Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

segunda-feira, 24 de abril de 2017



OS PRIMEIROS HOSPITAIS 

DE SETÚBAL




Hospital significava originalmente casa de hóspedes. De modo geral, ao longo da Idade Média, eram unidades de dimensões reduzidas que albergavam pobres, peregrinos e doentes e se situavam muitas vezes na vizinhança dos templos. Alguns eram geridos pela Igreja. Outros pertenciam a irmandades. Uns tantos resultavam da iniciativa de pessoas singulares. Eram sustentados pelos rendimentos de doações e heranças de fiéis que esperavam ser ressarcidos por Deus, no outro mundo.
Existiram, em Setúbal, diversas confrarias ou irmandades. As confrarias do Corpo Santo, de Santa Maria da Anunciada e do Espírito Santo possuíam estabelecimentos assistenciais que alojavam pobres.  
    Tanto o Hospital da Anunciada como o do Espírito Santo datam de 1372. Sabe-se pouco sobre o Hospital da Anunciada, que terá exercido importantes funções assistenciais. Por se situar fora de muralhas, escapou à integração na Misericórdia de Setúbal, levada a cabo em 1501.
O Hospital do Espírito Santo localizou-se inicialmente na Rua Direita do Troino e foi transferido, em 1494, ou antes, para a Praça do Pelourinho (julgo que seria a Praça da Ribeira). Na visitação pastoral de 1510 foi descrito como “uma casa sobradada, com quatro janelas de assento muito grandes e paredes muito boas de pedra e cal; a casa é toda forrada de castanho e tem duas portas com suas grades de ferro sobre o tavoleiro de entrada”. Dispunha de dez camas com roupa.
O Corpo Santo era uma associação de mareantes e pescadores. Possuía, pelo menos desde 1415, um hospital que tinha por missão recolher marinheiros e pescadores acidentados no mar. Em 1510, quando da visitação de D. Jorge a Setúbal, o Hospital do Corpo Santo possuía “seis camas e mais uma para doentes; e estava tudo muito limpo e concertado”.

                     Edifício do Antigo Hospital do Corpo Santo

Existiram outros estabelecimentos de assistência, dos quais chegaram até nós informações limitadas. Um dos mais antigos seria a Albergaria da Horta do Rio, que, segundo Manuel Maria Portela se situava extramuros, na estrada de S. João, perto da gafaria.


A gafaria de Nossa Senhora da Saúde data provavelmente do século XIII ou XIV. Resta dela uma pedra de padieira com um escudete e com uma inscrição legível: vanitas, vanitatum et omnia vanitas (vaidade das vaidades, tudo é vaidade). Já não funcionaria em 1504, pois nessa data a gafaria de S. Lázaro de Cacilhas tinha por função alojar todos os leprosos de Almada, Sesimbra, Setúbal, Azeitão e Palmela.

               Arcos do Hospital de João Palmeiro
O hospital de João Palmeiro já existia em 1363. Restam dele três arcos ogivais que confrontam com a Igreja de Nossas Senhora da Graça. O vocábulo “palmeiro” aplicava-se aos peregrinos. É de supor que o fundador fosse romeiro ou que o hospital se destinasse a apoiar os peregrinos. Diz-se que é a edificação mais antiga de Setúbal. No começo do século XX o espaço foi aproveitado para uma fundição e, mais tarde, para uma oficina de reparação de automóveis.
O hospital de Maria Pipa ou de Maria da Pipa situava-se na Praça do Sapal, próximo da igreja de S. Julião. Foi fundado no século XV, ou antes, por Catarina Martins, azeiteira, e dispunha de duas casas térreas, servindo uma de alojamento para a hospitaleira e a outra, com cinco camas, para os pobres.  Maria Pipa, que teria sido a sua quarta administradora, não fez grande trabalho. Foi exonerada das suas funções em 1472.


A ermida de S. Brás, que poderá ter estado relacionada com a peste de 1482, localizava-se, segundo Rodrigo Marques e Manuel Marques, no sopé da Fortaleza de S. Filipe. Ruiu em 1940. Existe, pelo menos, uma fotografia dela. Era num edifício encostado a essa capela que se fazia a quarentena dos tripulantes dos navios que se dirigiam ao porto de Setúbal quando o “intérprete de saúde” suspeitava que fossem portadores de doenças contagiosas.
Existiam ainda várias capelas que a carência de informação não permite ligar a tarefas assistenciais.
Será interessante descrever o ambiente de um hospital no final da Idade Média. Socorremo-nos para isso da descrição feita por Rodrigues Marques e Manuel Marques.

“A sala da enfermaria tinha as camas alinhadas ao longo das paredes e separadas por cortinados umas das outras. Era comum deitar dois doentes na mesma cama.
O doente era levado para o hospital numa liteira ou catre. Depois de lavado e de mudar de roupa e antes de ser instalado na enfermaria, era recebido pelo capelão.
O dia começava com a missa, celebrada no altar colocado na parede de fundo da sala. Corriam-se as cortinas, para que os doentes pudessem ver o celebrante.
Seguia-se a primeira refeição, servida em tigelas de pau. As colheres eram também de pau e os copos de barro. Não havia preocupação com dietas, pois interessava que os doentes se alimentassem bem.
Os tratamentos consistiam na aplicação de drogas de origem vegetal, preparadas na própria botica, ou adquiridas fora. Incluíam unguentos, cera, essência de terebintina e tisanas. Praticavam-se banhos e fumigações, cautérios, sangrias e clisteres e aplicavam-se “bichas” (sanguessugas).
As longas horas em que nada sucedia eram preenchidas por salmos cantados pelos frades ou freiras.
Os médicos, que só muito mais tarde começaram a prestar serviço permanente nos hospitais, iam lá apenas quando eram chamados”.

No final do século XV teve início, em Portugal, um processo de fusão e concentração dos inúmeros hospitais pequenos e dispersos. A Coroa procurava assumir o controlo dos estabelecimentos hospitalares administrados pela Igreja e pelas confrarias. Em 1479, mesmo antes de subir ao trono, D. João II obteve autorização papal para fundir os hospitais de Lisboa. Vinte anos mais tarde, a autorização alargou-se a todos os hospitais do Reino.
Cerca de 1489, foi criada a confraria da Misericórdia de Setúbal. Teria, no ano seguinte, o diploma régio de confirmação.
A 13 de setembro de 1501, o mordomo da irmandade do Espírito Santo recebeu do provedor régio dos estabelecimentos assistenciais do almoxarifado de Setúbal ordem para anexar todos os outros hospitais existentes na vila. A ordem foi cumprida, com duas exceções: o hospital de João Palmeiro continuou a ser governado pela confraria do Corpo Santo, pelo menos até 1511, e a confraria da Anunciada, situada fora de muros, prosseguiu as suas funções assistenciais até depois de 1567.  

BIBLIOGRAFIA
Drumond Braga, Paulo. Setúbal Medieval (séculos XIII a XV). Câmara Municipal de Setúbal, 1998.
Marques, Rodrigues e Marques, Manuel. Subsídios para a História dos Hospitais de Setúbal, 1984.

Quintas, Maria da Conceição (coordenadora). Monografia de S. Julião. Junta de Freguesia de S. Julião, Setúbal, 1993.

sábado, 22 de abril de 2017


HIPÓCRATES




Hipócrates seria um nome corrente, na Grécia de Péricles. Diz Fernando Namora: “conhecem-se sete médicos de nome Hipócrates; a tradição tê-los-á amalgamado num personagem único”. Há quem sugira que sucedeu o mesmo com Jesus Cristo.
Sabe-se alguma coisa sobre a sua vida. Nasceu por volta de 460 a. C., em Cós. Cós é uma ilha grega situada muito próximo da costa da Turquia. Era cerca de dez anos mais novo do que Sócrates e foi contemporâneo de Demócrito. Julga-se que viajou pela Grécia e pelo Próximo Oriente. É representado de chapéu e bordão, símbolos do caminheiro.


Hipócrates era um asclepíade, isto é, um descendente de uma família dedicada aos cuidados de saúde. Sua mãe teria sido uma parteira de sucesso.
O mestre grego exerceu medicina na Trácia, na Tessália e na ilha de Tasso. Era já um médico conhecido em 430 a.C., quando se realizou a 86ª Olimpíada. Faleceu em Larissa, numa idade avançada.
É considerado uma das figuras mais importantes da História da Medicina. Segundo Catiglione, o seu mérito assenta em ter demonstrado que a doença era um processo natural. Os sintomas traduziam reações do corpo à doença e o papel principal do médico consistia em ajudar as forças naturais do organismo no processo de recuperação.
      Hipócrates separou a Medicina da Magia. As divindades já não eram convocadas para tratar os enfermos. Nascia a profissão de médico, o qual devia observar, refletir e aprender. No seu modo de ver, muitas doenças eram influenciadas por fatores climáticos, dietéticos e ambientais.
      Embora o juramento hipocrático, tal como o conhecemos hoje, ponha em realce a figura do mestre, em outros escritos, Hipócrates menorizava a aprendizagem pelo ensino, pela transmissão da experiência de outros, o que reforça a opinião dos historiadores que consideram ter sido o “Juramento de Hipócrates” elaborado numa data posterior. Hipócrates escreveu nos seus aforismos que a vida dum médico era demasiado curta para ele aprender tudo de que necessitava para o exercício da sua profissão.
A reputação de Hipócrates deve-se às suas obras, que constituem o Corpus Hipocraticum. O tempo terá reunido, nesta coleção de 70 escritos, contributos do próprio Hipócrates e de vários outros médicos oriundos de épocas e de escolas diferentes. Além do famoso Juramento, dos Aforismos e da Doença Sagrada, os textos falam das doenças agudas, da cirurgia, das fraturas, dos instrumentos de redução, dos ferimentos da cabeça, das articulações, das úlceras, das fístulas, das hemorroidas, dos ares, águas e lugares, das epidemias e dos prognósticos.
Hipócrates apreciava a temperatura do corpo com a mão. Praticava a auscultação, encostando o ouvido ao peito do doente. Descreveu o ruído do roçar de coiro novo nas pleurisias. As obras que lhe são atribuídas englobam um conjunto de descrições clínicas que permitem identificar doenças como a malária, a papeira e a tuberculose. Aconselhava os médicos a serem comedidos nas explicações e nas expectativas a transmitir aios doentes.
Hipócrates desenvolveu o conceito de “crise”. Constituiria um ponto-chave da evolução da doença e determinaria a recuperação ou a morte.
O médico grego não poderia enxergar muito além da sua era. Fundamentou a sua compreensão do organismo humano na famosa teoria dos humores (sangue, fleugma ou pituíta, bílis amarela e bílis negra). O equilíbrio dos humores (eucrasia) determinaria o estado de saúde, enquanto o predomínio de um ou de outro, a discrasia, seria causa de doença e de dor. Esta teoria, retomada séculos mais tarde por Galeno, dominaria o ensino médico até ao século XVIII.


Em questões terapêuticas, o Mestre de Cós não inovou. Recorreu ao que existia na época para tratar os doentes: sangrias, ventosas, cataplasmas e pensos.
Para terminar, registo aqui algumas passagens do famoso Juramento de Hipócrates.
Aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém. A ninguém darei por comprazer, nem remédio mortal nem um conselho que induza a perda. Do mesmo modo não darei a nenhuma mulher uma substância abortiva.
Conservarei imaculada minha vida e minha arte.
Em toda a casa, aí entrarei para o bem dos doentes, mantendo-me longe de todo o dano voluntário e de toda a sedução sobretudo longe dos prazeres do amor, com as mulheres ou com os homens livres ou escravizados.
Aquilo que no exercício ou fora do exercício da profissão e no convívio da sociedade, eu tiver visto ou ouvido, que não seja preciso divulgar, eu conservarei inteiramente secreto.


Bibliografia
Alzina, A. Hipócrates: filosofia e mistérios em Medicina grega. Nova Acrópole (Internet).
Barradas, Joaquim. A arte de sangrar de cirurgiões e barbeiros. Livros Horizonte, Lisboa, 1999.
Namora, F. Deuses e demónios da Medicina. Livraria Bertrand, Amadora, 1979.
Wikipedia.