Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

terça-feira, 30 de junho de 2015

      

        MEDICINA TRADICIONAL CHINESA


             EM MACAU, NO SÉCULO XX



Durante séculos, a medicina tradicional chinesa foi a única a que os habitantes de Macau tiveram acesso.
Os primeiros boticários europeus foram jesuítas. Médicos e sangradores tardaram a instalar-se na pequena cidade-estado. Falei nisso, neste blogue, algum tempo atrás.
O começo do rompimento com a tradição chinesa tem uma data: 1913. Foi nesse ano que o Dr. José Caetano Soares chegou a Macau. Tomaria conta do Hospital de S. Rafael em 2016.
O prestígio deste clínico tornou popular na Cidade do Santo Nome de Deus a medicina ocidental.
O processo não foi acelerado porque o número de médicos formados em Portugal era insuficiente para atender a população chinesa. Em abril de 1935, Caetano Soares estimava em 40% a percentagem da população de Macau que optava pela medicina tradicional. Os seus cálculos baseavam-se na frequência do Hospital Keng Wu.
Em 1944, a insuficiência da oferta de cuidados europeus de saúde continuava a obrigar as autoridades portuguesas a tolerarem a continuação do exercício profissional por parte dos curandeiros chineses. Não existiam na colónia médicos, parteiros e dentistas em número suficiente.
As leis foram acompanhando a evolução da realidade do território. Em 1954, foi já possível limitar (em teoria) o exercício da arte de curar aos chineses habilitados por escolas ou instituições reconhecidas pelas autoridades sanitárias.
Em 1964, foi adotada uma legislação curiosa. Os médicos chineses passaram a ser considerados enfermeiros. Na prática, o exercício da medicina tradicional passou a ser clandestino.


O professor italiano António Scarpa fez uma viagem de estudo pelo Extremo-Oriente e, em 1965, publicou as impressões recolhidas em Macau.
«A maioria das farmácias – sejam ocidentais, mistas ou chinesas – pertence aos chineses, os quais, como é evidente, simpatizam com a sua medicina; acontece que, quando uma pessoa solicita determinado fármaco não-chinês, o vendedor oferece-lhe uma mezinha tradicional, acompanhada do mais amável dos sorrisos e das mais persuasivas recomendações – motivo por que o cliente, muitas vezes e sobretudo se é chinês, acaba por adquirir a especialidade sugerida pelo farmacêutico.
Os boticários chineses não frequentam qualquer escola profissional. Iniciam a sua carreira como simples moços de farmácia, passando depois, a pouco e pouco, por três graus sucessivos, até conseguirem o cargo de diretor de farmácia.


Raras vezes o farmacêutico faz poções ou xaropes. Em geral, serve-se das drogas prescritas e junta-as num único cartucho de papel que, depois, entrega ao cliente. Este, chegando a casa, faz pessoalmente a poção, conforme as instruções que o médico lhe deu.
Os médicos tradicionais chineses pertencem, geralmente, a famílias de médicos, orgulhando-se da sua ascendência que, por si mesma, pode constituir título para exercer a medicina; desde rapazinhos, os filhos dos médicos conhecem algumas noções de medicina, aprendidas com os pais. Terminada a escola média chinesa, que dura seis anos, os alunos inscrevem-se numa Chung i Hòk Uén, isto é, numa Escola de Medicina Chinesa que em regra tem a duração de cinco anos. Frequentemente, as lições são dadas de noite, durante duas ou três horas, a fim de consentirem que os alunos se dediquem a outras atividades de dia.»
No final de 1970, foram renovadas as licenças a 108 médicos, 60 dentistas, 31 enfermeiras, 18 parteiras e 86 praticantes de medicina tradicional chinesa. 
As modificações culturais são, quase sempre, lentas e progressivas. Disse o padre Manuel Teixeira: «as antigas famílias de Macau tinham em suas casas cadernos de mezinhas caseiras e populares para as mais diversas». Anos mais tarde, quando as procurou recolher para estudo, obteve apenas alguns exemplares cedidos por senhoras que iam na oitava década da vida. Lá, como cá, os tempos mudaram. De modo geral, a época dos mestres chinas pertence à História.

Apoio bibliográfico:
Scarpa, A. A medicina tradicional chinesa em Macau. 
Soares, J. C. Notas sobre a medicina chinesa.
Teixeira, M. Os mestres chinas.
Todos estes artigos integram o livro A Medicina em Macau, do padre Manuel Teixeira. Governo de Macau, Macau, 1998.

segunda-feira, 29 de junho de 2015

  

   MORTE DE UM NEUROCIRURGIÃO 

                EM CATIVEIRO



Ninguém sabe que porção de realidade se esconde atrás das lendas. O escritor chinês Luo Ghuanzhong escreveu, no século XIV, «O romance dos três reinos» que glorifica a figura do médico e cirurgião Hua Tuo, encarcerado até à morte por ordem do general Cao Cao. Cao sentou-se num dos três tronos que resultaram do desmembramento do império Han.

                  Representação de Cao Cao

Hua Tuo tem, para os chineses, um prestígio incomparável. É o patrono da cirurgia. Foi deificado e as suas imagens são veneradas em muitos tempos taoistas, inclusive em Macau. 

                     Estatueta de Hua Tuo

«Hua Tuo reincarnado» é uma expressão usada na China para elogiar um médico de reputação extraordinária.
Hua é o nome de família e Tuo o próprio. Terá vivido entre os anos 140 e 208 d.C., testemunhando a passagem da dinastia Han à era dos Três Reinos. É considerado pioneiro na cirurgia abdominal. Julga-se que foi o primeiro cirurgião do mundo a operar com anestesia geral. 


Terá executado também trepanações.
A sua formulação anestésica não foi transmitida à posteridade. Pensa-se que usou, dissolvido em aguardente de arroz, um preparado de ervas chamado «mafeisan». A tradução literal de «mafeisan» é «pó de cannabis cozido».
A tradição adicionou à sua obra uma série de pontos novos para acupuntura e a invenção de suturas, de unguentos anti-inflamatórios e de remédios para a ascaridíase.   
A trepanação foi aprovada por Hipócrates para o tratamento de feridas cranianas. Não há indícios de que o médico de Cós a tenha praticado pessoalmente.
Cao Cao sofria de dores de cabeça recorrentes e mandou chamar Hua Tuo para o tratar. O médico utilizou técnicas de acupuntura e obteve resultados apreciáveis. Preveniu o poderoso doente de que seriam necessários novos tratamentos.
Passado algum tempo, Hua Tuo voltou a ser chamado. O general Cao estava pior.
Neste ponto da narrativa, as transcrições diferem. Segundo uma delas, Hua Tuo demorou-se, alegando que sua esposa estava doente. Terá sido levado à força pelos soldados de Cao.
É a outra versão que nos agrada tomar por real. Face à persistência das queixas do senhor da guerra, o grande médico propôs-se trepaná-lo. Não é de crer que se dispusesse a uma intervenção cirúrgica de risco certo e resultado duvidoso sem dispor de grande experiência na sua execução. Desse modo, será a primeira vez na História da Medicina que a trepanação aparece associada ao nome do cirurgião que a praticou.
Cao Cao era homem desconfiado. Achou que o médico planeava assassiná-lo e atirou-o para as masmorras, onde acabou por morrer. Terá sido executado.
O Romance não indica a data certa da morte de Hua Tuo, mas terá sido em 208 ou antes.
Os seus conhecimentos perderam-se. A anestesia demoraria muitos séculos a ser reinventada e a cirurgia chinesa regrediu consideravelmente. 
     O «Romance dos Três Reinos» conta que, antes de morrer, Hua Tuo confiou a um carcereiro o livro em que registara o seu saber. Cheia de medo, a mulher do carcereiro pôs fogo ao livro. O marido foi apenas capaz de recuperar as folhas que descreviam o método de castração de patos e galos. Esse e os pontos novos de acupuntura são os ensinamentos de Hua Tuo que persistem hoje.




domingo, 28 de junho de 2015

          

    BREVE HISTÓRIA DO HOSPITAL KENG-WU

Comecemos pelo nome. Keng-Wu significa «lago do espelho», uma das 11 designações poéticas da cidade de Macau. Assim «Hospital Keng-Wu» quer dizer apenas «Hospital de Macau». O seu patrono é o lendário cirurgião chinês Hua Tuo, também chamado Hua-Tó e Vá Tó. Hua Tuo foi deificado após a morte e é adorado em vários altares de Macau.
                         Primeiro hospital Keng Wu
     Nas últimas décadas do século XIX desencadeou-se, entre os chineses ricos, um movimento de solidariedade para com os desvalidos. Culminou na fundação de hospitais e de outras instituições caritativas em diversas cidades chinesas. Em Cantão, Macau e Hong Kong foram também criados hospitais para os pobres.
O Hospital Keng Wu foi fundado por elementos proeminentes da comunidade chinesa de Macau por volta de 1870. Tinha por finalidade proporcionar consultas médicas, fornecer medicamentos, recolher cadáveres e dar-lhes sepulturas gratuitas. A benemérita instituição ultrapassava em muito as funções de um hospital: ajudava a reparar as ruas da cidade, socorria os sinistrados por ocasião de calamidades, fundava escolas, arbitrava querelas, oferecia chás e vendia produtos essenciais a preços inferiores ao do mercado.
                       Sun Yat Sen no Hospital Keng Wu
     Durante os primeiros dez anos de existência, apenas foi ali praticada a medicina tradicional chinesa. Em 1892 deu-se o acontecimento mais relevante da sua história: o Dr. Sun Yat Sen, futuro «pai da China moderna» iniciou a prática da medicina e cirurgia europeia naquela instituição. Durante meio século, trabalharam, lado a lado, no Hospital Keng Wu mestres chinas e médicos formados em universidades de saber ocidental.
Em 1917 procedeu-se a uma coleta para a construção dum novo edifício com maternidade. O projeto recebeu uma ajuda importante de José Carlos da Maia, oficial da Marinha Portuguesa e herói da Revolução Republicana de 1911, que governou Macau entre 1914 e 1916 e exerceu, durante alguns meses do ano de 1918, o cargo de ministro da Marinha. Este amigo de Macau levou o governo português a conceder um subsídio importante, ainda que minoritário, para a edificação do novo hospital. José Carlos da Maia viria a ser barbaramente assassinado na Noite Sangrenta de 19 de outubro de 1921.
Em 1923, foi criada uma Escola de Enfermagem no hospital Keng Wu. Em 1930, foi determinado que os «médicos de dia» permanecessem no hospital o dia inteiro. Em 1936 foram publicados anúncios nos jornais, pedindo médicos europeus. Em 1941 já existia um Regulamento para os médicos europeus do hospital.   
Em 1943, deu-se uma reviravolta na orgânica da instituição. Acabou o exercício da medicina tradicional chinesa, restando apenas a europeia. No mesmo ano foi fundado um asilo para crianças. Receberia cem rapazes abandonados, ainda nesse ano, e mais trezentos no ano seguinte. Seria extinto após o final da II Grande Guerra.
Entre 1941 e 46, a entrada massiva de refugiados de guerra em Macau sobrecarregou o hospital.
Os arquivos recolhidos pelo padre Manuel Teixeira referem repetidamente os contributos do hospital para a fundação e reparação de cemitérios.
Curiosamente, essa preocupação poderá estar relacionada com a elevada mortalidade ocorrida nos doentes internados durante os primeiros anos de existência do hospital. Escreveu o Dr. Lúcio da Silva, no seu relatório de 1883: «… sendo portanto a mortalidade maior que aquela que houve no nosso hospital de S. Rafael, o que não admira, atendendo às péssimas condições dos doentes que são conduzidos ao hospital chinês». O Dr. Tovar de Lemos descreveu-o assim, em 1886: «O hospital china, situado fora da cidade, está entre o bairro china em que estão os tins-tins e o cemitério. (Tins-tins eram os vendedores ambulantes que golpeavam uma chapa com um martelo para chamar a atenção dos fregueses). É um vasto edifício, com extensíssimas enfermarias, estando porém os doentes, dois a dois, isolados por delgadas paredes; os quartos têm duas tarimbas de suja madeira, uma pequena almofada de loiça ou madeira que serve de travesseiro. Os chinas estão vestidos e não usam cobertores nem lençóis. Nada mais há nos quartos. A alimentação é fraquíssima; consta principalmente de arroz.»
                             Hospital Keng Wu nos dias de hoje
A modernização do Keng Wu desenrolou-se progressivamente. Em 1944 fez-se a sala de operações, que começaria a funcionar no ano seguinte. Em 1948, foi adquirido equipamento de Raios X e ultra-violetas. Em 1950, organizou-se a secção de ginecologia. Em 1952, fundou-se um consultório de dentista. Em 1956, inaugurou-se a casa «Ho Cheng Kai», para residência de enfermeiros. Em 1961, foi criado um pavilhão de isolamento para portadores de doenças contagiosas.
Os resultados da evolução registada foram reconhecidos por todos. O padre Manuel Teixeira escreveu, em 1998:
Outrora, os chineses, crendo-se superiores pela sua experiência milenária, recusavam a nossa medicina, consultando os seus herbanários e mestres chinas. Hoje, eles próprios estudam a medicina europeia e têm médicos muito competentes. Só no Keng Wu há nada menos de 35 médicos, com bons especialistas, que não são nada inferiores aos nossos.
A época dos «mestres chinas» ou curandeiros já passou. Ainda se veem nalgumas casas tabuletas com esses nomes, mas já perderam a sua influência e clientela.



sexta-feira, 26 de junho de 2015


 MEDICINAS TRADICIONAIS CHINESA E OCIDENTAL

        TERAPÊUTICA



Nas velhas medicinas de todos os cantos do mundo, o tratamento das doenças constituiu mais um desejo que uma realidade. A Medicina nasceu associada à Magia, enquanto a Astrologia influenciou todas as civilizações. Persiste, nos nossos dias, o uso de amuletos e a prática de defumações. Na Europa, apenas no final do século XIX a medicina se apartou das previsões astrais.
Se olharmos as terapêuticas utilizadas ao longo de milénios na China e na Europa, encontraremos partes comuns e partes específicas.
A parte comum reside na utilização de drogas com presumidos efeitos medicinais, na dieta e na preocupação com o equilíbrio do organismo. O conceito de saúde como estado de equilíbrio é partilhado pelas filosofias médicas hipocrática e chinesa.
A teoria humoral de Hipócrates influenciou a medicina europeia e árabe durante mais de dois milénios. Escreveu o sábio grego: «O corpo humano contém sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra. Estas são as coisas que o constituem e causam o sofrimento ou a saúde».
O equilíbrio proporcionado por uma combinação adequada dos humores era essencial para a manutenção do estado de saúde. Existiriam, dentro e fora do organismo, forças capazes de modificar as qualidades e a distribuição dos humores. Se uma quantidade excessiva de um humor se acumulava em determinada região, o organismo reagia, procurando eliminá-lo. «Expelia fleuma pelo nariz nas constipações, bílis pelo vómito nas alterações digestivas, sangue na expetoração nas doenças pulmonares, ou bílis negra pelas fezes, nas afeções intestinais.»
O médico procurava ajudar a natureza. Boa parte do esforço terapêutico era dirigido no sentido da evacuação do excesso de humores. Usava-se e abusava-se da sangria, da purga, dos clisteres, dos eméticos e dos sudoríferos.


Os chineses procuraram, desde sempre, a harmonia com o universo. Viver seria adaptar-se à ordem natural das coisas.
Enquanto na Europa se procurava restabelecer o equilíbrio dos humores, na China eram as energias que se deveriam harmonizar. O estado de saúde consistia no fluir adequado do Yin e do Yang.
A doença ocorria quando um dos tipos de energia se acumulava em excesso num órgão, ou numa zona do organismo.
A noção de equilíbrio começou por influenciar a dieta, a que os chineses deram, desde sempre, uma atenção especial. Procuravam a prevenção. A dieta variava consideravelmente com as estações do ano. A partir do outono, quem dormia com os pés gelados podia precaver-se comendo sopa de carne de cobra com pétalas de crisântemo.


À dieta, associava-se a ginástica, como meio de preservar a saúde. Os exercícios físicos praticados por um grande número de chineses procuravam corrigir a respiração. O T`ai Kek sucedeu, em muitas regiões da China, ao Qigong, que visava promover no organismo a boa circulação da energia Qi. O exercício contribuiria também para o alívio da tensão psicológica.
Para além das dietas e do exercício físico (tanto terapêuticas como profiláticas), os principais métodos terapêuticos da medicina tradicional chinesa são a acupuntura, a moxabustão, a ventosoterapia, o Tui Na e a fitoterapia.
As três primeiras técnicas foram referidas de forma sumária nos artigos precedentes.


O Tui Na é uma forma de massagem que pretende estimular pontos determinados nos meridianos do doente. Está, assim, associada à acupuntura.
Os chineses consideravam que o corpo humano dispunha de um conjunto adequado de defesas. Era capaz de identificar as zonas doentes e de resolver a maioria dos desequilíbrios encontrados. A medicação era apenas utilizada quando falhavam as defesas naturais.
No século XVI, o médico Li Shizhen reviu a farmacopeia até então conhecida na China. Encontrou 443 produtos derivados de animais, 1.074 substâncias vegetais e 354 produtos minerais. Eram 50 as ervas fundamentais. Tal como na Europa, a complexidade de certas mezinhas era notável.


As formulações eram diversas, ocorrendo certo paralelismo nas formas de administrar a medicação. A Farmacopeia Lusitana publicada em 1704 por D. Caetano de Santo António, Boticário do Real Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, foi a primeira escrita em língua portuguesa. Faz referência a águas, vinhos, vinagres, xaropes, infusões, electuários, emplastros, mucilagens, óleos, pedras, metais, pílulas, pós, teriagas e zaragatoas.
Os chineses veiculavam os produtos terapêuticos através de chás, caldos, pílulas, pomadas, bálsamos, cataplasmas, macerados em vinho e massas fermentadas.


Criaram-se algumas expectativas quanto ao desenvolvimento de novos medicamentos a partir das plantas utilizadas na medicina tradicional chinesa. Por enquanto, os resultados são pouco animadores. A maioria das plantas orientais não possui as virtudes terapêuticas que lhe foram atribuídas.

Bibliografia:
Medicina chinesa- em busca do equilíbrio perdido. Jorge, C. e Coelho, B. Instituto Cultural de Macau e Círculo de Leitores, 1988.
A Arte de Sangrar de Cirurgiões e Barbeiros. Barradas, J. Livros Horizonte, Lisboa, 1999.




quarta-feira, 24 de junho de 2015


      MEDICINA CHINESA TRADICIONAL

    A OBSERVAÇÃO DO DOENTE


   À primeira vista, parece existir, da parte dos clínicos chineses, uma preocupação de objectividade que faz lembrar os ensinamentos de Hipócrates. Recorde-se que o médico grego foi contemporâneo de Confúcio.  O velho texto Shi Ji, compilado no século V a.C., refere a necessidade de observar cuidadosamente o enfermo: olhar, ouvir, cheirar, perguntar e tocar. No entanto, a semiologia chinesa perde-se em pormenores intrincados e fantasiosos.
A observação do doente começa por um olhar de relance sobre o seu tipo físico, personalidade e estado de espírito. 
   A obesidade denuncia a deficiência do Qi, enquanto a magreza excessiva aponta para a fraqueza do sangue e do Yin. Se o doente fala em demasia, sofre provavelmente do coração. Se grita com facilidade, estarão em causa o fígado ou a vesícula. Se chora ou suspira, o mal está nos pulmões. Os gemidos, os bocejos e o ressonar indiciam o mau funcionamento dos rins. O brilho do olhar permite avaliar o estado de espírito (Shen).
Pergunta-se pela profissão exercida. Para além de se informar sobre os hábitos e as preferências alimentares do doente, o médico quer saber das suas mágoas e preocupações pessoais e interroga-o sobre o sono. A sonolência excessiva indica deficiência do Qi e do Yang, enquanto as insónias traduzem uma atividade excessiva do Yang. 
    As características da dor são esmiuçadas. Interessa o tipo da dor, a sua localização e as circunstâncias em que surge. As dores resultantes da deficiência de Qi ou de sangue melhoram com a ingestão de alimentos ou com a pressão no ponto doloroso. Naturalmente, as dores que melhoram pelo aquecimento são originadas pelo estado de frio e as que aliviam com o arrefecimento pelo estado de calor. Existem também as dores desencadeadas pelo estado de humidade e as móveis, provocadas pelo estado vento. As dores fixas podem ser causadas pela má circulação (ou «congelamento») do sangue.  
   A seguir, palpam-se atentamente os pulsos e observa-se a língua, os olhos e o hálito.


A palpação do pulso reveste-se de uma complexidade extraordinária. Foram escritas centenas de livros sobre esta matéria. Dizem alguns que existem onze pontos para apreciar as suas setenta e quatro variedades. No entanto, é geralmente escolhido o pulso radial, dos dois lados, palpado com os dedos indicador, médio e anelar. Nos homens, é mais importante o exame da mão esquerda e, nas mulheres, o da direita.
Cada dedo distingue as indicações obtidas pelos bordos interno e externo. A pressão exercida é diferenciada e são tidas em consideração as pulsações superficiais, intermédias e profundas. Há sete variedades de pulso superficial. Contam-se entre elas o pulso flutuante, que «desliza como um peixe na água ou um pedaço de madeira a boiar», o escorregadio «como um colar de pérolas a escorregar por entre os dedos» e o apertado e comprimido, «como uma corda a ser torcida». As variantes do pulso profundo são oito. Pode ser disperso e lento, «como o chorão soprado pela brisa primaveril», ou irrequieto e a mover-se «como um coxo, como a faca que apara a haste de bambu, ou como gotas de chuva a caírem no solo arenoso». Para valorizar os dados recolhidos, são tidos em consideração a idade, o sexo, o estado de alma, a hora do dia, a estação do ano e as influências astrais.

Representação gráfica das pulsações dos pontos superficiais e profundos

A cada víscera corresponde um pulso privativo que denuncia as alterações do seu funcionamento. Existem padrões referenciais para os pulsos superficial e profundo de cada órgão:
O pulso do coração deve ser como o movimento de uma foice, vibrante no início e subtil em seguida;
O dos pulmões deve fluir sempre igual e muito suavemente, como o cabelo ou as penas sopradas pela brisa;
    O pulso do fígado vibrará como a corda dum instrumento musical.  

A interpretação da variação das cores do rosto é difícil, estando apenas ao alcance dos verdadeiros mestres. Eles conseguem, mediante esta observação, aceder a verdades autênticas, pois «na face transparece todo o Qi e todo o sangue dos meridianos». Os livros que abordam o assunto não são claros para todos. As cores «vão do branco ao negro, passando pelo vermelho, o amarelo pálido ou escuro, o laranja e o chêng (cor indefinida que oscila entre vários tons de verde e azul). O escurecimento do rosto indica uma desarmonia extrema, sendo o mal difícil de curar.
Na língua, observam-se a cor e a textura e procuram-se secreções ou mucosidades. Cada zona da língua espelha o funcionamento dum órgão. A ponta é controlada pelo coração e a região contígua está relacionada com os pulmões. O centro tem a ver com o baço e o estômago. Em ambos os lados, o domínio pertence ao fígado e à vesícula biliar.
O médico chinês atenta ainda nas secreções e excreções (relatadas ou observadas), no tom da voz, na tosse, no ritmo da respiração, no odor corporal e no hálito.
O hálito «podre» localiza o mal nos pulmões ou no cólon. O «pestilento» aponta para doença do rim ou da bexiga. O «rançoso» indica o fígado ou a vesícula biliar. O «ardente» traduz o mau funcionamento do coração ou do intestino delgado.
Na medicina tradicional chinesa, a observação do doente é um processo demorado. Deve ressaltar-se a importância dada à semiologia do pulso. Quando um chinês de Macau ia ao médico, utilizava a expressão tai-mak, que significa «ver o pulso».

Bibliografia:
Na preparação deste artigo e dos precedentes, recorreu-se a:
Medicina Chinesa – em busca do equilíbrio perdido, de Cecília Jorge e Beltrão Coelho.
Alguns aspetos da medicina tradicional chinesa – artigo de Ana Maria Amaro, transcrito pelo padre Manuel Teixeira no seu livro Medicina em Macau.
Notas sobre a Medicina chinesa, de José Caetano Soares, também transcrito pelo padre Manuel Teixeira no seu livro Medicina em Macau.




segunda-feira, 22 de junho de 2015


    PECULIARIDADES CHINESAS:

  MERIDIANOS, ACUPUNTURA E MOXABUSTÃO


Os meridianos são vias imaginárias de transporte. Dão passagem à energia e, por vezes, ao sangue. Percorrem o corpo, a profundidades variáveis.
É na rede de meridianos que se fundamenta a prática da acupuntura e, também, da moxabustão e de certas massagens. Comporta 365 pontos principais (o seu número é igual ao dos dias do ano). Atuando neles, mediante a introdução de agulhas, torna-se possível compensar a falta ou o excesso de Qi nos diversos órgãos, restabelecendo o equilíbrio necessário.


Existem dois meridianos principais: o do «caso dominante», que corre junto ao dorso e transporta a energia Yang, e o do «vaso da conceção», que cursa na parte de frente do corpo, também paralelo à coluna vertebral. Seguem-se seis meridianos Yin e outros seis Yang, relacionados com os órgãos e vísceras.
Outros meridianos de importância secundária asseguram a comunicação entre os principais, constituindo um sistema de vasos comunicantes que evita desequilíbrios da carga de energia em pontos diferentes do corpo.  
A acupuntura é uma prática chinesa milenar que, no decurso das últimas décadas, conheceu uma divulgação extraordinária no mundo ocidental. De forma que não deixa de ser curiosa, a Organização Mundial da Saúde considerou-a adequada para o tratamento de mais de quarenta afeções que vão das vertigens à gripe e às cataratas.



Os 365 pontos de acupuntura são locais onde os meridianos se superficializam.  
Diz-se que a picada é praticamente indolor. A forma das agulhas, a profundidade a que se devem introduzir e os tempos de terapêutica variam muito. Em determinadas circunstâncias, é conveniente fazê-las vibrar. Modernamente, a utilização de agulhas é associada à estimulação elétrica, ultrassónica e eletromagnética e à utilização de LASER.
Os mestres chineses esperam que a introdução das agulhas liberte o organismo da energia “saturada e estagnada”, permitindo a entrada de energia fresca.
Nem todas as ocasiões são favoráveis à terapia. As agulhas devem ser aplicadas em dias quentes e nunca em fase de Lua Nova, pois então a natureza atravessa um período de instabilidade, podendo entrechocar-se o Yin e o Yang.
Modernamente, encontrou-se uma base fisiológica para a ação benéfica da acupuntura na dor e noutras situações. A introdução das agulhas estimulará a produção de endorfinas que atuam em áreas cerebrais responsáveis pela modulação da dor, do humor e da ansiedade. A naloxona, um bloqueador dos recetores de endorfinas, bloqueia a analgesia induzida pela acupuntura.
A ingestão de chocolate e pimenta estimula também a produção de endorfinas.
A prática da moxabustão está tradicionalmente associada à acupuntura. É, aliás, uma espécie de acupuntura térmica. Consiste na aplicação localizada de calor em zonas escolhidas da pele. Eram utilizados procedimentos que produziam verdadeiras queimaduras, com dor e formação de cicatrizes.
Moxa é uma espécie de algodão da erva Artemísia. Queimado, produz um calor moderado e uniforme. Utiliza-se em bastões e cones. O bastão acesso é semelhante a um charuto e deve ser aproximado do ponto escolhido.


A Moxa tem sido misturada com alho, gengibre e sal. É também utilizada em tratamentos com ventosas de vidro, prática comum à medicina tradicional europeia, que os mais velhos de nós ainda recordam.


Gravura: retirada de Medicina Chinesa - em busca do equilíbrio perdido.
Fotografias: Internet



domingo, 21 de junho de 2015


   UM OLHAR SOBRE A MEDICINA CHINESA

         A ANATOMIA

O culto dos mortos interditava os estudos anatómicos, o que tornou a anatomia chinesa fantasiosa. A título de exemplo, o esqueleto humano seria composto por 360 ossos, não porque os tivessem contado (são 206, com variações) mas porque era esse o número das divisões do zodíaco.
A tradição chinesa privilegia o número 5. São 5 os elementos constituintes da natureza, 5 os planetas principais, 5 as cores mais admiradas e 5 os pontos cardeais (além dos nossos, incluem o Centro). Teriam de ser 5 as vísceras principais: fígado, baço, coração, pulmões e rins, todas dependentes do princípio feminino Yin. São também 5 as vísceras dependentes do princípio masculino Yang: intestino delgado, intestino grosso, estômago, bexiga e vesícula biliar. 


A falta de observação direta era compensada com a imaginação.
   Deixo aqui um fragmento de texto do médico português José Caetano Soares, que trabalhou em Macau durante muitos anos. Faz parte de «Notas sobre a Medicina Chinesa» e foi publicado pelo padre Manuel Teixeira no seu livro «A Medicina em Macau».

O tórax é fechado por três esternos, comporta o coração - órgão primordial, situado em pleno epigastro ou na parte alta da região do estômago e que, como particularidade, tem incluído um osso pequeno com a forma de uma sapeca (moeda). De cada lado estão suspensos à coluna os dois pulmões a constituir uma espécie de fole de 24 tubos, com grande número de orifícios, dos quais provém o som. A laringe atravessa-os no seu caminho para o coração. Dos órgãos abdominais, não só o fígado está separado e é independente da vesícula biliar, como o intestino delgado comunica com o coração, a urina atravessando aquele na sua trajectória para a bexiga. O rim, através da medula, liga-se com o cérebro.
Os centros nervosos praticamente não existem; só o cérebro, considerado como a continuação da medula, se chama por isso a medula do crânio. Não há diferença entre nervos e tendões, a ambos cabe a designação de «can».

Não me vou alargar sobre a anatomia e a fisiologia, tal como são entendidas pela medicina tradicional chinesa. Mencionarei apenas alguns órgãos principais e deixarei para o fim uma referência breve ao papel do «triplo aquecedor».

Coração - é o órgão principal e governa todas as vísceras. Está associado ao fogo, ao verão e ao sul.



Localiza-se «acima do fígado, baço e diafragma, tem a forma de uma flor de lótus e pesa 12 taéis.»
Fui procurar o valor do tael. Equivale a pouco menos de 30 gramas. A estimativa chinesa aproxima-se dos 250 a 400 gramas que pesa um coração saudável.
O coração está ligado por tubos aos outros órgãos principais. Comanda o fluxo sanguíneo e abriga o shen. Controla a atividade mental. É a sede do amor e da afeição. É representado pela mitológica «ave escarlate».
O estado do coração revela-se pela língua e pela face
Curiosamente, para os chineses, o pericárdio é um órgão independente, destinado a proteger o coração. 

Pulmões – Governam o Qi. Por estarem expostos ao exterior, constituem o mais frágil dos cinco órgãos Yin.


Fazem descer o Qi do ar pelo nariz, espalham-no e fazem subir os restos impuros do Qi, disseminando-os no ar.
Controlam a água do corpo. No movimento descendente, liquefazem a parte gasosa do ar e enviam-na para os rins. No movimento ascendente, fazem evaporar o líquido, que se espalha, sob a forma de suor e doutras secreções.


Têm também um atributo moral: são a sede da equidade. Estão associados ao metal, ao outono e ao oeste. O seu espírito toma a forma de um tigre.
Mostram-se através do nariz e dos cabelos.

Baço – é o órgão mais importante da digestão. Tem um papel de relevo no aproveitamento da energia dos alimentos e na sua transformação em sangue e em Qi. Mantém o sangue dentro dos vasos e encarrega-se do seu transporte por veias e artérias. Comanda os músculos, os tendões e os movimentos.


O baço é a sede da confiança.
Está associado ao elemento terra, aos meses que vão do fim do verão ao começo do outono e à direção centro. É simbolizado pela fénix.


O seu estado mostra-se pelos membros e pelos lábios. Se falta a harmonia ao Qi do baço, o doente deixa de ser capaz de diferenciar os cinco sabores fundamentais (doce, amargo, salgado, ácido e picante).

Fígado – promove a harmonia do fluxo do sangue e do Qi pelo organismo. Ajuda a digestão. Armazena o sangue, o qual «sobe» quando é necessário para o esforço físico e regressa quando deixa de ser preciso.


 É a sede da bondade.
Está associado ao elemento madeira, à primavera e à direção leste.
É representado pelo dragão.


Revela-se pelas unhas e pela vista. Quando lhe falta a harmonia, as unhas tornam-se baças e quebradiças e a vista falha, podendo tornar-se incapaz de diferenciar as cores.

Rins – Contribuem para a digestão e para a circulação da água e dos fluidos orgânicos.


Por armazenarem o Jing, a essência que regula a sucessão das fases da vida, são considerados os guardiões da força vital.
Associam-se ao elemento água, ao inverno e à direção norte.
São representados por uma serpente com cabeça de dragão enrolada numa tartaruga.


Parece-nos estranho serem considerados a sede da sabedoria, mas a medicina chinesa está repleta de conceitos que parecem improváveis aos nossos olhos.
O funcionamento inadequado dos rins prejudica as funções do Jing e traduz-se por esterilidade, impotência sexual e envelhecimento precoce.

O TRIPLO-AQUECEDOR é uma unidade funcional encarregada de produzir calor a partir da transformação dos alimentos e de regular o equilíbrio térmico. A parte superior engloba o diafragma, o coração e os pulmões. A parte média é constituída pelo estômago e pelo baço. O aquecedor inferior assenta no fígado, rins, bexiga e intestinos.
Cabe-lhe controlar a atividade do Qi no organismo e a respiração. Regula ainda o fluido da energia vital, do sangue e dos outros líquidos corporais, e a distribuição dos nutrientes e do Qi. Alimenta a energia sexual.

Gravuras: retiradas do livro «Medicina Chinesa - em busca do equilíbrio perfeito».