia de interesse que abre uma janela sobre uma realidade social paralela à nossa e muito próxima dela.
No começo, a Medicina e a Magia andaram de mãos dadas. Segundo a limitada informação disponível, os “curadores”, “benzedores”, “mezinheiros” e “bruxos” continuam em plena atividade, escondendo as suas práticas dos olhares profanos. Pouco terá mudado nas crenças populares. Lembro-me de um “bruxo” de Almada que me enviava ocasionalmente doentes que não sabia tratar. Nunca falei com ele (que eu saiba) mas tratava-se seguramente dum homem sensato. A triagem a que procedia não era pior que a praticada pela maior parte dos meus colegas de profissão.
Irei publicar neste blogue alguns pequenos artigos sobre as entidades clínicas mais ou menos definidas diagnosticadas e tratadas pelos curandeiros. Parti das informações contidas neste livro e fui-as completando com achegas provenientes de outras fontes, contando-se entre elas artigos publicados na Internet.
Neste pequena “nosologia” começarei por descrever a abordagem da “espinhela caída”, uma doença frequente. É, pelo menos, um dos males mais vezes referidos no livro de José Paiva. Houve quem lhe chamasse “mal do estômago” e a caracterizasse essencialmente pelos sintomas de dor e sensação de opressão no epigástrio.
A “espinhela” é o apêndice xifoide. Ficará “caída” se torcer ou dobrar. As etiologias propostas para a modificação anatómica são muito variadas. Do dicionário mais ou menos enciclopédico do padre francês Raphael Bluteau, começado a publicar em Coimbra em 1712, os mecanismos possíveis para fazer cair a espinhela vão de esforços e traumatismos à tosse e a distúrbios alimentares.
As entidades nosológicas da Medicina Mágica têm contornos mais esbatidos que as da nossa. Existindo poucas vezes em forma escrita, são transmitidas de geração em geração e o significado das palavras varia com o tempo e com a geografia. Enquanto nos registos feitos em português, “espinhela caída” designa geralmente formas diversas de padecimento gástrico, nas publicações de origem brasileira, fáceis de encontrar na Internet, o termo traduz-se mais ou menos por lombalgia de esforço. É apontado para o mal um critério objetivo de diagnóstico. Mede-se, com uma linha, a distância que vai da ponta do dedo anular até ao cotovelo e aplica-se o dobro dessa medida à cintura do doente. Se faltar, ou exceder um palmo, a espinhela está caída.
As terapêuticas são também variadas. Associam, de modo geral, rezas ou formulações mágicas orais à aplicação de substâncias pretensamente curativas.
Deixando de lado as variadas propostas brasileiras de tratamento, passo a citar José Pedro Paiva:
Maria Antónia, de Trouxemil, curava este mal aplicando na região das queixas um emplastro feito de mel misturado com incenso e mandando rezar nove credos em louvor da Paixão de Cristo, nove Avé Marias em honra do parto da Virgem e um Padre Nosso e uma Avé Maria pelas almas do Purgatório.  
Maria Rodrigues, de Albergaria-a-Velha mandava aquecer um pouco de vinho, mergulhava nele um raminho de alecrim e esfregava com ele a testa e a “boca do estômago” do doente, mandando-lhe rezar nove salve rainhas e cinco credos, enquanto repetia as seguintes palavras: se tu tens a espinhela caída, eu ta levanto em louvor da Virgem Nossa Senhora.
Isabel Luís, da Celavisa, dispensava o uso de medicamentos. Ajoelhava-se, benzia-se e rezava: tens a espinhela caída, a Virgem Nossa Senhora ta concerte e ta torne a seu lugar; espinhela têm-te em ti assim como Nosso Senhor se teve em si, espinhela ergue-te no corpo assim como Nosso Senhor Jesus Cristo se teve no horto, espinhela ergue-te na veia assim como Nosso Senhor Jesus Cristo se teve na ceia, espinhela ergue-te forte, assim como Nosso Senhor Jesus Cristo se teve na morte; assim como vosso corpo meu Senhor Jesus Cristo foi rendido, sentido, desconjuntado na cruz e crucificado, vós meu Senhor para remir e salvar pecadores fostes servido de os visitar em Val de Manos, assim vós, Senhor, remediai esta necessidade.  


Fontes:
José Pedro Paiva. Práticas e crenças mágicas. O medo e a necessidade dos mágicos na Diocese de Coimbra (1650 – 1740). Minerva Histórica, Coimbra, 1992.
Bluteau, Raphael. Vocabulario portuguez e latino. Colégio das Artes da Companhia de Jesus, Coimbra, 1712-1728.