Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

OS KIMBANDAS E A MEDICINA TRADICIONAL NO SUDOESTE ANGOLANO




Em umbundo, as palavras Onganga e Kimbanda têm significados diferentes. Enquanto o Kimbanda está ao serviço da comunidade como agente da medicina tradicional africana, o Onganga é um criminoso da pior espécie, um comedor de homens. Não se trata de antropofagia: devora apenas almas. Vertidos para português, ambos os vocábulos desaguam em "feiticeiro".
Hoje, vou falar dos Kimbandas.
Para os bantos, as pessoas não morrem de todo. Passam para uma espécie de existência mais diluída e continuam a influenciar o mundo dos vivos ajudando-os ou, frequentemente, punindo-os com incómodos e doenças. Os kimbandas são adivinhos, curandeiros e sacrificadores. Fazem a mediação entre o mundo dos espíritos e o dos vivos. É desta suposta relação que advém o seu prestígio. A inteligência e o conhecimento dos medicamentos naturais dão-lhe contributos menores.


Os kimbandas podem ser dos dois sexos. De um modo geral, as mulheres tratam as doenças e os homens são chamados em caso de morte, mas a regra conhece muitas excepções.
Não é kimbanda quem quer. A profissão não se aprende como as demais. O médico tem, primeiro, de adoecer. O chamamento do espírito é habitualmente feito através duma doença prolongada. Um dia, um adivinho descobre a causa do mal: o paciente está possuído pelo espírito de um antepassado que era kimbanda. Para se curar, deve aceitar ser também feiticeiro-curandeiro. 
A cerimónia de iniciação é dirigida por um kimbanda-mestre.
Depois de ser honrado com o sacrifício de um animal, o espírito ordena ao candidato que beba sangue cru. Executam-se danças especiais, acompanhadas de música e cantigas, até o doente atingir o transe. Tal quer dizer que o espírito lhe entrou no corpo, o que o torna apto para exercer a profissão. O mestre entrega-lhe as insígnias e, durante algum tempo, vai-lhe ensinando o emprego das plantas tradicionais.
Segundo Carlos Estermann, os kimbandas são especialistas. Cada um se limita ao tratamento de poucas doenças. Nenhum se abalança ao exercício da clínica geral. 
Existem quatro classes de kimbandas, perfeitamente hierarquizadas. Só se sobe de classe se o espírito assim o determinar.
Os da primeira classe beberam sangue de galinha e detêm pouco poder. Os da segunda beberam sangue de cabrito. Tratam doenças vulgares. Os da classe seguinte beberam sangue de cão. São capazes de "farejar" as doenças e as suas causas. "Chupam" do corpo enfermo as substâncias maléficas que um feiticeiro mau lá fez entrar para lhe tirar a saúde.
Os da quarta categoria beberam sangue de boi. Existem poucos. São capazes de descobrir quem foi que "comeu a vida" do defunto. É-lhes atribuído o terrível poder de exercerem acção a distância. 
Falarei neles numa próxima ocasião.

Referências:
Carlos Estermann. Etnografia de Angola (Sudoeste e Centro). Instituto de Investigação Científica Tropical, Lisboa, 1983.
Imagens:
Ídolo: colecção pessoal. 
Fotografia de adivinho com a cesta de adivinhação: Escultura Angolana, Memorial de Cultura. Museu Nacional de Etnologia, Lisboa, 1994.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

O MEU 25 DE ABRIL


A 25 de Abril de 1974, levantei-me cedo. A  minha mulher tinha uma visita de estudo marcada para Coimbra e tencionava levar com ela a nossa filha mais velha. A Cláudia, que era mais nova, foi comigo para S. José. 
Cheguei ao hospital por volta das oito e meia. Estranhei ver tantos carros de colegas estacionados junto ao Serviço 10. Quando entrei na sala dos médicos, já lá estava muita gente.
- Não sabes o que se está a passar? - perguntou-me o Ventura.
Eu não tinha ligado o rádio. Disse que não.
- Está a decorrer uma rebelião militar contra o governo. Os revoltosos intitulam-se Movimento das Forças Armadas. Dizem que estão a conseguir tomar conta dos pontos estratégicos de Lisboa.
Seguimos durante alguns minutos as notícias da rádio. A situação parecia indefinida. Eu e o Carlos Durão Maurício tínhamos operações marcadas para essa manhã. Resolvemos deixar uma das marquesas do bloco vaga para uma urgência eventual e fomos trabalhar na outra. A Cláudia ficou entregue às enfermeiras.
Quando acabámos de operar, eram horas do almoço. Ouvimos as notícias. O Movimento das Forças Armadas progredia no terreno. Não tinha dado entrada no Banco de S. José qualquer ferido de guerra.
Como não sabia como estava o caminho, aceitei o convite do Maurício para almoçar em casa dele.
Havia perto um quartel da Guarda Republicana e a situação continuava tensa. Enquanto o Maurício estacionava o automóvel, toquei à campainha. A Marilda perguntou, pelo intercomunicador:
- Quem é?
Perdi uma ocasião magnífica de parecer sensato. Respondi, com voz grossa:
- É a PIDE!
Quando subi ao terceiro andar, arrependi-me da piada. A esposa do meu colega e amigo tinha perdido o controlo dos nervos e estava lavada em lágrimas. Não teria grande coisa a recear da Polícia Política, mas aquele não era um dia como os outros e as pessoas andavam nervosas.


Tentei telefonar para casa, sem êxito. Não sabia da minha mulher e da minha filha mais velha, nem elas de nós. Após um almoço improvisado mas agradável, meti-me no carro e conduzi até perto da ponte sobre o Tejo, para me inteirar das condições de trânsito. O percurso estava livre. Fui buscar a Cláudia e regressei a casa. A viagem foi normal. Parecia nada estar a acontecer no País. 
A São e a Marisa nem tinham chegado a sair de Setúbal. Chegara a notícia do levantamento militar e a visita de estudo fora cancelada.
Acho que, para compensar a gaffe do fim da manhã, me portei bem durante o resto do dia. A perspectiva da queda do velho Estado Novo entusiasmava quase toda a gente. No entanto, em vez de ficar especado em frente à televisão, que era o que me apetecia, cumpri o meu dever e fui trabalhar.Tinha umas tantas visitas domiciliárias a doentes da Caixa de Previdência à minha espera. A festa foi adiada algumas horas.

terça-feira, 19 de julho de 2011

A MULHER QUE SE MATOU POR MIM


Há muitos anos, chamaram-me para observar uma doente que vivia na minha rua. Peguei na maleta de mão, caminhei durante duas centenas de metros e subi ao primeiro andar da casa onde ela morava com a família.
A senhora teria à volta de setenta anos. Nem estava muito mal, mas parecia gasta. Não tinha o tino perfeito e falava sem cessar. Os familiares escapavam-se como podiam daquela enxurrada de palavras. Acabava por passar muito tempo sozinha.
Eu tinha aprendido a escutar e a interromper as conversas no momento oportuno. Fosse lá alguém travar aquela mulher... Não fui capaz. Aguentei.
Falou de uma caterva de maleitas e voltou atrás quantas vezes quis. Era diabética e hipertensa. Enumerou os podres da família e queixou-se dos parentes. Dissertou durante hora e meia. Aproveitei a primeira pausa no seu longo discurso para juntar uma receita inocente aos remédios que já tomava e pisguei-me. Nem me lembrei de cobrar a consulta. 
Semanas depois, apareceu-me um dos sobrinhos, afogueado. A doente estava pior. 
Alguns dias após a minha visita, modificara bruscamente o comportamento. Desleixara a higiene pessoal e passara a vestir de forma estranha. Começaram a desaparecer em casa coisas de pouca monta: uma ou outra peça de roupa, escovas e cosméticos. A culpada foi fácil de descobrir. 
Sem lhe dizerem anda, passaram a vigiá-la discretamente. Constataram que ia recolhendo o que encontrava à mão e aferrolhava tudo numa arca velha. 
Nessa manhã, tinham ido dar com ela a ataviar-se frente ao espelho.Vestira uma saia demasiado comprida, soltara o cabelo e besuntara laboriosamente a cara com produtos de beleza. Acabara de pintar os lábios de um vermelho muito vivo.
A explicação daqueles preparativos deixou a família embaraçada. A senhora desenvolvera um delírio calado e empolgante que metia romance e casamento. Juntara o seu bragal e aprazara aquele dia para a boda.  
Como a não deixaram sair de casa, fechou-se no quarto e engoliu todos os comprimidos que encontrou.
O pobre do sobrinho estava a suar e pôs-se vermelho como pimento maduro quando me contou que o noivo era eu.
Antes de ver a doente, pedi que me mostrassem as caixas de medicamentos que ela havia ingerido. Por sorte, eram todos inofensivos.
Sentia-me pouco à vontade, quando entrei no quarto dela, mas a obrigação profissional sobrepôs-se rapidamente às circunstâncias da consulta. 
A mulher parecia um espantalho e chorava baixinho. Estranhamente, não dizia palavra.
Lá se deixou observar. Não encontrei sinais de alarme. A tensão arterial era razoável e a fita mostrava valores aceitáveis de açúcar na urina. Como se tratava de uma pessoa frágil, achei prudente enviá-la ao hospital para lhe lavarem o estômago. Era conveniente fazer análises para avaliar os danos e mantê-la sob vigilância durante algumas horas. 
Muito admirado fiquei quando soube que a senhora tinha falecido. Aconteceu nessa mesma noite, no serviço de urgência.
Revi mentalmente o processo. Entre as minhas duas visitas dera-se, provavelmente, um acidente vascular cerebral. Note-se que relato um caso que ocorreu antes da minha entrada para o internato da especialidade, anos antes da existência da Tomografia Computorizada ou da Ressonância Magnética. Muitos diagnósticos, então, assentavam em bases clínicas. Eu ignorava a causa da morte. A doente tinha factores de risco conhecidos para doença arterial. 
Não houve autópsia, provavelmente por erro de comunicação. Era obrigatória, em caso de tentativa de suicídio. Ainda telefonei para um colega que tinha estado de banco no Hospital de São Bernardo, mas não adiantou grande coisa. A mulher parecia estável, quando da última observação clínica. Minutos depois, uma enfermeira dera com ela morta.
Fiquei a pensar naquela vida. Julgo que a doente se fixou em mim porque fui o único ouvinte atento de que dispôs durante anos.
Esqueci-me de dizer que a senhora era cega. Terá gostado do pouco que ouviu da minha voz.

A história é verídica, no essencial. Aconteceu comigo em 1972 ou 1973. Vou integrá-la no livro "O Geronte dos Mares e outras Histórias".

terça-feira, 5 de julho de 2011

A MORTE DE MANUEL PLÁCIDO




Em 1873, Manuel Plácido, filho de Ana Plácido e provavelmente de Camilo Castelo Branco, embarcou para Luanda, na companhia do morgado de Pereira, António José Pereira Coutinho. Tencionava estabelecer-se como comerciante. 
Camilo relatou a hesitação da mãe em deixá-lo partir. 
Manuel mostrou-se determinado. Regressou a Portugal dois anos depois. Aparentemente, não trouxe dinheiro nem juízo. Veio a falecer, na Póvoa de Varzim, a 17 de Setembro de 1877. Camilo escreveu que o jovem morreu de meningite. 


A sua doença e ao mesmo tempo agonia durou quatro dias. Cheguei à beira do seu leito cercado de amigos, quando a febre cerebral deixara entrar na sua alma um raio de luz, uma intermitência de razão.
Amparei-o nos braços e senti na rigidez inflexa daquele corpo que a vida se lhe despedaçava.
Adeus Manuel, filho do meu coração.




Camilo negou sempre a paternidade do Manuel, mas chorou-o como se fosse pai.
Embora não se conheçam antecedentes pessoais de paludismo, a estadia numa região endémica de malária e a doença fulminante do jovem Manuel obrigam a pôr a hipótese de ele ter sido vitimado pela forma cerebral da malária. O paludismo cerebral evolui com cefaleias, sonolência, transtornos mentais agudos e coma. Os sinais meníngeos clássicos não são frequentes, mas podem ocorrer, confundindo o diagnóstico. Em Angola, predomina a modalidade falciparum da doença. Nesta forma, as recaídas em geral desaparecem no termo de um ano, mas podem ocorrer mais tarde. 
Os parasitas do paludismo foram descobertos por Laveran, em 1880. Dificilmente a ajuda laboratorial estaria disponível em Portugal sete anos depois. 

Expirou-me nos braços Manuel Plácido, filho de D. Ana. Tinha dezanove anos. D. Ana encaneceu e agora mesmo a estou ouvindo chorar. Esta casa é uma tristeza sem nome nem esperança de alegria. 

Fontes:
Cabral, Alexandre. Dicionário de Camilo Castelo Branco. Caminho, 1988.
Trabulo, António. Eu, Camillo. Parceria A.M.Pereira, 2006.
Viale Moutinho, José. Camilo Castelo Branco - Memórias Fotobiográficas. Caminho, 2009.
Imagens Camilianas.