Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

terça-feira, 7 de abril de 2015

  NECROFILIA NA LITERATURA PORTUGUESA


      CAMILO CASTELO BRANCO



No caso de Camilo, chegou a tomar-se o texto pelo autor e o nosso grande escritor nunca se livrou de todo da fama de necrófilo.
A ideia de necrofilia foi, a meu ver e no de outros, forjada pelo próprio escritor quando publicou na «Aurora do Lima», em Viana, a narrativa «Impressão indelével», que seria incluída, no mesmo ano no volume «Duas horas de leitura». Voltei a ler três contos seus com o agrado de sempre. Camilo escreve tão bem que até as suas obras menores se leem com prazer.
“Impressão indelével” não foi a primeira história em que Camilo recorreu a associações macabras para impressionar os leitores.



Neste livro publicado recentemente os editores juntaram dois contos e uma pequena novela, escritos em alturas diferentes. “O esqueleto” data de 1848, enquanto “A caveira” é de 1855 e a “Impressão indelével” remonta a 1857. Entram neste pequeno volume dois esqueletos completos e uma caveira avulsa. Nas duas últimas narrativas, os protagonistas são enterrados juntamente com as ossadas das mulheres amadas. Mesmo sem lhes juntar na história de Fanny Owen, já é necrofilia de sobra…
Vou concentrar-me na “Impressão indelével” porque nela o escritor descreve, na primeira pessoa, a exumação do cadáver de Maria do Adro e fá-lo com tal realismo que até o próprio sobrinho António de Azevedo Castelo Branco, levou a história a sério. António de Azevedo declarou, em 1890, ao biógrafo do tio materno, Alberto Pimentel, que, em casa do padre António de Azevedo, seu tio paterno, estiveram, durante anos, os ossos de Maria, sem que o inocente sacerdote disso desse conta.


Esta é a casa do padre António, cunhado de Carolina, a irmã de Camilo. O escritor morou ali durante vários meses, na sua adolescência.
A suposta exumação foi relativamente precoce (um mês após o óbito) e não consta que padre António sofresse de anósmia.
Por outro lado, a paixão platónica que o nosso Camilo terá tido por Margarida Maria Dias, a Maria do Adro, coincide, no tempo, com o seu casamento com a Joaquina de Friúme, de quem viria a ter uma criança. O futuro escritor abandonou mãe e filha. Ambas faleceram cedo.


Maria do Adro era filha duma viúva pobre e morreu de tuberculose. Morou nesta casa, também em Vilarinho da Samardã.
Maria do Adro era cinco anos mais velha que Camilo, que casou aos quinze ou dezasseis. De forma para mim inexplicável, no conto, a iniciativa da profanação do cadáver parte do cunhado médico, Francisco José de Azevedo, que perguntou a Camilo, no dia seguinte ao seu regresso e ao recebimento da notícia da morte da Maria do Adro:
Sabe alguma coisa de anatomia?
−Eu fiz um exame.
−Atreve-se a ajudar-me a preparar um esqueleto?
−Poderei ajudá-lo.
−Então guarde segredo, porque é preciso que meu mano padre o não saiba. Temos de ir à igreja desenterrar o cadáver duma rapariga que morreu tísica.
−A Maria do Adro? – atalhei eu com estranha vivacidade.
Lembre-se que Camilo chegou a estudar Medicina e obteve aprovação em duas cadeiras, uma das quais foi Anatomia.



Para que quereria o Doutor Azevedo um cadáver em putrefação? O autor não se dá ao trabalho de explicar as intenções do cunhado.
                                                         

O nosso grande Egas Moniz foi um dos que enfiaram o barrete, abordando a suposta necrofilia de Camilo na sua interessante obra «A vida Sexual». Eu tenho um exemplar desse livro, mas não o consegui encontrar. Tive de procurar outras fontes.
Ainda era o tempo em que a patologia psiquiátrica era encarada com preocupações morais. Os médicos faziam juízos de valor ético sobre as perturbações mentais dos doentes. Escreveu Moniz:
“ A necrofilia é a mais repugnante de todas as matérias que aviltam a vida sexual do homem”. Continuou adiante, referindo-se a Camilo:
O que apenas desejei patentear é que, pelo exame das provas que as biografias publicadas nos fornecem (baseava-se essencialmente no trabalho de Alberto Pimentel, “O romance do romancista”) não podemos deixar a suspeita de que Camilo fosse um necrófilo”. Dito de outro modo: absolvia-o por falta de provas, sem deixar de sugerir aspetos reprováveis da vivência de Camilo. Não seria propriamente um necrófilo, mas…


Em 1925, comemorou-se o centenário do nascimento de Camilo Castelo Branco. As comemorações incluíram a inauguração de um busto do escritor, a atribuição do seu nome a uma rua da cidade do Porto e a publicação de uma obra intitulada “In memoriam de Camilo”, com contributos de muitas personalidades notáveis da vida pública e intelectual do país. Egas Moniz deu também colaborou na coletânea de textos. Foi pouco feliz na escolha do título do seu trabalho. Intitulou-o “A necrofilia em Camilo”.
De facto, no texto desmente o cabeçalho. Apesar de continuar a acreditar o homenageado desenterrara o corpo de Maria do Adro – “Não há dúvida que Camilo assistiu com seu cunhado à exumação do cadáver da sua antiga namorada” − Egas Moniz conclui o seu artigo afirmando que ”...Camilo não só nunca foi um anormal genésico, mas não mostra, por este relato, o mais leve pendor para o campo das perversões sexuais”. O comportamento do escritor teria “roçado pelo normal”.
A meu ver e no de Alexandre Cabral, o nosso Prémio Nobel da Medicina não tem razão neste caso.
Não foi, contudo, o único a pensar assim. António Sardinha, ideólogo do “fundamentalismo lusitano”, bem distante politicamente de Egas Moniz, também colaborou no “In memoriam de Camilo”. Aceitou a anormalidade de Camilo e atribuiu-a à sua ascendência hebraica.
Já em 1965, o médico João de Araújo Correia no prefácio ao livro “Camilo em Ribeira de Pena”, do também médico Mário de Menezes, escreveu: “Egas Moniz não andou longe da verdade, considerando necrófilo o extravagante Camilo”.
Tanto quanto sei, deixaram-se levar pelo génio do escritor. Até Egas Moniz, de cujo espírito arguto todos nos orgulhamos, se deixou enganar.


Nas suas novelas, Camilo recorria a tudo o que pudesse cativar o interesse dos leitores. Nada há, no seu percurso de vida, que aponte para a existência de parafilias. Como os psiquiatras sabem, tais comportamentos repetem-se.
Em tempos, eu pus estas palavras na boca de Camilo: “É verdade, ou não, o que escrevo? Umas vezes é. Noutras, passa a ser. Um texto, ao verter-se no papel, ganha existência própria; faz-se real”.
Ao molhar o aparo no tinteiro, ainda sou eu; mudo no traçar das primeiras frases. Transformo-me; faço-me personagem e moro nos capítulos do romance; exponho a alma em cada artigo de gazeta.
Sou quem escreve. Sou também o que está escrito.
Disse Camilo ao seu amigo Freitas Fortuna, que lhe disponibilizou o jazigo de família para o último repouso:
Caveiras, só tive uma perto de mim quando estudava anatomia.

segunda-feira, 6 de abril de 2015

          

         NECROFILIA NA LITERATURA PORTUGUESA

              FIALHO DE ALMEIDA

   
Qualquer médico sabe que a necrofilia é um padrão desviante do comportamento sexual em que a excitação é desencadeada pela visão de cadáveres ou pelo contacto com eles. 
Conhecem-se diversos casos em que os autores recorreram a descrições de necrofilia para chamarem a atenção dos leitores para as suas obras. Um dos mais emblemáticos será o poema "O noivado do Sepulcro" de Soares dos Passos. Quem não se lembra de:

                    "Vai alta a lua!Na mansão da morte
                      Já media noite com vagar soou..."

Quer Fialho de Almeida, quer Camilo Castelo Branco produziram obras literárias que tiveram a necrofilia por tema. Neste artigo, vou falar de Fialho.


Conheço «A Ruiva», de Fialho de Almeida, desde os meus catorze ou quinze anos. Por essa altura, eu lia tudo o que encontrava. O meu pai tinha a sua obra. Li a toda a coleção de «Os gatos» e a seguir, li "Os contos".  Lembro-me de ter achado «A Ruiva» uma narrativa erótica.
Fialho de Almeida ainda foi contemporâneo de Camilo. Nasceu quando Camilo Castelo Branco ia nos 32 anos e sobreviveu-lhe dezanove.


Fialho conhecia Camilo e apreciava-o. Dedicou-lhe os seus «Contos», em temos muito elogiosos.
Eu andava à procura da "Ruiva" de Fialho e encontrei a de Renoir.

Descobri, por acaso, que o pintor Pierre Renoir era pai do realizador de cinema Jean Renoir. Andrée Hessling, aqui retratada, usou também usou o nome de Catarina. Foi o último modelo do pai e a primeira atriz dos filmes do filho, que se casou com ela.


Voltei a ler «A Ruiva», desta vez na Internet. Encontra-se digitalizada e disponível gratuitamente, no sítio da Biblioteca Nacional e, pelo menos, noutro endereço eletrónico. É fácil de descarregar para o computador pessoal.
No conto de Fialho, a necrófila é Carolina, a Ruiva, filha do coveiro e órfã de mãe. Ainda virgem – e passo a citar Fialho:
“Nas horas de calor, de verão, quando sob os ciprestes os empregados do cemitério dormiam, ia devagarinho, sem ser pressentida, à casa dos depósitos, escolhia os cadáveres dos moços, dos belos, se os havia, e como um pequeno vampiro sequioso entreabria as mortalhas, despregando com uma navalhinha as camisas; metia a mão devagarinho pelo peito, metia, escorregando-a ao longo das carnes, beliscando-as levemente, com prazer”.
E a história, que é mais novela do que conto, vai de desgraça em desgraça. O autor obriga o coveiro a enterrar a própria filha. O texto acaba com o narrador a olhar a caveira da Ruiva em cima da sua mesa de trabalho.
Ao menos, não foram atribuídas a Fialho de Almeida tendências sexuais desviantes.