Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

terça-feira, 2 de novembro de 2021

 

    NEM DEUSES, NEM DEMÓNIOS

Retomando um tema que me é caro, volto a especular sobre os dois  primeiros grandes anatomistas: Leonardo da Vinci e André Vesálio. O trabalho que agora publico teve como pretexto o lançamento de nova edição do notável conjunto de pequenas biografias de Fernando Namora, reunidas sob o título "Deuses e Demónios da  Medicina".


      Fernando Namora foi, de longe, o mais ilustre dos escritores que integraram as direções da SOPEM (Sociedade Portuguesa de Escritores Médicos), depois chamada SOPEAM, por lhe terem sido oportunamente associados os médicos praticantes de outras formas de arte. O retrato que apresento é da autoria do meu amigo e companheiro da direção da SOPEAM, Júlio Pego.

    Celebrarei a nova edição de Deuses e Demónios da Medicina lembrando os dois maiores anatomistas da História Médica: André Vesálio, a quem Namora dedicou um capítulo do seu livro,

e outro a quem prestou menor atenção: Leonardo da Vinci.

      Da Vinci nasceu em 1452. Estava-se em plena Renascença. Tratou-se, como é sabido, de um período de avanços extraordinários no saber humano. As Artes e as Ciências progrediram mais ou menos a par, com as Artes quase sempre à frente. Enquanto a Pintura descobria a perspetiva, Nicolau Copérnico formulava a teoria heliocêntrica do Sistema solar e a Medicina ganhava os seus primeiros fundamentos científicos.

      O desenvolvimento da Medicina começou pela Anatomia, que precedeu os avanços da Fisiologia. Sabe-se que Mondino de Liuzzi, dissecou dois cadáveres de mulher na cidade de Bolonha e, em 1316, redigiu um pequeno tratado de anatomia. Mondino foi o precursor da moderna anatomia humana, antes mesmo de se desenvolver o processo do Renascimento. Nesta gravura é clara a relação de trabalho da época. Um cirurgião auxiliar praticava a dissecação, enquanto o mestre falava do alto da cátedra.

   Outros anatomistas, como Guido da Vigevano dissecaram cadáveres de enforcados. Berengário de Carpi (1460-1530)  e Giambattista Hanani (1515-1579) praticaram disseções sem a intervenção de um cirurgião auxiliar.

      Leonardo da Vinci não foi o primeiro pintor renascentista a interessar-se por conhecimentos anatómicos. Consta que, vinte anos mais cedo, o florentino Antonio del Poillaiuolo dissecou alguns cadáveres.


      Da Vinci aprendeu no estúdio do escultor e pintor florentino Andrea del Verrocchio, cuja obra mais conhecida é a estátua equestre do condottieri Bartolomeu Colleoni. Leonardo da Vinci realizou provavelmente a sua primeira dissecção humana em 1487. Nos trabalhos produzidos anteriormente, reconhece-se, por vezes, a anatomia animal adaptada às formas humanas. O artista sabia pouco latim, o que o limitava no aspeto cultural. Os primeiros estudos de Leonardo foram influenciados pelas ideias correntes no seu tempo. Terá dissecado cerca de 30 cadáveres humanos.


 O artista que pintou a Gioconda 

foi quem primeiro desenhou um esquema

realista da anatomia do corpo feminino.

       O  inventor  de  armas  de  fogo  de muitos canos que fazem lembrar os lançadores de foguetes GRAD ou Katiucha que os russos fabricam desde a II  guerra mundial
fez também correr a imaginação atrás do sonho de voar.
                                            
      Sou colecionador de armas e esta pistola é minha. Julgo que nunca teve condições para disparar. No entanto, a semelhança com o engenho militar que se vê no diapositivo anterior é notória.


       O pintor que retratou Ginevra d` Benci 

foi igualmente o primeiro anatomista que desenhou fetos humanos e os imaginou dentro dos úteros. 


    Já antes do Renascimento pintores e escultores valorizavam, acima de tudo, a representação da figura humana. É nessa perspetiva que se deve situar o interesse inicial de Leonardo da Vinci pelos estudos anatómicos. A obra de Leonardo, contudo foi muito para além da anatomia chamada artística, a anatomia superficial que estudava os músculos e os tendões cujos relevos se notam sob a pele e se modificam com os esforços e as posições. Os artistas procuravam também entender as transformações impostas pela idade e por algumas doenças. Ocupavam-se ainda da fisionomia, que tratava das expressões corporais induzidas pelas emoções.

      Arrastado por uma curiosidade insaciável, da Vinci mergulhou mais fundo na aprendizagem. O que começou por uma necessidade prática de conhecer o corpo humano para melhor o desenhar ou esculpir, depressa foi desviado para o esforço de compreender o funcionamento do nosso organismo.

      Mais fundo, cada vez mais fundo.

  O pintor pretendia compreender o funcionamento da máquina humana. Escrevia em italiano e em espelho, da direita para a esquerda. Os textos eram pobres, face à exatidão das imagens.

      Leonardo da Vinci mudou-se de Florença para Milão em 1481 ou 1482. Tinha quase trinta anos. Milão possuía um dos melhores centros médicos de Itália, o Ospedale Maggiore. A dissecção humana era permitida desde 1480 numa das suas secções, o Ospedale del Brolo. 

   Ocasionalmente, pintores como Leonardo associaram-se a médicos para entenderem melhor o que viam e desenhavam. Entre 1510 e 1511, da Vinci estabeleceu amizade com o médico Marcantonio della Torre, um jovem professor de Anatomia da Universidade de Pádua. Pádua dista 32 quilómetros de Milão.

      Da Vinci e della Torre produziram em conjunto um trabalho sobre anatomia, para o qual Leonardo contribuiu com duzentos desenhos. Era a maturidade do anatomista. Alegadamente influenciado por Marcantonio, em vez de interpretar o que observava à luz dos fracos conhecimentos de que dispunha, Leonardo passou a retratar com precisão os pormenores dos corpos humanos que dissecava. A parceria teve um fim precoce. Marcantonio della Torre foi ceifado pela peste em 1511, com cerca de 30 anos.

     Os grandes artistas eram sustentados por mecenas. Durante a sua segunda estadia em Milão, Da Vinci foi protegido pelo governador francês Charles d`Ambroise. D´Ambroise faleceu em 1513. No final desse ano, Leonardo aceitou a proteção do papa Leão X, e mudou-se para Roma com os seus discípulos. Realizou algumas dissecções humanas do Ospedale di Santo Spirito.

      Leonardo não se deu bem na corte pontifícia. Tinha ultrapassado os 60 anos. Por essa altura, Miguel Ângelo e Rafael eram mais solicitados do que ele para a feitura de obras de arte. Ocupou-se da drenagem dos pântanos de Pontino, a sul de Roma. Esta é uma vista cartográfica de Pontino e da costa norte de Terracina. Da Vinci foi também um excelente cartógrafo.  

     Leonardo efetuou as suas últimas dissecções em cadáveres humanos em 1514, o ano em que Vesálio nasceu. As condições em que o fez não acrescentaram o seu prestígio. Dedicava-se a experiências estranhas e foi acusado de práticas sacrílegas. Terá brincado com os cadáveres, insuflando-lhes ar nos intestinos. O papa Leão X proibiu a sua entrada no hospital do Espírito Santo. Terminava a carreira anatómica de Leonardo da Vinci.

      Estava-se em 1514. André Vesálio nasceu no último dia desse ano. Leão X morreu em março de 1516 e Leonardo aceitou o convite de Francisco I para a corte francesa. Trabalhou num projeto de canalização a sul do rio Loire e na planta de um palácio. Terá deixado de pintar, embora ainda produzisse alguns desenhos. Segundo António de Beatis, secretário do cardeal Luís de Aragão, seria um homem já envelhecido, com uma hemiparésia direita de predomínio braquial. Não foi referida disfasia. Leonardo tinha a ambição de publicar um tratado de anatomia, «em benefício da arte» e não da Medicina. Diz ter composto cento e vinte capítulos. Terá feito mais de 750 desenhos com anotações.



     Passemos agora para André Vesálio. Vesálio é o nome aportuguesado de Andries van Wesel, mais conhecido no mundo científico como Andreas Vesalius. Nasceu em Bruxelas a 31 de dezembro de 1514 e morreu na ilha de Zakinthos na Grécia, a 15 de outubro de 1564, quando regressava duma viagem à Terra Santa. É-lhe atribuída a fundação da Anatomia moderna. O seu pai, André também, era boticário do imperador Carlos V.

     Vesálio foi outro homem do Renascimento. Fez os primeiros estudos em Bruxelas. Em 1530 matriculou-se na Universidade de Lovaina (Leuven, na Bélgica) e em 1533 mudou-se para a Universidade de Paris, onde estudou com Jacobus Sylvius (Jacques Dubois em francês), um fiel de Galeno que ficou conhecido por atribuir nomes aos músculos, que até então eram designados por números, e que deixou o seu nome ligado ao aqueduto de Sylvius e à fenda sílvica, apesar de ambos terem sido já descritos anteriormente. 

      A guerra entre a França e o Sacro Império Romano obrigou Vesálio a regressar a Lovaina, onde, em 1537, aos 23 anos, recebeu o grau de bacharel em Medicina. No mesmo ano, viajou para Pádua, um dos centros universitários mais conhecidos da Europa. 

     A sua viagem foi seguramente negociada. Após um exame de dois dias, foi-lhe atribuído o grau de Doutor em Medicina. No dia seguinte, foi nomeado professor de Cirurgia e Anatomia.

      Vesálio revelou-se então como anatomista. Ao contrário do que era habitual, executava ele próprio as dissecações. Fez também as primeiras ilustrações, destinadas a facilitar o estudo aos seus alunos.

      O número de cadáveres disponíveis para dissecção era limitado. O prestígio do jovem professor universitário levou Marcantonio Contarini, juiz do tribunal de Pádua, a reservar-lhe os corpos dos criminosos condenados à pena capital, chegando a atrasar as execuções em benefício do anatomista. Não conheço outro juiz que tenha contribuído tanto para o progresso da Medicina.

      Dispondo de corpos humanos para estudar, Vesálio constatou cedo que Galeno descrevera a anatomia de porcos e de macacos e que os seus ensinamentos contradiziam com frequência o que era possível observar no corpo humano. Durante mais de mil anos, contestar Galeno constituíra um sacrilégio para os médicos. Vesálio fê-lo bem alto, primeiro em Pádua e depois em Bolonha.


      Aos poucos, André Vesálio foi publicando os seus trabalhos. Comparou as conceções terapêuticas de Galeno e do árabe Rhazes, expôs as próprias opiniões sobre a sangria, e dissertou sobre alguns aspetos de terapêutica médica. Em 1538, apresentou em Veneza as Tabulae anatomicae. Tratava-se de seis grandes desenhos anatómicos desenhados por ele próprio, com base nas suas dissecções. Destinavam-se a facilitar o estudo aos seus alunos e representavam as veias cava e porta, as artérias e o sistema nervoso. 

      O anatomista desenhava relativamente mal e dava conta da importância que as imagens tinham para a compreensão dos textos. Procurou e obteve a colaboração de artistas de qualidade. Terá ido buscá-los à oficina de Ticiano, em Veneza. As ilustrações não foram assinadas. Diz-se que as gravuras anatómicas da Fabrica foram desenhadas por Jan Stephen van Calcar, mas não existe consenso quanto a isso. 


    Por volta de 1538, Vesálio deu início à elaboração da obra mais importante da sua vida: De humani corporis fabrica. O título pode ser traduzido, de forma aproximada como «A estrutura do corpo humano».  

      Em 1543, imediatamente antes da publicação da Fabrica, Vesálio fez imprimir o Epitome, provavelmente uma das suas obras menos conhecidas. Tratava-se de um resumo da Fabrica, destinado aos seus alunos e preparado segundo uma conceção revolucionária de ensino.  A segunda parte do livro, escrito em latim, era composta por onze gravuras anatómicas com índices. O leitor era convidado a recortar as duas últimas e a colá-las nas anteriores, emprestando aos desenhos uma dinâmica até então desconhecida nas universidades. 


    A “Fabrica” foi impressa em Basileia, na tipografia de Joannes Oporinus, em 1543. Foi publicada num único volume e consta de sete «livros» ou capítulos que ilustram os diversos aspetos da anatomia humana. É escrita em latim e profusamente ilustrada com magníficas xilogravuras. São apresentadas 22 ilustrações grandes e 187 pequenas. Esta publicação marca, segundo alguns historiadores, o início da Medicina moderna.

    O primeiro capítulo trata da descrição dos ossos, enquanto o segundo ilustra os ligamentos e os músculos que asseguram os movimentos voluntários. O autor descreve ainda os processos de dissecção a que recorreu.

    Esta gravura é de Leonardo. Teria de ter semelhanças, pois os modelos eram quase idênticos. Foi, contudo, desenhada quatro décadas mais cedo.


      Estes dois «livros» apontam para vários erros de Galeno e constituem o que de melhor Vesálio conseguiu em matéria de exatidão. As gravuras são duma beleza difícil de ultrapassar. Serão também as ilustrações anatómicas mais famosas de todos os tempos.


     O terceiro «livro» trata do sistema circulatório. Nesta matéria, Vesálio não foi capaz de se libertar da influência de Galeno. A sua descrição dos ramos do arco aórtico parece inspirada na anatomia dos macacos. No entanto, há aqui avanços científicos: André Vesálio descreveu a veia mesentérica inferior e as veias hemorroidárias.

      O «livro» IV trata do sistema nervoso. Vesálio clarificou o significado da palavra «nervo» como estrutura capaz de conduzir sensações e movimentos, diferenciando-o de ligamento e de tendão. Aceitou, ainda assim, que a ação dos nervos residia na distribuição do «espírito animal» a partir do cérebro, como sugeria Galeno. As noções transmitidas pelo sábio greco-romano, que dividia os nervos cranianos em sete pares, estavam presentes no pensamento de todos os médicos da época e Vesálio não refutou este conceito, apesar de ter descrito parte do nervo troclear. Pôde, entretanto, constatar que o nervo óptico não era oco, como se supunha. Sem atingir o brilhantismo que demonstrou noutros capítulos, o anatomista fez algum avanço na descrição dos nervos espinhais.

      No «livro» V da Fabrica, André Vesálio descreve as vísceras abdominais, aproximando os órgãos da nutrição dos reprodutores. Aceitou a ideia de Galeno, segundo a qual o sangue era produzido no fígado, mas rejeitou a noção de que esta víscera era composta de sangue solidificado. Negou também que a veia cava se originasse no fígado e que este órgão se dividisse em múltiplos lobos, como afirmara Galeno, assentando em observações de animais. Rejeitou ainda a existência duma abertura direta das vias biliares para o estômago. Ao tratar dos órgãos da reprodução, André Vesálio refutou a ideia antiga do útero segmentado, proveniente de dissecções em animais. Curiosamente, a sua representação da vagina humana assemelha-se antes a um pénis. Estariam em causa ideias correntes sobre a suposta simetria dos géneros. Vesálio considerava que o útero e a vagina eram um só órgão e apelidou a vagina de «colo». Os ovários eram também chamados «testículos da mulher».

      Alguns anatomistas interessavam-se mais por determinados aspetos do corpo humano.  Por volta de 1510, Leonardo desenhou fetos humanos. Seria extraordinariamente difícil conseguir cadáveres de mulheres grávidas. O mais provável é que tenha dissecado embriões resultantes de abortos, projetando os seus achados para um período mais avançado da gestão.

      Leonardo da Vinci atreveu-se a desenhar uma cópula humana em corte aproximadamente sagital. Trata-se de uma compilação de ideias e de imagens, uma espécie de síntese do que Leonardo leu e observou. Será dos trabalhos de Leonardo da Vinci que contêm mais incorreções, mas não deixa de suscitar assombro. O útero é representado ligado à medula espinhal. Da Vinci inventou um canal que liga diretamente o coração aos testículos e outro que estabelece uma conexão entre o útero e as mamas. Curiosamente este trabalho, um dos mais imperfeitos do anatomista, foi dos primeiros a ser gravado em madeira e impresso.

                                 

      O «livro» VI da Fabrica trata dos órgãos torácicos. Vesálio achou a substância do coração parecida com a dos músculos, sem lhe atribuir essa qualidade por não dispor de movimentos voluntários. Considerou-o formado por duas câmaras ou ventrículos. A aurícula direita seria uma continuação das veias cavas e a esquerda faria parte da veia pulmonar. Vesálio não poderia encontrar no septo interventricular os inexistentes pequenos orifícios através dos quais, de acordo com Galeno, o sangue passaria do ventrículo direito para o esquerdo, mas não descortinou explicação melhor para a circulação sanguínea. O coração era geralmente considerado o local onde se situava a alma. Não a achando, o anatomista adotou uma atitude prudente e ambígua que lhe permitiu evitar a hostilidade do clero.

      
      Os últimos estudos anatómicos de Leonardo da Vinci foram dedicados ao coração. Leonardo desenhou as artérias coronárias e identificou as aurículas. Descreveu os movimentos de sístole e de diástole e compreendeu, antes de ninguém, o mecanismo de abertura e encerramento das válvulas do coração.

     O sétimo e último «livro» da Fabrica trata da anatomia do cérebro e expõe as fases da sua dissecção. Aborda ainda os órgãos dos sentidos.


      André Vesálio negou aos ventrículos cerebrais outra função que não fosse a drenagem de líquido. Recusou também a ideia de que a mente, ou espírito, pudesse ser dividida em faculdades separadas. Rematou o seu trabalho sobre o cérebro aconselhando os métodos a utilizar na sua dissecção.

     Reproduzo aqui uma ilustração de da Vinci da base do crânio. O artista desenha com exatidão as artérias meníngeas e mostra uma série de nervos cranianos. O quiasma ótico tinha sido já descrito por Mondino. Leonardo ilustra os olhos, os nervos ópticos, o quiasma, os nervos olfativos, o motor ocular comum, o motor ocular externo e as divisões oftálmica, maxilar superior e mandibular do trigémeo. Note-se que, dos nervos oculomotores, apenas o patético não é representado.

      Leonardo teve uma ideia simples para estudar os ventrículos: encheu-os com cera quente. Depois de arrefecida, removia o cérebro envolvente, obtendo um molde sólido do sistema ventricular. Veem-se aqui os ventrículos cerebrais, também observados de perfil, e a base do cérebro, com as meninges envolventes. Tudo isso era novidade na ciência médica.

 


      A Fabrica termina com um subcapítulo sobre a vivissecção.

     Nenhuma obra anatómica voltaria a obter tamanho êxito, nem modificaria tão profundamente os conceitos anteriores. A Fabrica representa, para alguns historiadores, o início da Medicina moderna. Quando a fez publicar, André Vesálio tinha 29 anos. Durante o resto da sua vida, o grande anatomista pouco mais produziu. 

      Vesálio deu conta precocemente dos erros que enfermavam a obra de Galeno. Claudio Galeno foi um grande médico e um grande cirurgião. Os seus seguidores, em vez de se inspirarem na sua capacidade de recolher informações por observação direta, fizeram dos seus ensinamentos «bíblia». As suas obras, traduzidas em hebraico e árabe e retraduzidas para latim, foram praticamente incontestadas durante os treze séculos que decorreram entre a sua morte e o nascimento de Vesálio. Para que se desse a evolução nos conhecimentos médicos, era necessário romper com o passado. Tornava-se indispensável criticar Galeno. Era tempo de substituir os dados (tantas vezes falsos), recolhidos das dissecações de animais diversos, pelo estudo direto da anatomia humana. André Vesálio descreveu estruturas antes desconhecidas e corrigiu erros assumidos como verdades havia séculos. Era o espírito científico a desabrochar. Enganou-se algumas vezes, como seria natural. As suas imperfeições seriam progressivamente corrigidas pelos anatomistas que se lhe seguiram.

      O sucesso extraordinário da obra de Vesálio teve uma consequência nefasta: O anatomista, tornado famoso, foi contratado como médico do Imperador Carlos V e da sua família e abandonou a investigação. Tinha 32 anos.

     Foi cirurgião militar nas guerras do imperador. Trabalhou como médico durante a batalha naval de Lepanto e tratou Miguel Cervantes, ferido no combate contra os turcos. O seu treino de minúcia nos trabalhos anatómicos adaptava-se mal à necessidade de rapidez das intervenções executadas antes da descoberta da anestesia. Ainda assim, Vesálio introduziu na literatura médica a drenagem cirúrgica dos empiemas, ganhando fama também como cirurgião.

     O maior contributo de André Vesálio para o desenvolvimento da Medicina reside provavelmente na generalização da ideia de que os cirurgiões deviam ter um conhecimento aprofundado da anatomia humana, o que só poderia ser conseguido se praticarem dissecções em cadáveres.

 

    Morto Carlos V, Vesálio foi, de certo modo despromovido por seu filho e sucessor, Filipe II de Espanha (e primeiro de Portugal). Foi encarregado de tratar os holandeses da corte. Não se sabe muito acerca deste período de vida de André Vesálio e sobre as circunstâncias que precederam a sua viagem de à Terra Santa. Na falta de informações, sobram as conjeturas. Poderá ter sido acusado de heresia pela Inquisição espanhola, ao tempo muito ativa. Há quem diga que praticou (inadvertidamente ou não) uma vivissecção num humano (tinha já sido acusado anteriormente de crime semelhante). Outros sugerem que a peregrinação a Jerusalém constituiu uma maneira diplomática de o fazer sair da corte espanhola.

   Tão pouco sabermos se pretendia regressar. Certo é que partiu em 1564. Passou por Itália, onde terá sido convidado para regressar ao ensino na Universidade de Pádua. Embarcou em março desse ano para a Palestina, com escala em Chipre. Em data imprecisa, empreendeu a viagem de regresso. 

    O navio em que seguia enfrentou uma tempestade violenta. Vesálio chegou em outubro, doente e debilitado, à ilha de Zakinthos ( também chamada Zante) no mar Jónico, onde acabaria por morrer. Não é conhecido o local onde foi enterrado. André Vesálio tinha 50 anos. Ao menos, morreu num lugar bonito.


 

     O grande mérito de André Vesálio foi ter libertado o ensino da anatomia dos escritos de Galeno que haviam dominado a Medicina durante bem mais de um milénio. O seu trabalho verdadeiramente científico interrompeu-se 18 anos antes da sua morte. Em Pádua, Vesálio teve seguidores de mérito: Realdo Colombo (com quem Miguel Ângelo projetou elaborar um atlas de anatomia), Gabriel Fallopio, Fabricio d`Acquapendente e Bartolomeo Eustáquio. Deixo aqui uma gravura que representa Fallopio. Aos progressos da Anatomia seguiram-se, lenta e progressivamente, os da Fisiologia. Aos poucos, foi-se entendendo o funcionamento da Fabrica humana.


       Como vimos, a obra anatómica de André Vesálio teve um impacto decisivo na História da Medicina.  No entanto, o trabalho revolucionário de Leonardo da Vinci, produzido   três   décadas   antes  do  nascimento   de  Vesálio  pouco  ou  nada acrescentou à Ciência Médica. Vejamos por quê.

     Da Vinci morreu em 1519. Deixou os desenhos ao seu discípulo e herdeiro Francesco Melzi. Após a morte de Melzi, ocorrida por volta de 1570, a maior parte da coleção foi adquirida pelo escultor Pompeo Leoni, que levou alguns volumes de desenhos para Madrid. 

     Morto Leoni, em 1609, um desses volumes foi comprado por Thomas Howard, conde de Arundel, e foi ter à Biblioteca Real do Castelo de Windsor, que conserva a maior coleção de desenhos de Leonardo da Vinci existente no mundo. O que chegou até nós apenas foi divulgado no começo do sec. XX.

    Infelizmente, grande parte do seu trabalho científico perdeu-se. Outra parte seria publicada apenas século e meio após a sua morte e ainda assim integrada no Trattato della Pittura. Por ironia do destino, o primeiro grande anatomista pouco ou em nada influenciou o saber médico.

     O que é é. A História não se muda. A grandeza do espírito de Leonardo da Vinci é reconhecida há mais de cinco séculos, mesmo amputada de parte considerável da sua obra.  No entanto, o valor dos trabalhos anatómicos é tão elevado que bastaria para lhe garantir um, lugar imorredouro na História da Humanidade, mesmo que Leonardo nada mais tivesse produzido em toda a vida.