Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

 

                          O SÉTIMO CÃO




Levo cada noite o Sebastião a passear no jardim. É o meu sétimo cão.

Li em tempos (já não sei onde) que um homem tem seis ou sete cães antes de morrer.

Conto bastantes anos e não poderei viver muitos mais. Não me aflijo com isso. Considero que soube viver e tenho esperança de saber também morrer.

Vou caminhando.

O vento comunica a própria ansiedade aos ramos dos arbustos. Aprenderam cedo a dobrar para não quebrarem.

Lembro-me bem dos cães que tive. Estimei-os e fui estimado por eles.

Irei falar de cada um sem entrar em grandes pormenores para não entediar os leitores.

O Leão foi o primeiro dos meus cães. Era um Pastor da Serra da Estrela. Por essa altura, eu ia nos quatro ou cinco anos de idade e morava em Almendra. Morreu atropelado por um camião. Não haveria muito trânsito na terra e o animal não chegara a desenvolver as competências que lhe permitiriam evitar esse tipo de ameaças.

Decorreu quase uma dezena de anos até que voltássemos a ter outro cão. Tratou-se, aliás, duma cadela. Era uma Leoa da Rodésia e chamava-se Diana. O meu pai adquiriu-a na Estação Zootécnica, que ficava próxima do Lubango. Sempre tratámos bem os animais, mas a Diana chegou-nos já com uma fobia. Se calhava ouvir um tinir de correntes, fugia para longe e tardava a voltar. Imagino os tratos que lhe deram quando era pequenina para lhe magoarem tanto a memória.

Perdemo-la na caça, perto da nossa fazenda do Gando. Dessa vez, não houve tinir de correntes que a amedrontasse. Esperámos algumas horas por ela, antes de desistirmos de a chamar. Terá sido atacada por algum animal bravio e poderoso. Os leopardos, naquele tempo, abundavam na região.

Eu era já casado e tinha duas filhas quando me ofereceram o Snoopy. Suponho que, à época, esse seria um dos nomes de cães mais frequentes. Era então muito popular nos jornais a banda desenhada do Charlie Brown. O Snoopy era vagamente “pequinois” e foi sempre mais cão das meninas que meu. Acompanhava a minha mulher até à entrada do mercado. Como não era autorizado a entrar, deitava-se à porta e esperava que a dona saísse.

Naquele tempo, os cães andavam soltos na rua. Seriam muitos e causariam incómodos, para além da sujeira. As câmaras municipais tinham empregados que se ocupavam em os capturar. Após umas semanas no canil, os que não fossem reclamados eram abatidos. Os funcionários estendiam redes que iam dum lado ao outro da rua, mas os animais mais leves e mais ágeis saltavam-lhes facilmente por cima.

O Snoopy viveu 12 anos. Morreu de leishmaniose, a doença que já o cegara. Quando envelhecera e enxergava pior, deixou-se apanhar duas vezes pela rede da câmara. Fui busca-o ao canil municipal. Enquanto os “colegas” se entretinham a brincar ou a discutir, dei ambas as vezes com o cãozinho de focinho encostado à porta de rede, à espera de que alguém o viesse libertar.

A sua morte desencadeou em nossa casa uma espécie de tragédia. Imaginei que as minhas filhas iriam chorar de forma semelhante quando chegasse a minha vez de partir.


O Brutus era um Boxer com alguns atropelos na linhagem. Tinha o focinho mais comprido e o corpo mais avantajado que os espécimes de raça pura. Coexistiu com o Snoopy durante mais de um ano. Embora fosse muito mais corpulento do que ele, reconhecia-o como chefe. O mais pequeno tinha a hierarquia em grande apreço e apreciou devidamente a promoção tardia.

Nunca na vida tinha comido tanto. Empanturrava-se, para deixar ao subalterno a menor quantidade possível de ração. O Brutus aguardava pacientemente a sua vez.

Na rua, o cãozinho, que fora sempre humilhado pelos animais mais corpulentos, assumiu plenamente a qualidade de chefe de matilha e conheceu o seu período de glória.

Com as costas quentes, deu em valentão. Provocava ruidosamente os adversários. Quando a luta começava ele, que já enxergava mal, mordia as pernas que lhe passavam mais perto dos dentes. Ocasionalmente, eram as do Brutus.

O Snoopy era um animal inteligente, mas desviava a esperteza essencialmente para a maldade. Era um delator. Quando eu entrava na sala de estar, dirigia-se a mim a ladrar furiosamente para fazer queixinhas: o Brutus deitara-se outra vez no sofá de couro. O Boxer abanava a curta cauda (não fui eu quem lha mandou cortar) e disfarçava. Se soubesse, assobiaria.

Era um cão muito manso. Aliás, nunca tive um animal bravio. Cada um tem o seu feitio, que é depois condicionado pelo modo de vida que lhe é imposto. Se se prende um animal a um poste e se deixa ficar ali sozinho durante todo o dia, é natural que acabe por ganhar raiva ao mundo ou, pelo menos, a estranhos.

A dada altura, a minha sobrinha Mércia atravessou um período difícil na vida e refugiou-se em nossa casa. Andava angustiada. A ansiedade dos donos transmite-se facilmente aos animais de estimação.

Certa tarde, a Mércia saiu com o cão. Naquele tempo, eram raros os animais que seguiam à trela. Ao cruzar-se no passeio com um transeunte, o homem voltou-se e gritou:

- Menina! O seu cão mordeu-me!

- O cão não morde.

- Então o que é isto?

E exibiu indignado a arranhadela provocada pelos dentes do Brutus.

Este cão morreu cedo, também de leishmaniose.

Adquiri então um Boxer que os entendidos consideravam puro. Devo deixar claro que, tanto quanto sei, apenas os humanos se interessam pela pureza das raças caninas. Os animais contentam-se com a avaliação da estatura e do tamanho dos dentes dos “colegas”.

As minhas filhas quiseram que se chamasse também Brutus. Ficou conhecido como Brutus Segundo. Por essa altura, era já obrigatório o uso de trela. Já nos tínhamos mudado para a casa dos Arcos e eu andava preocupado por me acusarem de estar a engordar. Resolvi fazer mais exercício físico. Eu e o cão atravessávamos em cada começo de noite o jardim da Algodeia e dávamos três voltas ao Parque do Bonfim. Levaríamos meia hora, em passo apressado.

O Brutus Segundo era um cão meigo, afetuoso e impulsivo. Se avistava um gato, procurava atirar-se a ele. Comentava um vizinho, que também costumava levar o seu cãozinho à rua:

- Não sei como é que ele não lhe arranca um braço…

Calhou ganhar medo a dois cães de raça indefinida que pertenciam a um sem-abrigo que circulava por ali à noite, empurrando um carrinho de supermercado em que transportava os seus escassos bens. Pernoitava no vão duma casa abandonada no lado Sul do parque.

Certa noite, demos com ele caído na calçada do passeio. O carrinho de mão estava ao lado, mas os cães tinham-se afastado. Aproximei-me. O homem tinha os olhos abertos, mas não falava. Pareceu-me que mexia com dificuldade os membros direitos.

Não se via mais ninguém na rua. Corri até casa para buscar o telemóvel e marquei o 112. Fizeram-me uma série de perguntas. Estariam habituados a brincadeiras de mau gosto e procuravam certificar-se da veracidade da urgência.

Quando cheguei de novo ao pé do sem-abrigo doente, já se encontrava a seu lado uma mulher de meia-idade com quem eu me cruzava frequentemente. Contou-me então que era religiosa e que dava algum apoio àquele pobre diabo. A carrinha do INEM pouco tardou e os socorristas transportaram o doente para o hospital.  Soube que faleceu um par de meses mais tarde, sem chegar a ter alta hospitalar. Ignoro o que aconteceu aos seus animais de estimação.

O Brutus Segundo ainda durou mais algum tempo. A dada altura, perdeu a alegria e o viço, como se tivesse envelhecido rapidamente. Até os olhos perderam parte do brilho. Contava oito anos. O veterinário pouco foi capaz de fazer. O diagnóstico foi mais uma vez de leishmaniose. Dizem que é a doença que vitima mais cães e gatos na Península Ibérica. Existe uma vacina, para, para já, não é tão eficiente quanto seria desejável. Atinge também os humanos. É então mais conhecida por Kalazar.

Habito uma moradia e não é apenas o gosto pelos animais que me leva a ter cães. Contribuem também para a segurança da casa. Dão sinal da presença de estranhos e têm um efeito dissuasor.

Porcos meses após a morte do segundo Brutus, um colega meu separou-se da mulher. Moravam numa vivenda e foram forçados a vendê-la. Tiveram de se desfazer dos cães. Calhou-me ficar com a Azeitona. Era outra Leoa da Rodésia, mas bem mais corpulenta do que a Diana.

Foi-me oferecida, mas antes de chegar a casa já me custara 100 euros. Com a ansiedade de se afastar do dono, meteu o focinho num dos vidros detrás do automóvel, que estava entreaberto, e quebrou-o.

Nunca pensei que se pudesse adaptar à nova casa e aos novos donos com tanta facilidade. Julguei perceber que os cães respeitam a hierarquia e tem necessidade de um dono. Tornei-me, quase de imediato, o seu chefe substituto. 

A Azeitona era uma linda cadela. Tratava-se de um animal magnífico, poderoso e muito meigo. Tivera duas ninhadas de cachorros, antes de ser esterilizada.

Habituou-se a dormitar no meu gabinete enquanto eu escrevia.

Viveu feliz connosco (e nós com ela) até desenvolver incontinência urinária. A falta de higiene e o correspondente mau cheiro levou-nos a evitar a sua entrada em casa. Ficou confinada ao pequeno quintal.

Soube por essa altura que a seleção dos Leões da Rodésia se fazia tendo em conta a presença do redemoinho de pelo na região lombar. Ora, esse vórtice costuma estar associado à espinha bífida e alguns destes animais sofrem cedo de incontinência urinária. Dito de outro modo, os criadores escolhem os cães piores. As gravidezes sucessivas parecem contribuir para agravar o problema.

A Azeitona morreu por tido engolido ossos inteiros que se alojaram no estômago, sem que fosse capaz de os digerir ou eliminar. Deixou saudades.

O sétimo cão é o Sebastião. É filho de uma cadela de raça Spaniel Breton e de um Setter inglês. A Wikipedia, reconhecida especialista em má-língua, garante que a mãe do cão não é espanhola nem bretã. A raça é originária do noroeste de França. Será o cão de tiro mais popular nesse país. Vive em média 11 anos. O meu animal conta já oito.

Embora me tenha sido oferecido, é, de acordo com a minha mulher, o cão mais caro de todos os que tive. A opinião dela tem algum suporte: o dono dos pais dele é antiquário perto de Grândola. Cada vez que passo no Bairro do Isaías, deixo lá algum dinheiro.

Trata-se de um cão bonito, de estatura média. Tem por defeito maior ser simpático demais. Gosta de toda a gente e, especialmente de crianças.  Se alguém assaltar o quintal onde pernoita na sua casota, julgo que não se importará de abanar o rabo ao gatuno. Seria mesmo capaz de lhe oferecer um cafezinho. A caraterística mais notória que encontro nele é ser capaz de sorrir. Não conheço outro bicho assim.

Será curioso referir que não tive um favorito entre os meus cães. Foram todos bons amigos.

Segundo as estatísticas, o Sebastião será o último. Não gostaria de morrer antes dele. Não se trata de egoísmo. Havia de me custar muito deixar o cão sem protetor.