Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

segunda-feira, 31 de março de 2014

                        

      REUNIÃO DE PRIMAVERA

                  SOPEAM    

                     

              PALMELA 11 A 13 DE ABRIL DE 2014


                                                          
  

                             PROGRAMA


     6ª Feira, 11  
 
     Até às 20 horas ─  Alojamento
     20.00 horas ─ Prova de vinhos e queijos na Casa Mãe
                                      Leitura de poemas

      Sábado, 12  ─  Sessão na Biblioteca Municipal de Palmela  

      9.30 –  Abertura oficial
            Representante do Município, Presidente da SOPEAM                            
            Diaporama “Não deitem flores ao rio”, de Manuel Gardete
      10.15 – Escrever é difícil – Baltazar Caeiro
      10.35 – O fim da Teoria dos Humores – Joaquim Barradas
      11.05 -  História do Hospital do Outão – Rogério Palma Rodrigues
      11.25 - "A Subtil Poesia do Instante" - J. Simões Fernandes
      12.00 – Visita guiada ao Centro Histórico de Palmela e ao Castelo

      13.30 – Almoço (em Palmela)

      15.30 –  Bosh, pintor do lado escuro da alma – António Trabulo
      15.50 – Plumagens, Equídeos e Geométricas – Maria José Leal
      16.10 – Retrospetiva da escultura pessoal – Júlio Pego
      16.30 – A árvore da vida – Baltazar Caeiro        
      17.10 – Pausa
      17.40 – Comunicações  livres
      20.30 ─  Jantar, Leitura de Poesia 
 
      Domingo, 13
      09.30 – Visita ao Convento da Arrábida e Hospital do Outão

      13.00 – Almoço e despedida  
                        

     

UM CÁLCULO CORALIFORME




Apareceu-me na consulta uma doente com uma hérnia discal lombar a que pus indicação operatória. Como referia também queixas urinárias, enviei-a a um Colega urologista cujo nome será gentil não revelar. Propôs também operá-la.
Era preciso saber qual das especialidades deveria ter prioridade. Contactámos por telefone.
─ Opero eu primeiro – propôs o meu colega e amigo. A senhora tem um grande cálculo coraliforme.
Estranhei não o ter visto nas radiografias simples da coluna lombar, nem na radiculografia. Devo sublinhar que a história que relato se passou antes da T.A.C.
Nada tinha a opor à sua opinião.
Dois meses mais tarde, a doente voltou à minha consulta.
─ Afinal, o Senhor Doutor urologista diz que eu não preciso de ser operada por ele. E olhe que cheguei a estar internada…
O colega telefonou-me a explicar a situação. Naquele tempo, a consulta de Urologia no Hospital do Desterro fazia-se numa espécie de mesa comprida partilhada por vários médicos e doentes. As radiografias que lhe foram ter à mão mostravam um cálculo coraliforme de tamanho impressionante.
A doente foi internada já com a cirurgia agendada. Na véspera, o meu colega foi rever o processo clínico, como fazia sempre. A mulher não tinha cálculo nenhum. As imagens em que o diagnóstico se baseara pertenciam a uma doente que estava, na manhã da consulta, sentada a seu lado.

domingo, 30 de março de 2014


        MEDICINA EM MACAU


                                        VI

                MÉDICOS JESUÍTAS NA CHINA


   Relação do sucesso que teve na China e Corte de Pequim
                         a chegada dos médicos europeus

    Resumo da transcrição feita pelo Dr. José Caetano Soares de «Jesuítas na Ásia»



O Imperador da China pediu ao Padre Grimaldi que lhe enviasse para a Corte um médico europeu.
A ideia não agradava aos Padres de Macau. Teriam pouca fé no sucesso da Medicina Europeia na China. Por outro lado, faltariam os médicos na cidade. A ideia tardou a concretizar-se.
Anos depois, já em 1691, o Jesuíta Isidoro Lucci, italiano que tinha em tempos estudado Medicina e pretendia missionar no Japão, desembarcou em Macau. Grimaldi, sabendo que a Corte seria informada de que chegara outro médico ao pequeno domínio português, fê-lo seguir viagem. Lucci partiu para Pequim em maio de 1692, acompanhado pelo cirurgião João Baptista Lima, que “ainda que china de nação, se criara entre europeus em Goa, Batávia e Sião” e servia o Senado.
A sabedoria milenar chinesa aconselhava a desconfiança. O médico Lucci foi sujeito a testes e a sorte não o beneficiou. Os doentes com que foi confrontado não o deixaram brilhar: uma mulher histérica, um caso grave de tifo exantemático, uma varíola hemorrágica, um caso de reumatismo arrastado e uma tuberculose em fase terminal.
No dizer doutro jesuíta, que escreveu de Pequim “os casos não lhe sucederam bem e a medicina europeia não saiu deles com grande honra”.
O cirurgião Lima teve melhor sorte. Tratou “postemas, alporcas, chagas mal incarnadas e mal dos olhos”. Na opinião dos Padres, mostrou-se competente: “com a longa experiência, tinha boas receitas e melhores mãos, além da natural audácia…
Exibiu a ousadia atrevendo-se a drenar um abcesso parotidiano dum jovem príncipe, 9º filho do Imperador Kang Hsi. Fê-lo, segundo consta dos relatos, com um ferro ao rubro. A meio da noite, foi mandado chamar. O príncipe desfalecera. Depois de observar o doente, declarou que “o menino nada tinha, salvo o medo que os seus lhe tinham causado".
João Baptista Lima arriscava a vida. Havia quem dissesse: “se o menino morrer, não morre só”. A criança curou-se e o cirurgião ganhou fama e proveito.
Um dia, o próprio Imperador adoeceu com febre alta e, apesar das fracas provas dadas, Lucci foi chamado ao Palácio, acompanhado do velho Padre Francisco Simões, Superior da Missão no interior. Os Jesuítas não quiseram arriscar o prestígio da Companhia. Observaram o ilustre doente, mas não fizeram prescrições, alegando não haver em Pequim os remédios europeus adequados.  

Fonte: Padre Manuel Teixeira, A Medicina em Macau. Governo de Macau, 1998.


sábado, 29 de março de 2014

                          

         UM ASSASSINO



─ Doutor, eu também tenho o seu dom…
Devo tê-lo olhado com ar interrogativo.
O Manuel (não era o seu nome verdadeiro) continuou:
─ O dom de tranquilizar as pessoas… De curar…
Fez uma pequena pausa e continuou.
─ Às vezes, quando vejo uma criança a chorar, coloco-lhe as mãos na cabeça. Sossega logo.
O Manuel era um tipo estranho, de sorriso fácil, que por vezes parecia alheado, como se tivesse deixado parte de si noutro lugar e não estivesse completo à minha frente.
Tinha uma boa empatia comigo e fazia-me confidências.
─ Gosto de subir sozinho às montanhas. Fico leve e sinto-me bem. Parece-me que estou perto de Deus.
O meu feitio desconfiado obrigou-me a enviá-lo a uma consulta de Psiquiatria. Nunca cheguei a saber se tinha alucinações.
Eu operara-o a um adenoma não funcionante da hipófise anos atrás. Era seguido por mim e pela Endocrinologia. O Manuel era atrevidote e tentou namorar a colega que colaborava no seu tratamento. Não esmoreceu por ter sido repudiado. Estaria habituado a ganhar e a perder.
Um dia, soube que o Manuel estava preso. Tinha abatido a tiro a mulher com quem vivia e fora condenado a uma mão cheia de anos de cadeia. Não sei se a sua história psiquiátrica chegou a ser tomada em conta pelo tribunal.
Regressou à minha consulta, acompanhado por dois guardas prisionais. Explicou:
─ Aquilo foi um azar… Estava a apontar para outro lado e a bala fez ricochete. Não sei porque é que o juiz não acreditou em mim…
Ia aparecendo de tempos a tempos, para controlo clínico, imagiológico e laboratorial. As consultas representavam para ele uma quebra na rotina e faziam-se desejar.
Reformei-me e não o vejo há anos. Julgo que, por esta data, já cumpriu boa parte da pena. Trata-se dum homem geralmente bem comportado e é natural que tenha saído em liberdade condicional.
O destino vai tecendo as suas teias. O Manuel conheceu a mulher a quem se juntou e que acabaria por matar nos corredores da Consulta Externa do Hospital de Santo António dos Capuchos, em Lisboa. Foi assim que um doente operado por mim assassinou uma doente operada pelo meu colega Maia Miguel. 

sexta-feira, 28 de março de 2014

              
        MEDICINA EM MACAU
       
                       V

                VARÍOLA

O português Ribeiro Sanches foi médico da corte de S. Petersburgo. Durante a sua estadia na Rússia (entre 1731 e 1746) trocou correspondência com os sábios jesuítas residentes na China. O contacto foi facilitado pelo facto de Policarpo de Sousa, bispo de Pequim, ter sido seu condiscípulo.


Conta o padre Manuel Teixeira, citando o Dr. J.Soares, que Ribeiro Sanches pediu a D. Policarpo informações sobre a varíola, a que os chineses davam poeticamente o nome de “flor do céu” (T`ien-fá). O bispo consultou vários médicos antes de responder. Infelizmente, não referiu o aspeto mais importante da questão: na China fazia-se inoculação do vírus da varíola, como processo ativo de imunização, desde a dinastia Sung, no século X.
Os médicos recolhiam as escamas secas das pústulas, pulverizavam-nas e diluíam-nas em água. A vacina era administrada nas narinas de gente saudável quando se aproximava uma epidemia. Apesar de se escolherem dadores com formas atenuadas da infeção, era comum o desencadear de formas graves de varíola. O método terá tido origem na Pérsia ou no norte da Índia.
A ignorância do bispo D. Policarpo em relação ao processo chinês de inoculação, ou a pouca importância que lhe dava, impediu que a vacinação contra a varíola fosse introduzida na Europa por mão portuguesa. Terá sido Lady Montagu, esposa do embaixador da Inglaterra em Istambul (o mesmo que surripiou os relevos do Partenon e os fez transportar para o Museu Britânico) quem levou este conhecimento para Londres. A imunização popularizou-se, com o nome de variolação, antes do advento da vacina de Jenner.
A varíola terá começado na índia. É ali adorada desde tempos incontáveis a Deusa da Varíola, Sitala. 



    Julga-se que foi a partir do continente indiano que a doença alastrou para Ocidente e Oriente, ao longo das rotas comerciais.
Entre 1765 e 1791, na Inglaterra e na Alemanha, Fewster, Sevel, Jensen, Jesty, Rendell e Plett testaram com sucesso uma vacina contra a varíola bovina em humanos. Foi contudo com Edward Jenner, a partir de 1796, que a técnica se aperfeiçoou e se tornou conhecida.


A vacina de Jenner foi trazida de Manila para Macau em 1805 por um cidadão português com nome britânico (Hewitt), comerciante em Macau, tendo sido administrada aos chineses pobres que viviam “amontoados em barcos ou noutros lugares”.
A iniciativa teve sucesso. Em janeiro de 1806, segundo o Ouvidor Manuel de Arriaga, o cirurgião do Partido Municipal, Domingos José Gomes, atestara que ninguém morrera de bexigas na monção daquele ano, ao contrário dos anos anteriores.
As campanhas de vacinação não se sucederam com regularidade. Umas vezes, faltava a vacina e outras a organização sanitária. Sucediam-se em Macau recrudescências da endemia de varíola do sul da China.
Em 1851, segundo um ofício do cirurgião-mor Pereira Crespo, uma epidemia de bexigas colheu na cidade mais de 200 vidas. Novo e mais grave surto da doença ocorreu no final de 1854 e começo de 1855. "Mui poucas famílias deixaram de lamentar a perda d`algum de seus membros". O cirurgião-mor inoculou então mais de 300 pessoas. Na falta da vacina de Jenner, Pereira Crespo retomou em parte a prática chinesa milenar, com sucesso apreciável. Julgo que substituiu a administração nasal pela escarificação.
As epidemias de varíola em Macau repetiram-se (pelo menos) em 1907, 1917 e 1924, embora ocorressem quase todos os anos casos esporádicos ou reveladores de endemia.
Há registos que indicam que as inoculações praticadas com vacinas modernas em Macau ultrapassaram as 80.000 em 1945 e se aproximaram das 30.000 no ano seguinte.
Em 1980, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou a varíola erradicada. Era a primeira vez na História da Medicina que uma doença contagiosa era considerada extinta. A última epidemia conhecida ocorrera na Jugoslávia em 1972. Este avanço extraordinário em saúde pública tornou-se possível por o vírus se acolher apenas em humanos e por não variar o serotipo.  

quinta-feira, 27 de março de 2014


     (IN)CULTURA MÉDICA



Aconteceu na Consulta Externa dos Capuchos. Eu estava a fazer a anamnese a um homem que teria entre cinquenta e sessenta anos. A sintomatologia era sugestiva de estenose canalar lombar. 
Perguntei-lhe pelas doenças anteriores.
─ Eu não tive nenhuma. A minha mulher é que foi operada à próstata.
─ À próstata não foi… Está enganado. A sua esposa fez outra operação qualquer…
─ Não! Foi à próstata!

Não insisti. Pensei maldosamente que cada um tinha a obrigação de saber com quem casara.

quarta-feira, 26 de março de 2014



  SANTO ANTÃO, O ERGOTISMO 
          E JERÓNIMO BOSH


Jeroen (Hieronymus) van Anken nasceu na Holanda por volta 1450 e viveu 56 anos. É o pintor mais original da história da cultura europeia.
A sua obra é absolutamente invulgar e não se parece com a de qualquer artista que o tenha precedido. Levanta um véu sobre a superstição e os pesadelos que afligiam muitos dos habitantes do centro da Europa no final da Idade Média.


O artista ilustrou nos seus quadros um pouco do pavor coletivo que atingia as almas dos seus contemporâneos. Desenhou também deformidades e mutilações.


Este é um esboço a que Bosh deu o título de Mendigos e Tolhidos. Está conservado no Gabinete de Estampas da Biblioteca Real de Bruxelas. O artista desenha uma série de inválidos, incluindo vários amputados.


                     

Pieter Brueghel (O Velho), o mais ilustre dos seguidores de Bosh, pintou também um grupo de mutilados. Julga-se que algumas destas amputações se deviam ao ergotismo.
As amputações eram frequentes no decurso da doença. As extremidades, após um processo de mumificação, chegavam a desprender-se sem sangrarem.
Os inválidos praticavam a mendicidade. O mendigo transportava muitas vezes consigo o membro amputado, para impressionar as almas generosas, predispondo-as à piedade.
O Ergotismo foi descrito por Virgílio nas Geórgicas e por Lucrécio em De Natura Rerum. Ao tempo a doença considerava-se relacionada com a erisipela. Em 1676, reconheceu-se que o ergotismo era provocado pela ingestão mais ou menos prolongada de pão de centeio parasitado pela cravagem (o fungo Claviceps Purpurea).


Em francês, “ergot” é o esporão das patas do galo. O fungo tem uma forma semelhante. Entre outras toxinas, produz ergotamina.
A cravagem desenvolve-se no centeio e noutros cereais sendo mais abundante em anos de primaveras muito húmidas seguidas a invernos frios. Em condições adequadas, ganhava características epidémicas. Como o trigo era caro, o ergotismo atingia mais as classes desfavorecidas. Chamavam-lhe “Fogo do Inferno” ou “Fogo de Santo Antão”. A doença terá sido mais comum na França, na Rússia e na Alemanha.
Segundo Adams, Victor e Ropper, em tempos modernos, foram usados preparados de ergotamina para controlar as hemorragias pós parto atribuídas à atonia do útero. Por outro lado, a ergotamina é frequentemente utilizada no tratamento da enxaqueca. A dosagem excessiva da droga é a causa habitual dos raros casos de ergotismo descritos nos dias de hoje.
Reconhecem-se dois tipos de ergotismo: gangrenoso, devido a um processo vasoespástico e oclusivo nas pequenas artérias das extremidades e convulsivo, ou neurogénico. O último é caracterizado por fasciculações, mioclonias e espasmos dos músculos, seguidos por crises convulsivas. Nos casos não fatais pode desenvolver-se um síndromo neurológico semelhante à tabes, com perda dos reflexos patelares e aquilianos, e perda da sensibilidade superficial e profunda A oclusão arterial conduzia frequentemente à gangrena seca e à perda de membros.
Eram frequentes as alucinações e as dores, isquémica e neuropática.
A ergotamina é quimicamente próxima da dietilamida do ácido lisérgico (LSD), modernamente usada como droga alucinogénica. Foi sintetizada, em 1938, por Albert Hofmann. O químico absorveu acidentalmente, por via cutânea, uma pequena dose e visualizou «imagens fantásticas, formas extraordinárias com padrões de cores intensas, caleidoscópicas»...  
Há quem sugira que a descrição dos delírios provocados pelo ergotismo influenciou Jerónimo Bosh e ajudou o pintor a produzir os seus demónios.


Naquele tempo, a ineficácia da Medicina desviava as terapias para a sombra da igreja. Com os santos generalistas, capazes de toda a sorte de milagres, coexistiam verdadeiros especialistas. Lembramo-nos de Santa Bárbara para as tempestades e de São Cristóvão para a proteção dos viajantes. Com a saúde acontecia o mesmo: Santo Antão tratava o ergotismo, São Severino ajudava a combater a lepra e São Sebastião e São Roque protegiam contra a peste.


Santo Antão, um eremita egípcio do século III é considerado o fundador da vida monástica. Era muito popular na Idade Média. É muitas vezes representado na companhia dum porco. Comer mais carne e menos pão reduzia a probabilidade de contrair a doença.
Ao tempo, a doença era tão frequente que, em 1095, se fundou uma ordem religiosa destinada exclusivamente a tratá-la. Os cónegos agustinianos hospitalares de Santo Antão espalharam hospitais especializados ao longo do Caminho de Santiago.




O único remédio certo para o ergotismo era a peregrinação a Santiago de Compostela. As melhorias eram objetiváveis e atualmente fáceis de explicar: durante as longas caminhadas, reduzia-se o consumo de pão de centeio e comia-se mais pão de trigo.
Contra a doença, popularizaram-se águas e pães santos  (água e pão de Santo Antão.) O vinho santo, que era produzido a partir das vinhas dos conventos e que conteria infusões de relíquias do santo, foi talvez o remédio mais conhecido. A mandrágora também era ministrada, por vezes associada ao vinho milagroso. 



      A banha de porco usava-se como unguento nos órgãos afetados.
A Iconoterapia (contemplação de imagens como medicação contra a doença) poderá explicar a proliferação de quadros em que figura Santo Antão.
O nosso museu das Janelas Verdes (Museu Nacional de Arte Antiga) tem o privilégio de acolher o mais conhecido de todos: «As Tentações de Santo Antão», um dos trabalhos emblemáticos de Jerónimo Bosh.



O tríptico data provavelmente de 1505. Foi pintado em pleno Renascimento. Tanto esta obra como «O Jardim das Delícias» fazem a ponte, ou a transição, entre o imaginário medieval bem presente ainda na Europa e as influências renascentistas que iam ganhando terreno nas artes.



Antão distribuiu os seus bens pelos pobres e passou vinte anos a meditar no deserto, o que provocou a ira do diabo, que o tentou de todas as formas imagináveis.
Bosh retratou as tentações a que o pobre santo foi exposto. Rodeou-o de monstros e de demónios assustadores.



As tentações começam no painel que fica à esquerda de quem olha.
Em cima, o santo é arrastado aos ares pelos demónios.



A meio, enfraquecido pelo jejum, atravessa uma ponte, amparado por figuras piedosas.


Há demónios que leem uma carta debaixo de uma ponte. Um monstro patina no gelo para entregar outra.


O painel da direita mostra uma mulher despida a tentar Santo Antão.
Antão desvia o olhar para o lado, mas lá estão outros seres maléficos a tentar conquistá-lo com comida e bebida.


No painel central vê-se um templo cilíndrico, em ruínas, com a figura de Cristo crucificado no seu interior.
Ao fundo, arde uma aldeia.


Decorre uma missa negra, oficiada por um sacerdote de rosto animalesco. O sacristão tem um funil na cabeça.


Atrás do santo, uma sacerdotisa oferece o cálice a um músico que tem uma coruja poisada na sua cabeça de porco.
Cuttler escreveu sobre o tríptico de Lisboa. Considera esta cena como uma representação do Sabbath.  A mulher distribui o Vinho Santo, que alegadamente combateria o ergotismo. As imagens fazem relembrar o clima herético do final da Idade Média.


As partes média e inferior do quadro são ocupadas por magníficas figuras diabólicas, em parte humanas e em parte compostas por animais, plantas ou objetos. 
Em baixo e à direita, uma mulher-árvore de rosto azulado cavalga uma ratazana e embala uma criança.
É este painel que transmite a mensagem essencial da obra. Estamos rodeados pelo mal. Só com a renúncia às coisas do mundo e com a ajuda de Cristo se pode alcançar a salvação.


A pintura de Jerónimo Bosh, efectuada à volta do ano 1500, terá influenciado movimentos artísticos surgidos cinco séculos mais tarde. Curiosamente, Salvador Dali também pintou as Tentações de Santo Antão. 



Fontes:
Adams, R, Victor, M. e Ropper,A. Principles of Neurology. McGraw-Hill,1997.


Suárez, Isabel Morán. El fuego de San António. Estudo del ergotismo en la pintura del Bosco. Asclepio. Vol. XLVIII-2-1996. Recolhido em http:/Asclépio.revistas.csic.es
Imagens: Internet