Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

quinta-feira, 7 de março de 2013


               

         GENEROSIDADE E OBSTINAÇÃO


Aconteceu em 1974, pouco tempo depois do 25 de abril.
O Granwer era um interno de Anestesia entusiasta e cheio de vontade de aprender. Curiosamente, tinha dupla nacionalidade: portuguesa e suíça. Era tutelado pela doutora Cristina da Câmara, que gostava de repetir:
─ Granwer! Tu és a minha dor de cabeça.
Eu dava os primeiros passos na Neurocirurgia, integrado na equipa do dr. Correia de Almeida. O nosso Serviço era dirigido pelo carismático dr. António Vasconcelos Marques.
Eu e o Granwer trabalhávamos muitas vezes juntos, tanto no Serviço como na Urgência. Numa tarde de verão em que havia pouco que fazer, passei pelas salas de observação, a caminho do bar. Espreitei. O Granwer tentava afanosamente reanimar um idoso cujo coração desistira de bater instantes antes. Procedia ele próprio à massagem cardíaca, enquanto orientava os enfermeiros que ventilavam o moribundo com máscara e balão e iam administrando os medicamentos indicados.
Como não fazia ali falta, prossegui o meu caminho.
Vinte minutos mais tarde, depois de beber uma imperial e de trocar alguns dedos de conversa com outros colegas que esperavam que os doentes chegassem, regressei ao corredor do Banco. Voltei a espreitar para a mesma sala de observações. Lá estava o Granwer, banhado em suor, generoso e obstinado na sua tentativa de ressuscitação. O homem estava mais que morto.
Cheguei-me à porta e deixei sair uma provocação:
─ És tu dum lado e o S. Pedro do outro…
Acreditem ou não, o educadíssimo Granwer interrompeu a massagem cardíaca e chamou-me filho da puta, mesmo em frente dos vivos e do cadáver.