Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

segunda-feira, 30 de outubro de 2023

      MÉDICOS: NEM DEUSES, NEM DEMÓNIOS

 

   Foi apresentada no sábado passado no auditório da Ordem dos Médicos em Lisboa  a obra coletiva "Médicos: nem deuses, nem demónios". 

A ideia de produzir este livro nasceu durante uma conversa com o Professor José Manuel Mendes, presidente da Associação Portuguesa de Escritores. Faria falta, ou pelo menos, poderia ser bem-vindo um terceiro volume de “Deuses e Demónios da Medicina” de Fernando Namora. Foram minhas a iniciativa e a coordenação do grupo de trabalho.

Namora, ilustre médico e escritor integrou durante vários anos os corpos gerentes da então SOPEM (Sociedade Portuguesa de Escritores Médicos) a que, em boa hora, se acrescentou o “A” de Artistas. 

Pareceu-nos razoável que a SOPEAM apadrinhasse a obra, que se pretendia ser coletiva. Contatou-se então um grupo de médicos ligados à SOPEAM ou à História de Medicina.

Foram estabelecidas algumas regras muito gerais tendentes a conseguir alguma homogeneidade para o conjunto do livro. Deixou-se, contudo, ao critério de cada autor a escolha do tema a abordar e o sistema ortográfico preferido. Ora, os médicos estão habituados a tomar sozinhos decisões difíceis, o que favorece o desenvolvimento de personalidades fortes. Não surpreende que a pretendida homogeneidade tenha cedido algum espaço à diversidade.

Este projeto levou tempo a implementar e, como acontece em muitos percursos, houve entusiasmos que esmoreceram e colaboradores que ficaram pelo caminho. Para compensar as falhas, dois dos autores redigiram mais de um capítulo.

Apresentamos assim uma obra coletiva de nove escritores médicos que prepararam biografias curtas de onze personagens importantes na História da Medicina. Curiosamente, dois destes não foram médicos: Leonardo da Vinci, o primeiro grande anatomista e o Abade de Faria, que, antes de todos,  procurou  estabelecer as bases científicas do hipnotismo.

 Alguns dos colaboradores deste livro foram professores universitários enquanto outros presidiram à SOPEAM. Um dos nossos articulistas foi Bastonário da Ordem dos Médicos. Todos têm obra publicada. José Manuel Mendes redigiu o prefácio.

Apresento a lista dos autores e os títulos dos capítulos:


     Baltazar Caeiro – Deuses e Demónios… … sempre haverá    

     Mª José Leal – Maimónides e os juramentos médicos                 

     António Trabulo - Leonardo, o Anatomista                             

     David de Morais - Amato Lusitano                                           

     Cristina Moisão - Zacuto Lusitano                                           

     Joaquim Barradas - William Harvey                                         

     Fortuna Campos – Feliciano de Almeida                                

     David de Morais – Abade de Faria                                          

     António Trabulo – Harvey Cushing                                         

     Carlos Vieira Reis – Elysio de Moura                                      

     António Trabulo – Josef Mengele                                           

     Germano de Sousa – Machado Macedo                                  


Excetuando o artigo do Dr. Baltazar Caeiro, que é intemporal, os capítulos foram alinhados por ordem cronológica de nascimento dos personagens estudados.

A publicação da obra foi subsidiada pelo Conselho Regional do Sul da Ordem dos Médicos. 





sábado, 14 de outubro de 2023

 


               CAMILO E OS MÉDICOS


 


Por oferta gentil de António Barbedo, Psiquiatra e Poeta, recebi recentemente o grosso volume compilado pelo historiador médico Maximiano Lemos intitulado "Camilo e os Médicos" e publicado no ano de 2012 pela Seção Regional do Norte da Ordem dos Médicos. 

 O centenário do nascimento de Maximiano Lemos, celebrou-se há poucos dias. Teremos oportunidade de o lembrar no decurso da V Semana do Autor Médico, um encontro bienal  de escritores e artistas plásticos médicos que tive a iniciativa de organizar há alguns anos e que promete continuar. Irá decorrer na sede da Ordem dos Médicos, em Lisboa, de 21 a 28 do mês corrente.  Maximiano Lemos será a figura central deste evento.


Esta curta nota não se destina, porém, a homenagear Camilo Castelo Branco, de quem fui biógrafo e sou admirador quase incondicional, nem Maximiano. Pretende apenas registar mais uma referência elogiosa a este blogue. Passo a transcrever uma parte do prefácio da autoria de Miguel Guimarães, então Presidente do Conselho Regional do Norte da Ordem dos Médicos e mais tarde Bastonário.  

Atente-se no que conta o ilustre colega António Trabulo que, em tempos de outros meios e de outras tecnologias se dedica, através do seu blogue ( ao qual, já agora aconselhamos uma visita), a continuar a obra de Maximiano Lemos.  “A 21 de maio de 1890, Camilo escreve ao oftalmologista Edmundo de Magalhães Machado, de Aveiro, rogando-lhe que o salve da cegueira. O médico desloca-se a Ceide a 1 de junho. Reconhecendo nada ser capaz de fazer pela visão do escritor, diz palavras de circunstância. Enquanto Ana Plácido acompanhava o médico à porta, Camilo suicidou-se, disparando um tiro de revólver na cabeça.”

Lembro que neste blogue foram já publicados 190 artigos originais e que o número das visitas ultrapassou os 135.000.




 

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

 

                          O SÉTIMO CÃO




Levo cada noite o Sebastião a passear no jardim. É o meu sétimo cão.

Li em tempos (já não sei onde) que um homem tem seis ou sete cães antes de morrer.

Conto bastantes anos e não poderei viver muitos mais. Não me aflijo com isso. Considero que soube viver e tenho esperança de saber também morrer.

Vou caminhando.

O vento comunica a própria ansiedade aos ramos dos arbustos. Aprenderam cedo a dobrar para não quebrarem.

Lembro-me bem dos cães que tive. Estimei-os e fui estimado por eles.

Irei falar de cada um sem entrar em grandes pormenores para não entediar os leitores.

O Leão foi o primeiro dos meus cães. Era um Pastor da Serra da Estrela. Por essa altura, eu ia nos quatro ou cinco anos de idade e morava em Almendra. Morreu atropelado por um camião. Não haveria muito trânsito na terra e o animal não chegara a desenvolver as competências que lhe permitiriam evitar esse tipo de ameaças.

Decorreu quase uma dezena de anos até que voltássemos a ter outro cão. Tratou-se, aliás, duma cadela. Era uma Leoa da Rodésia e chamava-se Diana. O meu pai adquiriu-a na Estação Zootécnica, que ficava próxima do Lubango. Sempre tratámos bem os animais, mas a Diana chegou-nos já com uma fobia. Se calhava ouvir um tinir de correntes, fugia para longe e tardava a voltar. Imagino os tratos que lhe deram quando era pequenina para lhe magoarem tanto a memória.

Perdemo-la na caça, perto da nossa fazenda do Gando. Dessa vez, não houve tinir de correntes que a amedrontasse. Esperámos algumas horas por ela, antes de desistirmos de a chamar. Terá sido atacada por algum animal bravio e poderoso. Os leopardos, naquele tempo, abundavam na região.

Eu era já casado e tinha duas filhas quando me ofereceram o Snoopy. Suponho que, à época, esse seria um dos nomes de cães mais frequentes. Era então muito popular nos jornais a banda desenhada do Charlie Brown. O Snoopy era vagamente “pequinois” e foi sempre mais cão das meninas que meu. Acompanhava a minha mulher até à entrada do mercado. Como não era autorizado a entrar, deitava-se à porta e esperava que a dona saísse.

Naquele tempo, os cães andavam soltos na rua. Seriam muitos e causariam incómodos, para além da sujeira. As câmaras municipais tinham empregados que se ocupavam em os capturar. Após umas semanas no canil, os que não fossem reclamados eram abatidos. Os funcionários estendiam redes que iam dum lado ao outro da rua, mas os animais mais leves e mais ágeis saltavam-lhes facilmente por cima.

O Snoopy viveu 12 anos. Morreu de leishmaniose, a doença que já o cegara. Quando envelhecera e enxergava pior, deixou-se apanhar duas vezes pela rede da câmara. Fui busca-o ao canil municipal. Enquanto os “colegas” se entretinham a brincar ou a discutir, dei ambas as vezes com o cãozinho de focinho encostado à porta de rede, à espera de que alguém o viesse libertar.

A sua morte desencadeou em nossa casa uma espécie de tragédia. Imaginei que as minhas filhas iriam chorar de forma semelhante quando chegasse a minha vez de partir.


O Brutus era um Boxer com alguns atropelos na linhagem. Tinha o focinho mais comprido e o corpo mais avantajado que os espécimes de raça pura. Coexistiu com o Snoopy durante mais de um ano. Embora fosse muito mais corpulento do que ele, reconhecia-o como chefe. O mais pequeno tinha a hierarquia em grande apreço e apreciou devidamente a promoção tardia.

Nunca na vida tinha comido tanto. Empanturrava-se, para deixar ao subalterno a menor quantidade possível de ração. O Brutus aguardava pacientemente a sua vez.

Na rua, o cãozinho, que fora sempre humilhado pelos animais mais corpulentos, assumiu plenamente a qualidade de chefe de matilha e conheceu o seu período de glória.

Com as costas quentes, deu em valentão. Provocava ruidosamente os adversários. Quando a luta começava ele, que já enxergava mal, mordia as pernas que lhe passavam mais perto dos dentes. Ocasionalmente, eram as do Brutus.

O Snoopy era um animal inteligente, mas desviava a esperteza essencialmente para a maldade. Era um delator. Quando eu entrava na sala de estar, dirigia-se a mim a ladrar furiosamente para fazer queixinhas: o Brutus deitara-se outra vez no sofá de couro. O Boxer abanava a curta cauda (não fui eu quem lha mandou cortar) e disfarçava. Se soubesse, assobiaria.

Era um cão muito manso. Aliás, nunca tive um animal bravio. Cada um tem o seu feitio, que é depois condicionado pelo modo de vida que lhe é imposto. Se se prende um animal a um poste e se deixa ficar ali sozinho durante todo o dia, é natural que acabe por ganhar raiva ao mundo ou, pelo menos, a estranhos.

A dada altura, a minha sobrinha Mércia atravessou um período difícil na vida e refugiou-se em nossa casa. Andava angustiada. A ansiedade dos donos transmite-se facilmente aos animais de estimação.

Certa tarde, a Mércia saiu com o cão. Naquele tempo, eram raros os animais que seguiam à trela. Ao cruzar-se no passeio com um transeunte, o homem voltou-se e gritou:

- Menina! O seu cão mordeu-me!

- O cão não morde.

- Então o que é isto?

E exibiu indignado a arranhadela provocada pelos dentes do Brutus.

Este cão morreu cedo, também de leishmaniose.

Adquiri então um Boxer que os entendidos consideravam puro. Devo deixar claro que, tanto quanto sei, apenas os humanos se interessam pela pureza das raças caninas. Os animais contentam-se com a avaliação da estatura e do tamanho dos dentes dos “colegas”.

As minhas filhas quiseram que se chamasse também Brutus. Ficou conhecido como Brutus Segundo. Por essa altura, era já obrigatório o uso de trela. Já nos tínhamos mudado para a casa dos Arcos e eu andava preocupado por me acusarem de estar a engordar. Resolvi fazer mais exercício físico. Eu e o cão atravessávamos em cada começo de noite o jardim da Algodeia e dávamos três voltas ao Parque do Bonfim. Levaríamos meia hora, em passo apressado.

O Brutus Segundo era um cão meigo, afetuoso e impulsivo. Se avistava um gato, procurava atirar-se a ele. Comentava um vizinho, que também costumava levar o seu cãozinho à rua:

- Não sei como é que ele não lhe arranca um braço…

Calhou ganhar medo a dois cães de raça indefinida que pertenciam a um sem-abrigo que circulava por ali à noite, empurrando um carrinho de supermercado em que transportava os seus escassos bens. Pernoitava no vão duma casa abandonada no lado Sul do parque.

Certa noite, demos com ele caído na calçada do passeio. O carrinho de mão estava ao lado, mas os cães tinham-se afastado. Aproximei-me. O homem tinha os olhos abertos, mas não falava. Pareceu-me que mexia com dificuldade os membros direitos.

Não se via mais ninguém na rua. Corri até casa para buscar o telemóvel e marquei o 112. Fizeram-me uma série de perguntas. Estariam habituados a brincadeiras de mau gosto e procuravam certificar-se da veracidade da urgência.

Quando cheguei de novo ao pé do sem-abrigo doente, já se encontrava a seu lado uma mulher de meia-idade com quem eu me cruzava frequentemente. Contou-me então que era religiosa e que dava algum apoio àquele pobre diabo. A carrinha do INEM pouco tardou e os socorristas transportaram o doente para o hospital.  Soube que faleceu um par de meses mais tarde, sem chegar a ter alta hospitalar. Ignoro o que aconteceu aos seus animais de estimação.

O Brutus Segundo ainda durou mais algum tempo. A dada altura, perdeu a alegria e o viço, como se tivesse envelhecido rapidamente. Até os olhos perderam parte do brilho. Contava oito anos. O veterinário pouco foi capaz de fazer. O diagnóstico foi mais uma vez de leishmaniose. Dizem que é a doença que vitima mais cães e gatos na Península Ibérica. Existe uma vacina, para, para já, não é tão eficiente quanto seria desejável. Atinge também os humanos. É então mais conhecida por Kalazar.

Habito uma moradia e não é apenas o gosto pelos animais que me leva a ter cães. Contribuem também para a segurança da casa. Dão sinal da presença de estranhos e têm um efeito dissuasor.

Porcos meses após a morte do segundo Brutus, um colega meu separou-se da mulher. Moravam numa vivenda e foram forçados a vendê-la. Tiveram de se desfazer dos cães. Calhou-me ficar com a Azeitona. Era outra Leoa da Rodésia, mas bem mais corpulenta do que a Diana.

Foi-me oferecida, mas antes de chegar a casa já me custara 100 euros. Com a ansiedade de se afastar do dono, meteu o focinho num dos vidros detrás do automóvel, que estava entreaberto, e quebrou-o.

Nunca pensei que se pudesse adaptar à nova casa e aos novos donos com tanta facilidade. Julguei perceber que os cães respeitam a hierarquia e tem necessidade de um dono. Tornei-me, quase de imediato, o seu chefe substituto. 

A Azeitona era uma linda cadela. Tratava-se de um animal magnífico, poderoso e muito meigo. Tivera duas ninhadas de cachorros, antes de ser esterilizada.

Habituou-se a dormitar no meu gabinete enquanto eu escrevia.

Viveu feliz connosco (e nós com ela) até desenvolver incontinência urinária. A falta de higiene e o correspondente mau cheiro levou-nos a evitar a sua entrada em casa. Ficou confinada ao pequeno quintal.

Soube por essa altura que a seleção dos Leões da Rodésia se fazia tendo em conta a presença do redemoinho de pelo na região lombar. Ora, esse vórtice costuma estar associado à espinha bífida e alguns destes animais sofrem cedo de incontinência urinária. Dito de outro modo, os criadores escolhem os cães piores. As gravidezes sucessivas parecem contribuir para agravar o problema.

A Azeitona morreu por tido engolido ossos inteiros que se alojaram no estômago, sem que fosse capaz de os digerir ou eliminar. Deixou saudades.

O sétimo cão é o Sebastião. É filho de uma cadela de raça Spaniel Breton e de um Setter inglês. A Wikipedia, reconhecida especialista em má-língua, garante que a mãe do cão não é espanhola nem bretã. A raça é originária do noroeste de França. Será o cão de tiro mais popular nesse país. Vive em média 11 anos. O meu animal conta já oito.

Embora me tenha sido oferecido, é, de acordo com a minha mulher, o cão mais caro de todos os que tive. A opinião dela tem algum suporte: o dono dos pais dele é antiquário perto de Grândola. Cada vez que passo no Bairro do Isaías, deixo lá algum dinheiro.

Trata-se de um cão bonito, de estatura média. Tem por defeito maior ser simpático demais. Gosta de toda a gente e, especialmente de crianças.  Se alguém assaltar o quintal onde pernoita na sua casota, julgo que não se importará de abanar o rabo ao gatuno. Seria mesmo capaz de lhe oferecer um cafezinho. A caraterística mais notória que encontro nele é ser capaz de sorrir. Não conheço outro bicho assim.

Será curioso referir que não tive um favorito entre os meus cães. Foram todos bons amigos.

Segundo as estatísticas, o Sebastião será o último. Não gostaria de morrer antes dele. Não se trata de egoísmo. Havia de me custar muito deixar o cão sem protetor.

 

quarta-feira, 10 de maio de 2023

 





  BANHA DE COBRA E TERIAGA




O cirurgião Joaquim Barradas apresentou recentemente o seu terceiro livro. Chamou-lhe Banha de Cobra e Teriaga.

Em centena e meia de páginas passou em revista toda a História da Medicina ocidental.

A escrita é elegante e as opiniões expressas são cuidadosamente fundamentadas. O livro é de leitura fácil e agradável.

A Teriaga remonta ao tempo de Mitrídates e às guerras do Ponto. Incluía mais de meia centena de componentes e terá sido utilizada inicialmente como antídoto para os venenos comuns.  Julgava-se que o efeito final seria superior ao somatório das virtudes de todos os produtos simples que a integravam.

Depressa passou a ser usado como medicamento capaz de combater quase toda a espécie de doenças. Houve quem julgasse que estava ali a panaceia universal. Seria boa para o tratamento das doenças contagiosas, peste, febres malignas, bexigas, mordeduras de animais venenosos, cólica ventosa, paralisias, epilepsia, apoplexia, letargo e ainda para doenças mentais.

Incluía, entre os seus componentes principais, o ópio e a carne de cobra.

É sabido que as serpentes possuem uma quantidade diminuta de gordura. O termo “Banha da Cobra” deriva dos excipientes gordos que os preparadores lhe incorporavam.

Galeno, médico grego instalado em Roma, foi, para o bem e para o mal, uma das personagens que mais influenciaram as Medicinas árabe e europeia. Descreveu em pormenor o método de preparação da carne de cobra, de forma a poder ser incluída na Teriaga.

A Teriaga foi largamente utilizada em toda a Europa até ao final do século XVIII, tendo o seu uso persistido em alguns países no início do século XIX. Foi o médico britânico William Heberden quem, em 1745, publicou um pequeno opúsculo em que questionava a validade do efeito terapêutico da Teriaga. A publicação teve eco na Inglaterra, primeiro país em que a Teriaga deixou de ser usada. Tinha reinado entre os medicamentos administrados a humanos durante dois milénios.

O autor termina o livro com reflexões sobre a validade do conhecimento científico. No seu entender, a verdade é quase sempre provisória e os avanços registados por cada geração de investigadores tendem muitas vezes a pôr em causa as ideias dominantes em épocas anteriores.


sexta-feira, 28 de abril de 2023

 


MARCOS NO CAMINHO 

 

No conjunto, os meus blogues “decaedela” e “historinhasdamedicina” ultrapassaram há dias o quarto de milhão de leitores. A efeméride teria de ser assinalada.

O número de visitas do “historinhasdamedicina” é ligeiramente superior ao registado pelo “decaedela”, embora este seja mais antigo e tenha mais artigos publicados (501 contra 186 de temas médicos históricos).

As nacionalidades dos visitantes diferem consideravelmente de blogue para blogue. No “decaedela” predominam os leitores de Portugal, com 38% das visitas, seguidos de perto pelos Estados Unidos da América. A Holanda vem em terceiro lugar.

No “historinhasdamedicina”, o Brasil figura em primeiro lugar, ligeiramente à frente de Portugal. Seguem-se os E.U.A. e a Rússia. 

Estou em crer que a diáspora dos portugueses apenas em parte explica a origem geográfica dos leitores. Julgo que um número considerável recorre à tradução automática.

Curiosamente, para além do Brasil, o único país lusófono referido como ponto de origem dos meus leitores é Cabo Verde.


quinta-feira, 27 de abril de 2023

 

NOTAS SOBRE A MALÁRIA

A malária tem muitos nomes. Além de lhe chamarem febre terçã e quartã, é também conhecida por paludismo, impaludismo, sezões e maleitas. Tem sido ainda designada por febre dos pântanos, febre dos charcos, febre telúrica, febre perniciosa, maleita, intoxicação palustre, febre palustre ou palúdica e febre da quinquina, entre outras designações menos comuns.

A doença aflige macacos e aves desde a Criação, ou perto disso. Os conhecimentos atuais localizam-na no nosso planeta milhões de anos antes da existência do homem.  Embora a sua prevalência tenha estado geralmente associada a regiões de clima tropical, subtropical e temperado, propagou-se mesmo para norte do Círculo Polar Ártico.  Países tão distanciados como a Rússia, a Índia e os Estados Unidos da América, foram atacados pelo mal.  

O paludismo constituiu um flagelo na Grécia Antiga. O estabelecimento da agricultura na Grécia, cerca de 7.000 anos antes de Cristo, facilitou a difusão da doença, posteriormente exportada para a bacia mediterrânica.  Terá ceifado as vidas de Homero e de Hipócrates. Foi o médico de Cós (c. 460 - c. 370 a.C.) quem primeiro descreveu claramente a enfermidade e a relacionou com os miasmas gerados nos pântanos.



Séculos mais tarde, a malária debilitou os exércitos romanos e terá contribuído para o declínio do seu império.

A malária é associada há muito à permanência em regiões pantanosas. A sua associação com charcos e terrenos alagados levou diversos chefes militares a desviar o percurso das suas tropas em campanha.

Foi atribuída aos “miasmas”, vapores malignos ou partículas invisíveis transmitidas pelo ar danoso resultante da putrefação da matéria vegetal presente no solo das zonas pantanosas.

A associação entre as febres e os mosquitos, abundantes nos locais pantanosos, foi sugerida de tempos a tempos, sem nunca ter chegado a ter grande aceitação entre a comunidade médica. No século XVII, o médico italiano Giovanni Maria Lancisi apontou o dedo aos mosquitos como possíveis responsáveis das febres palustres.  

A prevalência do paludismo nas regiões tropicais foi um dos grandes obstáculos com que a colonização europeia se defrontou. No caso angolano, a cidade de Benguela, que detinha um prestígio antigo por ter o nome ligado ao reino independente do mesmo nome, foi transferida pelos portugueses, em 1617, das vizinhanças de Porto Amboim para a Baía das Vacas onde se situa atualmente. A deslocação para sul foi superior a 270 quilómetros. A razão da mudança assentou na insalubridade do local onde seriam muitas as mortes dos colonos portugueses. Pouco se ganhou com a mudança. A nova Benguela foi construída noutra região pantanosa e continuou a ser conhecida como “cemitério de brancos”. No ano de 1850 o número de habitantes europeus da povoação mal chegava a meia centena.

Para além do seu impacto socioeconómico e do imenso problema de saúde pública que representava, a malária despertava a curiosidade dos médicos, os quais tiveram, durante milhares de anos, dificuldade em entendê-la. Ao processo enigmático de transmissão, aliava-se a sua possível ligação com a febre biliosa e a febre perniciosa.

O microscópio fora inventado no final do século XVI e desenvolvido nas décadas seguintes. No entanto, a transmissão da malaria através de mosquitos infetados com plasmódios teria de esperar pelo início do século XX para ser conhecida.

Foram os escravos africanos que levaram o paludismo para a América. Constituindo novidade para os sistemas imunitários dos habitantes locais, propagou-se rapidamente, atingindo em alguns locais proporções alarmantes.  


sexta-feira, 24 de março de 2023

                                                 
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segunda-feira, 20 de março de 2023

 



HARVEY CUSHING


Como diversas outras especialidades, a Neurocirurgia nasceu da Cirurgia Geral. Aos poucos, alguns cirurgiões foram-se interessando pela Neurologia e pela Neurofisiologia.

Os vestígios arqueológicos da cirurgia craniana são antigos. Outros ossos terão sido operados. Desconheço-os, e estariam fora do âmbito deste artigo. Eventuais cirurgias a partes moles do nosso organismo terão sido apagadas muito cedo pela decomposição dos órgãos. 

 


Tive ocasião de observar no Museu Geológico de Lisboa alguns crânios humanos recolhidos em território nacional e trepanados durante o Período Neolítico. No museu da Lourinhã está preservado um osso parietal trepanado em que a formação de “calo” ósseo demonstra que o paciente sobreviveu ao ato cirúrgico. Ocorreram no nosso País outros achados semelhantes, nomeadamente na gruta da Galinha, perto de Alcanena.

Encontraram-se crânios trepanados por povos primitivos de todos os continentes, ainda que, na Ásia, os achados sejam raros. O período neolítico (c.10.000 a c. 3.000 a.C.) é também designado por Idade da Pedra Polida. Segue-se ao nomadismo do Paleolítico. O homem torna-se sedentário. Aprende a cultivar a terra e domestica alguns animais. Ao mesmo tempo que aperfeiçoa as suas técnicas, desenvolve também preocupações religiosas e culturais. Levanta estruturas megalíticas, das quais a mais conhecida entre nós é o Cromeleque dos Almendres, situado perto de Évora. Torna-se mais aparente o culto dos mortos. Nascem cemitérios monumentais, como os dólmenes ou antas.

É por essa altura que têm início as trepanações cranianas. No entanto, o papiro de Edwin Smith (datado do século 17 a.C.) descreve já a superfície do cérebro, as suas pulsações, o líquido cefalorraquidiano, as meninges e as suturas cranianas.

Mais do que uma época cronológica, o Neolítico é uma fase de cultura e não ocorre simultaneamente em toda a parte. Na Europa, entrou pela Península Ibérica, quando povos do Médio Oriente se foram ali estabelecendo. Tanto quanto se sabe, nenhum crânio pré-histórico trepanado na França, Suíça, Bélgica e Países Baixos é anterior aos dos exemplares ibéricos. Todos os achados peninsulares de crânios trepanados podem ser datados entre 2.000 e 1.400 A.C. Os operadores usavam instrumentos de material duro, como o sílex, para efetuar aberturas nos ossos da calota craniana. As craniectomias, circulares ou ovais, eram levadas a cabo por uma técnica de raspagem. A maioria das trepanações tinha diâmetros de 30 a 45 milímetros. Menos frequentemente, nas civilizações peruanas pré-Incas, pequenos orifícios de trépano eram ligados para levantar um retalho ósseo.

O trépano já existia no tempo de Hipócrates. O cirurgião rodava-o repetidamente num sentido ou noutro fazendo deslizar as palmas das mãos. Registaram-se igualmente vestígios de trepanações em cadáveres. Pretendia-se, nestes casos, obter amuletos ósseos que afastassem os espíritos maus.

As aberturas resultantes da trepanação tendem a curar com formação de tecido ósseo novo. A maioria dos doentes escapava à morte. Estudos feitos no Peru puderam concluir que 62,5% dos doentes ou vítimas viviam o suficiente para desenvolver “calo” ósseo.

As motivações para estes procedimentos eram variadas.  No passado, seria difícil traçar uma linha que separasse claramente a Medicina da Magia. Algumas das razões para a cirurgia são matéria de especulação, embora seja possível estabelecer paralelos com as motivações detetadas em povos que a praticaram até épocas relativamente recentes. Várias afeções cranianas eram atribuídas à entrada de demónios. Um orifício na cabeça proporcionava-lhes uma porta de saída. A epilepsia, “o mal sagrado”, terá sido responsável por muitas tentativas de tratamento. Em Portugal, a primeira intervenção neurocirúrgica documentada data de 1710. Destinou-se a tratar uma fratura do crânio com afundamento.

A partir de 1861, com o trabalho do médico francês Pierre Broca, nasceu o conceito do posicionamento específico de determinadas funções cerebrais. Broca operou um abcesso cerebral que localizou com base em conhecimentos clínicos.

Como aconteceu nas outras especialidades cirúrgicas, a melhoria dos resultados operatórios acompanhou o progresso da anestesia, da antissepsia e da assepsia.

Antes da emergência das modernas técnicas diagnósticas, ocorreu uma época em que os neurologistas diagnosticavam as afeções do Sistema Nervoso Central, limitando-se os cirurgiões aos atos operatórios.

William Macewen (1848-1924), de Glasgow, foi o primeiro cirurgião a remover com sucesso um tumor cerebral. Estava-se em 1878. O diagnóstico do local da lesão baseou-se apenas nas características da fase inicial das crises epiléticas. Tratava-se de um meningioma frontal.  Foi totalmente removido e a doente sobreviveu.  O cirurgião inglês Victor Horsley (1857-1916), em 1886, foi o primeiro a remover com sucesso um tumor medular. Executou com êxito diversas outras intervenções neurocirúrgicas.

No final do século XIX e no começo do XX, desenvolveram-se diversas técnicas diagnósticas que permitiram localizações topográficas mais exatas. Foi o caso da encefalografia gasosa e da ventriculografia. Sicard e Forestier, em 1921, introduziram no arsenal radiológico a mielografia com lipiodol. Egas Moniz divulgou os primeiros resultados da angiografia cerebral em 1927. Depois, durante algum tempo, tudo pareceu progredir mais devagar. 

Quando, há cinco décadas, ingressei no Internato de Neurocirurgia no Hospital de S. José, ainda não havia neurorradiologistas em Lisboa. Eram os neurocirurgiões que executavam esses exames. Pessoalmente, terei feito cerca de um milhar. Tratou-se, na maioria dos casos, de angiografias por punção direta das carótidas. A Tomo Densitometria chegaria logo a seguir. A Ressonância Magnética Nuclear iria demorar alguns anos mais.

As especificidades da cirurgia cerebral ajudam a compreender a modéstia dos resultados operatórios dos pioneiros. Horsley registou taxas de mortalidade que rondavam os 22 por cento, enquanto outros cirurgiões relatavam mortalidades de 35 e mesmo de 50 e 65 por cento.

Os maus resultados fizeram esmorecer o entusiasmo dos cirurgiões pelas intervenções sobre o cérebro. No começo do século XX, a Neurocirurgia adquirira uma péssima reputação. A situação seria revertida pelo trabalho de dois neurocirurgiões extraordinários: Harvey Cushing e Walter Dandy.

                              

                   Harvey Cushing em 1938

O médico que mais contribuiu para desenvolver a Neurocirurgia até que ela fosse reconhecida como uma especialidade autónoma e indispensável foi o americano Harvey Cushing (1869-1939).

Cushing desenvolveu as técnicas de controlo da hemorragia, mediante o recurso à compressão do escalpe, à aplicação de cera nas zonas de corte ósseo e à introdução do uso de clips hemostáticos e de termocoagulação. Por volts de 1915, nas suas mãos, a mortalidade operatória dos tumores cerebrais descera para 8,4 por cento. Introduziu também os registos da tensão arterial durante a cirurgia.

Harvey Cushing trabalhou no hospital Johns Hopkins de Baltimore, antes de se transferir para o hospital Peter Bent Brigham em Boston. Deve-se-lhe a sistematização das técnicas cirúrgicas e o treino de diversos jovens neurocirurgiões. 

Um dos seus discípulos no Johns Hopkins foi Walter Dandy (1886-1946). Viria a ter um papel de grande relevo no desenvolvimento da Neurocirurgia.

Dandy será sempre lembrado, a par de Cushing. Quando era ainda interno da especialidade, estabeleceu (juntamente com Kenneth Blackfan) o conceito moderno de hidrocefalia, abrindo caminho para o seu tratamento cirúrgico. O seu arrojo permitiu-lhe praticar em seguida a ablação dos plexos coroideus, a ventriculostomia do III ventrículo e a cateterização do Aqueduto de Sylvius. Outros cirurgiões criaram uma grande variedade de processos suscetíveis de drenar o líquido cefalorraquidiano acumulado em excesso nos ventrículos cerebrais ou no espaço subaracnoideu para onde a imaginação os conduzia. Como seria de esperar, destes procedimentos sobreviveram os mais seguros e eficazes. 

Walter Dandy introduziu na Imagiologia a ventriculografia e a encefalografia gasosa, a primeira por injeção direta nos ventrículos e a segunda por introdução de ar através duma agulha de punção lombar. Foi um neurocirurgião extraordinário. Desenvolveu acessos cirúrgicos que permitiram expor e extirpar um tumor da pineal e foi o primeiro a remover na totalidade um neurinoma do acústico. Terá sido também o primeiro cirurgião a "clipar" o colo de um aneurisma intracraniano. Passara a ser poucos os recônditos do cérebro onde os neurocirurgiões fossem incapazes de atuar.

Cushing e Dandy não foram os únicos médicos a dar contributos importantes para o progresso da Neurocirurgia. Charles Elsberg, Frazier, Jefferson, Dott e Cairns (os dois últimos foram discípulos de Cushing). Olivecrona (em Estocolmo), Martel e Clovis Vincent (em França) contribuíram também para o desenvolvimento da especialidade. Haveria muitos mais nomes a indicar. Ficarei por aqui. Mesmo que me alongasse, a lista ficaria sempre incompleta.

Ao tempo, muitos neurologistas não acreditavam na Neurocirurgia e eram raros os que referenciavam doentes para operar. As administrações hospitalares não demonstravam grande consideração por aqueles pioneiros iluminados. Consideravam que exigiam material dispendioso e que obtinham poucos resultados. Ainda por cima, manchavam as reputações dos hospitais com as taxas elevadas de insucesso cirúrgico.

Paul Bucy, eminente neurocirurgião americano, comenta com graça e agudeza as personalidades dessas duas figuras tutelares da Neurocirurgia mundial e descreve as relações atribuladas que foram desenvolvendo.

Na sua opinião, teriam feitios semelhantes. Confiavam nas próprias capacidades e eram orgulhosos, determinados, temperamentais e extremamente competitivos. Resumindo, eram difíceis de aturar.

Os jovens internos fartavam-se depressa daquelas personalidades autocráticas, da exigência extrema e dos fáceis e muitas vezes injustificados acessos de fúria.

No que diz respeito a Cushing, diz-se que apenas um colaborador o suportou até ao fim da formação. Teria um feitio invulgarmente cordato. Não consta que tenha sido grande profissional. A maioria dos discípulos afastou-se antes de cumprir o primeiro ano de treino.

Dandy não seria muito diferente. No entanto, de vez em quando lembrava-se, de certo modo, de pedir desculpa aos seus colaboradores pelos maus modos e pelos excessos de linguagem, oferecendo-lhes jantares ou bilhetes para eventos desportivos.

Walter Dandy e Harvey Cushing nunca se deram bem. Ter-se-ão detestado logo deste o início do relacionamento. Lembre-se que Dandy foi, durante cerca de um ano, discípulo de Cushing no Johns Hopkins Hospital.

Diz-se que, quando Cushing deixou Baltimore para se instalar em Boston, arrumou junto aos seus pertences as indicações dos resultados obtidos por Dandy com as suas experiências. Walter Dandy deu por isso, insurgiu-se e obrigou o chefe a devolver-lhe o material. A vingança de Cushing foi declarar que aqueles apontamentos não tinham qualquer valor.

Anos mais tarde, quando Dandy publicou o seu relato sobre a primeira remoção total de um neurinoma do acústico, “esqueceu-se” de referir a monografia que Cushing dedicara antes ao assunto. A reposta de Harvey Cushing não foi meiga.

Curiosamente, os dois génios da Neurocirurgia influenciaram-se negativamente nos métodos de operar e até na escolha do material utilizado. Dandy, durante algum tempo, não aceitou usar o cauterizador elétrico (termocoagulador) desenvolvido por Bovie e Cushing, nem os clips de prata que McKenzie e Cushing tinha inventado. Cushing retribuiu-lhe recusando recorrer à ventriculografia como meio de diagnóstico. Ambos terão perdido eficiência cirúrgica com a animosidade recíproca.

Mais tarde, Walter Dandy recusou aderir à Society of Neurological Surgeons apadrinhada por Cushing e à Sociedade Harvey Cushing, por ter o nome do seu rival.

Foquemo-nos agora na vida e no percurso científico de Harvey Cushing, que constituem o objetivo essencial deste trabalho. Comecemos pela sua família e pelo seu nascimento. Cushing nasceu em Cleveland, no Ohio. Era filho, neto e bisneto de médicos. Filho mais novo de uma família numerosa, fez a formação pré-graduada na Universidade de Yale. Portou-se muito bem em Matemática e Ciências e menos bem em línguas mortas. Jogou basebol, ténis e críquete. Em matéria desportiva, ficou conhecido por ter mau perder. Por volta do terceiro ano da sua estadia em Yale, interessou-se pela Medicina.

De Yale, Harvey Cushing mudou-se para a Harvard Medical School, que frequentou durante quatro anos. Ingressou depois, como interno, no Massachusetts General Hospital. Mo ano seguinte, transferiu-se para o Johns Wilkins Hospital, para trabalhar com William Halsted, um grande cirurgião. Nessa altura, contava 27 anos e já mostrava um espírito brilhante e original. Foi Cushing quem introduziu naquele hospital a utilização diagnóstica dos aparelhos de Raios X, antes de ter decorrido um ano sobre a descoberta de Roentgen. 

Durante o internato, Cushing interessou-se pela nevralgia do trigémeo. Procedeu a craniotomias em 30 cadáveres, antes de se aventurar a operar uma doente com dores excruciantes. Extirpou o gânglio de Gasser, devolvendo a doente a uma vida normal. Essa intervenção reforçou o seu interesse pela Neurocirurgia. 

Cushing teve muitos admiradores e poucos amigos. Um grande amigo de toda a sua vida foi William Osler. Era vinte anos mais velho do que ele e aconselhou-o a fazer uma estadia na Europa. 

A dada altura, Harvey Cushing interessou-se pelo tratamento cirúrgico dos tumores cerebrais e, em 1900, viajou para Inglaterra, decidido a aprender Neurocirurgia com Victor Horsley.

Conta Paul Bucy que Cushing, no dia seguinte à sua chegada, acompanhou Horsley numa visita domiciliária. A doente sofria de nevralgia do trigémeo e o cirurgião inglês operou-a logo ali. Fez um grande buraco no crânio da senhora e levantou-lhe o lobo temporal. Havia sangue por toda a parte. Horsley removeu o gânglio e encerrou a ferida.

O americano ficou dececionado e pôs de lado a ideia de estagiar com Victor Horsley. Passou algum tempo em França, antes de se mudar para a Suíça (Berna), onde trabalhou com Theodor Kocher, um dos cirurgiões europeus mais conhecidos na época. No entanto, Kocher interessava-se pouco pelo sistema nervoso e não tinha grande coisa a oferecer a Cushing. Encaminhou-o para o fisiologista Kronecker. 

No laboratório de Kronecker, Cushing dedicou-se à experimentação em animais.

Em cães sujeitos a anestesia geral, injetava no espaço subaracnoindeu soro fisiológico.  Quando a pressão intracraniana se aproximava da tensão arterial, esta subia e o pulso lentificava. Era o reflexo que ficou conhecido como “de Cushing”. Seguiam-se alterações respiratórias graves e a morte dos animais. 

Da Suíça mudou-se para a Itália, continuando a aprender com quem mais sabia.

Passou ainda algum tempo em Liverpool, tendo sido o primeiro discípulo americano do fisiologista Charles Sherrington. Cushing e Sherrington corresponderam-se durante quase quatro décadas. Contribuíram para estabelecer a distinção entre a faixa motora pré-rolândica e o córtex sensorial. Mais tarde, em 1909, Cushing estimulou eletricamente a circunvolução pós central de dois doentes conscientes que referiram sensações em regiões em que as áreas pré-centrais contíguas induziam movimentos. 

A prolongada estadia na Europa fazia supor um apoio económico familiar sólido e sustentado. Em 1901, Cushing abandonou o velho continente e regressou a Baltimore.

Halsted apreciava Cushing e ainda tentou dissuadi-lo do seu projeto de encetar uma carreira neurocirúrgica.  Durante algum tempo, Harvey Cushing praticou cirurgia geral, operando tumores cerebrais ou meningocelos sempre que podia. Utilizou a anestesia local quando tal era possível.

Publicou diversos artigos sobre temas de Cirurgia Geral, mas a sua dedicação à Neurocirurgia acabou por se tornar exclusiva.

No início de 1909, o Dr. Arthur Cabot encaminhou o general Leonard Wood para o hospital Johns Hopkins, a fim de ser tratado por Cushing. Wood contava então 48 anos e fora operado em Boston, quatro anos antes, a um tumor do crânio que não parecia ultrapassar a dura-máter, mas que lhe causava repetidas crises convulsivas jacksonianas.

A frequência das crises aumentara, passando a acompanhar-se de paralisia pós-ictal nos membros esquerdos.

Até esse ano, tinha sido publicado apenas um caso de sucesso na cirurgia desse tipo de tumores e a palavra “meningioma” não existia. Seria criada por Cushing em 1922.

Por essa altura, era incipiente a imagiologia do cérebro e o diagnóstico e a localização dos tumores intracranianos assentavam apenas em dados clínicos. Harvey Cushing optou inicialmente por medidas conservadoras, mas a situação do doente deteriorou-se e, decorrido um ano, viu-se compelido a operar.

Não se tratava de um doente qualquer. Leonard Wood era Major-General e Chefe do Estado Maior do Exército dos Estados Unidos. Sendo médico de carreira (fora médico pessoal dos presidentes Grover Cleveland e William McKinley) notabilizara-se como chefe militar, deixando criar lendas acerca dos seus conflitos com os índios apaches, antes conduzir uma brigada americana à vitória de San Juan Heights, durante a guerra hispano-americana.  Era amigo pessoal do presidente Theodore Roosevelt e foi governador de Cuba e, mais tarde, da Província de Moro, nas Filipinas. Chegaria a ser candidato à presidência dos E.U.A., em 1920, pretendendo suceder a Woodrow Wilson. 

Por essa altura, Cushing recorria apenas à anestesia local. Lembremos que o cérebro não possui recetores de dor. Ficava a angústia de sentir o próprio crânio ser aberto.

A operação decorreu em duas fases, com quatro dias de intervalo. Na primeira intervenção, Cushing procedeu à craniotomia. A cirurgia foi suspensa devido a uma hemorragia profusa.

Na segunda, o cirurgião incisou a dura-máter e expôs a superfície do cérebro e o tumor. Foi capaz de aproveitar o plano de clivagem entre as duas estruturas. Poupou as veias de drenagem e conseguiu o que julgou ser a remoção completa da lesão.

O pós-operatório foi excelente.

A excecional destreza do cirurgião foi testemunhada e o sucesso proporcionou-lhe o reconhecimento público e o aumento na própria confiança na possibilidade de operar com sucesso tumores cerebrais.

Espero que os leitores usem agora de benevolência e perdoem um anacronismo.

        O tumor acabaria por recidivar. Cushing reoperou o velho general 17 anos mais tarde. Wood esteve consciente durante a operação. A dada altura, o cirurgião teve dúvidas sobra a possibilidade de remover totalmente o tumor e expressou-as. O general instou-o a prosseguir.

O doente faleceu no pós-operatório imediato. O cirurgião ficou profundamente abalado com o insucesso e chegou a pensar em abandonar a profissão.  

Retomemos o calendário. Ainda em 1910, o Doutor Arthur Tracy Cabot, propôs a sua nomeação para professor de Cirurgia da Universidade de Harvard. Aconteceu a Harvey Cushing receber no intervalo de pouco tempo outro convite honroso: tornar-se cirurgião-chefe no hospital Peter Bent Brigham.

O hospital Brigham ainda estava em construção. Seria inaugurado em abril de 1912.

Nesse ano, Cushing publicou um livro sobre a Hipófise, sublinhando a importância que a avaliação dos campos visuais tinha para neurologistas e neurocirurgiões.

A mortalidade operatória registada por ele nesse tipo de cirurgia durante um período de dez anos foi de 2,4 por cento. Era uma revolução para os parâmetros da época e seria apenas suplantada, décadas mais tarde, com a introdução de corticosteroides no período pós-operatório.

Numa atualização desse trabalho, publicada em 1932, descreveu o efeito da secreção exagerada de adrenocorticotrofina pelos tumores basófilos da hipófise. O mal ficou conhecido na literatura médica mundial como “Doença de Cushing”. O excesso de produção de cortisol pelo córtex suprarrenal tem manifestações clínicas semelhantes e é denominado “Síndrome de Cushing”

Tive oportunidade de operar uns tantos doentes que sofriam da doença de Cushing. Mesmo no tempo da Ressonância Magnética Nuclear, as imagens induziam em erro, havendo tumores diminutos (alguns pouco maiores que grãos de arroz) por vezes mais difíceis de encontrar do que de extirpar.

Durante esse período, Cushing tinha já discípulos que se iriam tornar ilustres, como Naffzinger e Dandy. Iria dispor de pouco tempo para se dedicar às tarefas de cirurgião, articulista e professor. Avizinhava-se a Primeira Grande Guerra.

Quando os Estados Unidos da América entraram no conflito, a Universidade de Harvard criou uma unidade para integrar a American Ambulance Care e Cushing foi para França. Passaria lá os quatro anos seguintes. Iria ganhar uma experiência considerável no tratamento de feridas craniocerebrais por armas de fogo e na organização dos serviços médicos militares. 

       Durante a guerra, tratou do tenente Edward Revere Osler, filho de Sir William Osler, canadiano considerado por muitos um dos pais da Medicina moderna. O jovem tinha sido ferido com gravidade na batalha de Ypres e não sobreviveu. 

        Muitos anos mais tarde (em 1926), Cushing recebeu o Prémio Pulitzer pela biografia de Osler. Não foi o seu único trabalho nessa área. Entusiasmado com a figura de André Vesálio, publicou também a sua biografia.

Em 1917, publicou uma monografia sobre os tumores do nervo acústico.

No outono do ano seguinte, durante a ofensiva Meuse-Argonne, Cushing teve de interromper uma demonstração cirúrgica por ter sentido bruscamente duplicidade de visão. Desenvolveu a seguir febre e parestesias nos membros. Durante algum tempo, não foi capaz de caminhar. Ter-se-á tratado do síndromo de Gillan-Barré. Cushing chegou a recear que a sua carreira cirúrgica tivesse acabado. Recuperou, ainda que progressivamente. Terá ficado com algumas sequelas. Cansava-se com facilidade e tinha alguma instabilidade na marcha, o que não o impediu de se lançar ao trabalho.

Em fevereiro de 1919, Harvey Cushing regressou a Boston. Trabalharia durante 13 anos no hospital Brigham e na Universidade de Harvard. Operou um número impressionante de doentes com tumores cerebrais, com resultados cada vez melhores.

Cushing não era apenas médico. Alimentava um fascínio pela literatura que já vinha do seu pai. Foi bibliófilo, homem de cultura e escritor. Não produziu ficção, mas publicou trabalhos muito interessantes sobre História da Medicina. As suas biografias de William Osler e William Harvey foram já referidas. Escreveu um número considerável de trabalhos científicos. Alguns deles irão ser lembrados durante séculos.

A sua vida familiar foi prejudicada pela dedicação quase exclusiva ao trabalho. Terá sido um pai distante. Mesmo em casa, reservava a maior parte das horas do dia ao estudo e à investigação. 

Conheceu a glória em vida. Era repetidamente convidado para proferir conferências científicas. Em 1922/1923, foi presidente do Colégio Americano de Cirurgiões.

Harvey Cushing comia pouco e consumia pouco álcool, mas fumava muito. Desenvolveu gangrenas isquémicas nos dedos dos pés. Já tinha de lidar com elas, em 1931, quando abandonou o leito hospitalar para operar o seu segundo milésimo tumor do cérebro.

Aposentou-se em 1932. Contava 63 anos de idade. Publicou, na altura, o artigo Intracranial tumors: notes upon a series of two thousands verified cases with surgical mortality percentages. 

No ano seguinte, aceitou o cargo de professor de Neurologia e regressou à Universidade de Yale, onde tinha feito os estudos secundários. 

Como vimos, o período em que Harvey Cushing se dedicou exclusivamente à Neurocirurgia foi limitado. Foram, contudo, anos frutuosos. Iniciou a formação de um número considerável de futuros neurocirurgiões. Muitos deles provinham de países estrangeiros e impulsionaram o desenvolvimento da nova especialidade nas suas terras de origem. Para além dos americanos Percival Bailey e Charles Locke, Cushing iniciou na especialidade o belga Paul Martin, o canadiano Kenneth McKenzie, o romeno Dimitri Bagdezor, o escocês Norman Dott, os ingleses George Armitage e Hugh Cairns e muitos outros.

Publicou uma descrição racional dos tumores cerebrais malignos. A classification of the tumors of the glioma group on a histogenic basis with a correlative study of prognosis foi impresso em 1926, com a colaboração de Percival Bayley.

No ano de 1938, publicou, juntamente com Louise Eisenhardt a notável monografia sobre meningiomas. Intitulava-se Meningiomas: Their classification, regional behaviour, life history and surgical end results. A obra continua a ser reconhecida e respeitada em todo o mundo.

Harvey Cushing faleceu em outubro de 1939, no seguimento de um enfarte do miocárdio. Curiosamente, a sua autópsia revelou a presença de uma lesão neurocirúrgica: um quisto colide do III ventrículo, que permaneceu assintomático.

 

Quando, há meio século, entrei para o internato da especialidade de Neurocirurgia no Hospital de S. José, em Lisboa, os meus colegas gostavam de comparar Cushing com Dandy. Walter Dandy era o expoente do cirurgião brilhante e quase heroico. Abordava sem delongas o objetivo, resolvia a questão rapidamente e encerrava.

Cushing trabalhava de forma diferente. De certo modo, transferira para a especialidade nova os ensinamentos de Halsted. Era atento aos pormenores, meticuloso e lento. Ao longo da minha carreira profissional, procurei seguir o seu exemplo.

A cirurgia demorada de Harvey Cushing chegou a prestar-se a alguma ironia. Um cirurgião perguntou-lhe um dia se algum tumor tinha já recidivado enquanto decorria a operação

Mesmo no último quartel do século XX a rapidez de execução continuava a ser tida numa conta exagerada por muitos cirurgiões. Compreende-se que tivesse de ser assim décadas e séculos atrás, quando a anestesia ainda não existia, a hemorragia era difícil de controlar e havia que proceder depressa e bem. Esse tempo fora ultrapassado, mas subsistiam adeptos dessa filosofia cirúrgica gloriosa.

Os da minha geração tornaram-se pioneiros da microcirurgia no nosso país. As intervenções tornaram-se mais lentas e as vias de acesso mais pequenas. Operava-se geralmente por fendas estreitas, procurando limitar o afastamento do tecido cerebral. Os resultados obtidos foram fechando as portas às antigas opções.

A Neurocirurgia nasceu na Europa e ali deu os primeiros passos. Foi, contudo, nos Estados Unidos da América que atingiu a maturidade. Antes de Cushing, era praticada por neurologistas que empunhavam o bisturi, ou por cirurgiões que gostavam de Neurologia. A organização de serviços especificamente neurocirúrgicos conduziu à queda drástica da morbilidade e da mortalidade operatórias. Segundo Wilder Penfield, Cushing foi o médico que tornou a cirurgia do cérebro segura e prestigiada.

 

 

 

 

BIBLIOGRAFIA 

Bucy, Paul: Two Giant: Harvey Cushing and Walter Dandy. Em Neurosurgery, Wilkins and Rengachary, Mcgraw-Hill Book Company, 1985.

Rojo. Isquierdo: Concepto y desarrollo de la Neuroicurugia. Em Fundamientos de Neurocirugia, Distribuidora Interamericana, 1978.

Vieira, Ruy: Historial da trepanação craniana, suplemento do jornal Notícias Médicas, nº 2835.

Trabulo, António: Trepanações em crânios neolíticos Blogue historinhasdamedicina, 30/12/ 2009.

Wilkins, Robert: History of Neurosurgery. Em Neurosurgery, Wilkins anda Rengachary, McGraw-Hill Book Company, 1985.


Imagem 1: Museu de Geologia de Lisboa

Imagem 2: Wikipedia.