Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

TROCAS


Já lá vão anos. Aconteceu no Serviço 10 do Hospital de S. José.
De manhã, ao entrar para o trabalho, deparei com uma gritaria invulgar.
Numa unidade hospitalar que recebia uma grande parte dos acidentados graves de Lisboa e do Sul do País, assistia-se a muita desgraça. Dessa vez, porém, os gritos não eram de dor, mas de raiva.
Aproximei-me. O Enfermeiro-chefe António Trindade, um excelente profissional, parecia inibido, bem contra o seu costume. Mantinha os ombros descaídos e o rosto baixo, como se estivesse à espera que o vendaval abrandasse, sem nada dizer que pudesse piorar ainda mais a situação.
Quando percebi o que se passava, enfiei-me na primeira porta que encontrei, para que não me vissem rir. Ficava-me mal e corria algum risco.
Tinham trocado os corpos de dois doentes falecidos. Como todos os acidentados que morriam eram sujeitos a autópsia, a culpa tanto podia ser nossa como do Instituto de Medicina Legal, mas o barulho era ali.
Uma das famílias recebera o seu defunto e apressara-se a enterrá-lo, sem que ninguém se lembrasse de o espreitar. Horas depois, e a dezenas de quilómetros de distância, a outra família, ao prestar as honras fúnebres, quis olhar pela derradeira vez o rosto do morto querido. Abriram o caixão. Não conheciam aquela cara de lado nenhum.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

A MORTE DE CAMÕES


Camões morreu em 1580. Terá sido vitimado por um dos três grandes surtos de peste que assolaram a capital do Reino e do Império, grande centro urbano europeu, na segunda metade do século XVI.
Em 1551, Lisboa contaria 100.000 habitantes. O crescimento populacional era periodicamente interrompido pelas epidemias de peste, que ceifavam milhares de vidas. O lugar que ocupava nas linhas do comércio atlântico permitia que o mal entrasse no seu porto "envolto em mercadorias". As grandes pestes quinhentistas chegaram por via marítima, espalhando-se depois a todo o País.
A peste era inicialmente transmitida por picadas de pulgas de ratos. O contágio de pessoa para pessoa era muito rápido A peste bubónica deve o seu nome aos "bubões", tumores inflamatórios duros e dolorosos dos gânglios linfáticos. Predominavam nas axilas e nas virilhas. Acompanhavam-se de febre, dores de cabeça e prostração. Nas formas pneumónicas da peste sobrevinham golfadas de sangue.
Em Portugal, a sétima década do século XVI começou de forma relativamente tranquila. A partir de 1578, o País agitou-se. No verão, foi levada a cabo a mobilização e a partida da armada para o Norte de África. Seguiu-se o desastre militar de Alcácer Quibir e a morte ou o cativeiro de muitos dos cerca de 17.000 homens que constituíam o exército português. Lembre-se que o velho cardeal D. Henrique, tio-avô de D. Sebastião, desaconselhou a aventura marroquina e recusou ocupar-se da regência do Reino durante a ausência do monarca.
Como um mal nunca vem só, a chuva faltou e ocorreu um ano de más colheitas. Para enegrecer ainda mais a situação, desencadeou-se em Lisboa, no mês de Setembro, novo surto de peste. Parece ter-se tratado da variante pneumónica, possivelmente associada a um recrudescimento de doenças endémicas, como a gripe e a difteria.
A epidemia agravou-se a partir de meados de Outubro de 1579. A corte abandonou a capital. Em Janeiro de 1580, a Casa da Peste já não comportava mais doentes. Escreveu-se que terão morrido em Lisboa 35.000 ou mesmo 40.000 pessoas. As contas foram feitas com base no estudo dos registos paroquiais. Os números podem ser exagerados. A mortandade desta epidemia parece ter ficado distante da que foi provocada pela "peste grande " de 1569.
Em Junho de 1580, a peste começou a abrandar. No seu estertor, arrebatou o maior dos nossos poetas. Não se conhece a data do seu nascimento, mas Manuel Lopes Fernandes afirma existir no Arquivo da Torre do Tombo o recibo do pagamento, feito a Ana de Sá, da tença devida a seu filho Luís de Camões, vencida de 1 de Janeiro até à data da sua morte: 10 de Junho.
O corpo de Camões terá sido envolvido numa mortalha e lançado, juntamente com outros cadáveres, numa vala comum do cemitério da Igreja de Santa Ana. Por essa altura, as tropas do duque de Alba tinham já entrado em Portugal.




Fontes:
Teresa Rodrigues. Fontes de Mortandade em Lisboa - séculos XVI e XVII. Livros Horizonte, Lisboa, 1990.
Oliveira Marques. História de Portugal. Pallas Editores, 7ª edição, Lisboa, 1972.
Wikipedia.
Ilustrações: Wikipedia.

Também publicado em O BAR DO OSSIAN

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

HOSPITAL REAL DE TODOS OS SANTOS


Os nossos primeiros hospitais tiveram origens diferentes. Uns começaram como asilos de mendicidade, pouco vocacionados para tratar os pobres que adoeciam. Outros resultaram da evolução das antigas albergarias, destinadas a alojar romeiros na época em que as peregrinações religiosas estavam em moda. Alguns nasceram da piedade cristã ou da solidariedade entre oficiais dos mesmos ofícios e pretendiam, desde o começo, socorrer enfermos. Em geral, eram unidades de pequenas dimensões, com orçamentos reduzidos, administração incipiente e serviços clínicos primitivos.
O movimento de concentração da rede hospitalar em edifícios construídos com essa finalidade específica - os espritais solemnes - desenvolveu-se durante os séculos XIX e XV em Itália (Florença, Siena, Roma) e em Espanha (Santiago de Compostela e Toledo). No nosso País, foi impulsionado por D. João II e continuado por D. Manuel, resultando na criação dos hospitais gerais de Lisboa (1492), Coimbra (1508), Évora (1515), Braga (1520) e Goa (1520).
Em Portugal, a reorganização da rede hospitalar integrou-se no processo de centralização do Poder nas mãos do rei, em prejuízo dos privilégios do clero. Foi acompanhada pelo desenvolvimento das Misericórdias, introduzidas no País pelo frade espanhol Miguel de Contreiras. As Misericórdias iriam tomar em mãos a administração da maioria dos hospitais portugueses, ao longo de um período de mais de 400 anos.




D. João II, autorizado pela bula pontifícia de Xisto IV, incorporou na sua obra o património de mais de quarenta pequenos hospitais lisboetas.Como eram muitos os santos protectores, e para não ofender nenhum deu-lhe o nome de todos.
O edifício começou a ser construído em 1492. Seria terminado em 1504, já no reinado de D. Manuel. Era uma construção monumental, destinada a celebrar a caridade e a grandeza do rei. Ocupava grande parte do que é hoje a Praça da Figueira.
O hospital tinha três pisos. Alguns autores contam apenas dois, mas as gravuras disponíveis são elucidativas, pelo menos no que respeita à frontaria.
A fachada estendia-se por cerca de cem metros e encostava-se ao Convento de S. Domingos. Dava para o Rossio. A meio, erguia-se a igreja, de traça manuelina.
No piso superior, existiam três grandes enfermarias (S. Vicente, Santa Clara e S. Cosme). Correspondiam, no plano do edifício, aos três braços da cruz, centrada pelo altar-mor, de forma a permitir aos doentes acompanhar as cerimónias religiosas.
No piso inferior, ficavam a albergaria (ou casa dos pedintes andantes), com cerca de quarenta camas para ambos os sexos, e a casa dos expostos (crianças abandonadas). As crianças eram, depois, entregues aos cuidados de amas externas. Como vemos, as funcionalidades do Hospital de Todos os Santos não se esgotavam no tratamento dos enfermos, abrangendo uma extensa área assistencial.





No mesmo piso estavam instalados vários anexos do hospital, incluindo o refeitório, o forno, a cozinha, a secretaria (casa da fazenda) e a farmácia.
O hospital dispunha de um vasto logradouro, de claustros e de um cemitério privativo. Incluía pomares e uma horta tão extensa que produzia hortaliça suficiente para o consumo do pessoal e dos doentes.
Os funcionários alojavam-se no piso térreo. Eram cerca de meia centena.
Os doentes estavam separados em função do sexo e da patologia. Das três grandes enfermarias, uma era destinada às mulheres e as outras duas aos homens, sendo uma de medicine e outra de cirurgia. Em 1551, somariam 98 leitos.
Além dessas enfermarias, existia a casa das boubas, ou casa apartada, uma divisão isolada para os enfermos com doenças sexualmente transmissíveis, com relevo para a sífilis que, nessa altura, era considerada um castigo para os pecadores.
Havia quartos para nobres e abastados.
Segundo documentos posteriores ao regulamento de 1504, existiu também uma casa de doidos. Poderá ter sido uma das primeiras enfermarias psiquiátricas do País.
Terá chegado a funcionar um serviço de urgência.
A mortalidade rondava os 20% (um quinto dos doentes admitidos). Era possível, por portas falsas, retirar os cadáveres sem que os vizinhos dessem por isso,"para que, com medo da morte, não desanimassem".
O Hospital Real de Todos os Santos chegou a ser um dos maiores hospitais europeus. Foi dotado de uma estrutura organizativa bem definida, com um provedor da confiança do rei, distinto da direcção técnica. Existiam mecanismos de controlo administrativo. Em 1530, a gestão foi entregue aos padres da Congregação de S. João Evangelista. A partir de 1564, o estabelecimento passou para a responsabilidade da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
No tempo do rei Manuel, havia dois físicos e dois cirurgiões, além de um mestre que curava o morbo serpentino (sífilis).
O hospital foi atingido por vários incêndios, tendo sido sempre reconstruído e sucessivamente ampliado. Em meados do século XVII, já existiam doze enfermarias. Por volta de 1750, dispunha de 250 camas.
Não há referência a qualquer sala de operações no regimento original do Hospital Real de Todos os Santos. Nos meados do século XVI, foi ali instituído o ensino da Cirurgia, complementado com dissecações anatómicas em cadáver.
Em 1731, foi nomeado para ensinar Cirurgia Isaac Elliot, nascido em Constantinopla de pai calvinista francês. Cirurgião-mor do Exército, com a patente de coronel de Cavalaria, pouco tempo ensinou. Deu com a mulher "em colóquio" com um frade trino e matou-o. Foi executado em 1733.
O ensino de Anatomia conheceu largos intervalos. Ainda assim, a Cirurgia ensinada no Hospital de Todos os Santos, baseada na prática dos curativos no hospital, conheceu grande reputação no País. O cirurgião português Manuel Constâncio adquiriu certa nomeada, sendo considerado o restaurador dos estudos anatómicos entre nós.
O Hospital Real de Todos os Santos foi destruído pelo terramoto de 1755 e pelo incêndio que se seguiu. Os doentes que sobreviveram foram alojados em tendas, palácios e conventos. Algumas partes do prédio aguentaram-se. O hospital foi parcialmente reconstruído e voltou a funcionar, com limitações. Faltava dinheiro para obras de maior vulto. Em 1761, não dispunha de um único instrumento cirúrgico. Quando eram precisos, pediam-se emprestados.




Em 1759, o Colégio de Santo Antão dos Jesuítas, que educava rapazes nobres, foi confiscado. Com algumas obras, preparou-se para receber doentes. A adaptada instituição hospitalar recebeu o nome de S. José, em homenagem ao rei. No começo de Abril de 1770, os doentes foram transferidos para o antigo colégio O hospital ainda funciona. Trabalhei lá durante duas dezenas de anos.
A História prossegue. A recente intervenção do episcopado português em favor de um maior controle das Misericórdias e os apelos televisivos de alguns sacerdotes que pretendem a devolução dos templos às instituições religiosas parecem inscrever-se num processo secular de luta entre o Poder político e a Igreja. A acção de D. João II e de D. Manuel I iria ter seguimento na actuação do Marquês de Pombal e, mais tarde, na legislação liberal de Mouzinho da Silveira e de Joaquim António de Aguiar. Culminou, vai fazer um século, nas leis da separação das igrejas e do Estado, introduzidas por Afonso Costa. Os imensos bens da Igreja Católica foram incorporados no património nacional. César tomou o que achava que lhe devia pertencer. Os representantes de Deus parecem descontentes com a parte que restou no terreno Portugal.


Fontes:
História da Medicina em Portugal. Maximiano de Lemos. Publicações Dom Quixote /Ordem dos Médicos, Lisboa, 1991.
O Hospital Real de Todos os Santos. Luís Graça, Internet, 2008.
Wikipedia.

Gravuras e fotografia da maquette: internet.
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terça-feira, 14 de setembro de 2010

HISTORINHAS DA MEDICINA



Aconteceu no meu consultório, em Setúbal. A doente, de meia-idade, referia queixas menores, localizadas à coluna lombar. Observei-a. Estava bem. Trazia radiografias simples que não mostravam patologia relevante. Julguei dispensáveis outros exames complementares de diagnóstico, dei-lhe alguns conselhos e mediquei-a.


Antes de se levantar para sair, a senhora premiou-me com um olhar admirador e com um piropo:


- O Senhor Doutor opera tão bem!


O meu ego inchou. A doente prosseguiu:


- Sou tia da Dolores... Na semana que passou, fez cinco anos que ela foi enterrada. Assisti à mudança das ossadas. A tampinha da cabeça estava tão bem feita...


O meu ego desabou.


A Dolores tinha 26 anos quando morreu. Era uma mulher encantadora e permaneceu consciente até perto do fim, a assistir ao próprio descalabro. Os glioblastomas não perdoam. São eles que fazem a má fama dos neurocirurgiões.


Meses antes ou depois, já não me lembro, tinha operado uma bela moça de 18 anos, também de Setúbal, com a mesma doença. Ao dar conta de que ia perder a vida, queixou-se:


- Eu sou boa rapariga... Não merecia uma sorte destas!


Ninguém merece.


Custa muito não ser capaz de salvar a vida de uma criança, mas a morte na adolescência ou no começo da vida adulta, sempre me tocou profundamente. É o tempo de amar e não de morrer.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

OS MÉDICOS DA REPÚBLICA

No começo do século XX, boa parte da pequena e média burguesia das cidades portuguesas abraçou os ideais republicanos. As profissões liberais enquadraram-se, naturalmente, na evolução político-social e obtiveram uma visibilidade considerável na Assembleia Constituinte de 1911. A Medicina foi a profissão mais representada, tendo os seus membros ocupado 23% dos 229 assentos de deputados.
Neste contexto, deixa de surpreender a importância e o prestígio alcançados por um número significativo de clínicos nos primórdios da República. Miguel Bombarda, Augusto de Vasconcelos, Brito Camacho, António José de Almeida e Egas Moniz eram médicos.





Psiquiatra notável, respeitado dentro e fora do País, Miguel Bombarda foi professor da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa e ajudou a reorganizá-la. O seu anticlericalismo radical contrasta com o rigor do seu trabalho científico. Chefe dos insurrectos civis a 4 de Outubro de 1910, seria providencialmente abatido a tiro por um doente, cerca de uma dúzia de horas antes de rebentar a revolução. Ainda estava consciente, quando entrou na sala de operações do Hospital de S. José. Os ferimentos de bala eram demasiado graves e o cirurgião Francisco Gentil não foi capaz de lhe salvar a vida.





Os caminhos da História cruzam-se. A colaborar com Gentil nesse acto cirúrgico, estava Augusto César de Vasconcelos Correia, professor catedrático da Esola Médico-Cirúrgica de Lisboa. Augusto de Vasconcelos foi ministro dos Negócios Estrangeiros do primeiro governo constitucional da República. Quando João Chagas foi afastado por Manuel de Arriaga, Vasconcelos assumiu a presidência do ministério. Em Junho de 1912, regressou aos Negócios Estrangeiros. Depois, enveredou pela diplomacia e foi embaixador de Portugal em Madrid. Mais tarde, viria a ser o nosso delegado na Sociedade das Nações, tendo chegado a ser presidente da sua Assembleia Geral.





Manuel de Brito Camacho nasceu nos arredores de Aljustrel. Era meio-irmão de Inocêncio Camacho Rodrigues, que ocupava o cargo de governador do Banco de Portugal na altura da célebre falsificação de Alves dos Reis. No começo da sua vida clínica, exerceu Medicina no Torrão. Em 1891, iniciou a carreira de médico militar, que iria prolongar até atingir o posto de coronel. Era tio-avô de António Vasconcelos Marques, que viria a ser o neurocirurgião de Salazar.
Descendente de latifundiários e senhor de vasta cultura, Camacho pertencia a um escol de políticos que se julgava destinado a moldar os novos espíritos. Dizia-se que apreciava a boa mesa e que era capaz de trocar um amigo por uma boa piada. Durante muitos anos, o jornal "A Lucta" constituiu a sua principal arma de combate. Nas suas páginas e nas intervenções parlamentares, contribuiu para formar a opinião pública que tornaria desejável o advento da República. Estando profissionalmente ligado ao Exército, ajudou a estabelecer cumplicidades entre republicanos civis e militares.
Nos primeiros anos da República, Brito Camacho foi a face mais visível da direita política. Não tinha adeptos na "rua", onde mandava a gente dos ofícios, ligada a Afonso Costa.
Como ministro do Fomento do Governo Provisório, criou o Instituto Superior Técnico, de importância marcante na estruturação do ensino da Engenharia em Portugal.
Quando Afonso Costa se assenhoreou da estrutura e da logística do Partido Republicano Português (a partir dessa altura mais conhecido por Partido Democrático), Camacho fundou o Partido Unionista. Após uma aliança inicial com o líder democrático, dedicou-se, de forma prolongada, à oposição à hegemonia política de Costa e dos seus amigos.
Por volta de 1918, o Partido Unionista fundiu-se com o Partido Evolucionista de António José de Almeida, para dar origem ao Partido Liberal Republicano.Desencantado com a evolução dos acontecimentos, Brito Camacho afastou-se da actividade política. Acabou por aceitar as funções de Alto Comissário da República em Moçambique.
Camacho não foi apenas um dos políticos e jornalistas mais brilhantes da Primeira República. Publicou ainda uma série de livros em que descreveu de forma vivida a ruralidade do Alentejo que o viu nascer.



António José de Almeida era ainda aluno da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra quando publicou no jornal académico Ultimatum um artigo insultuoso para o rei D. Carlos. Intitulava-se Bragança, o último, e esteve na origem de uma condenação a três meses de prisão, apesar da defesa conduzida por Manuel de Arriaga.
Terminado o curso, Almeida exerceu clínica em Angola durante um ano. Estabeleceu-se depois em São Tomé, por um período de cinco anos. No regresso à Europa, visitou diversos hospitais franceses, antes de abrir consultório na Baixa lisboeta.
António José de Almeida entusiasmou as massas populares com os seus discursos emocionados, como poucos dirigentes republicanos o terão sabido fazer. Em 1912, fundou o Partido Evolucionista. Enquanto ministro do Interior do Governo Provisório, contribuiu para a reforma do Ensino Superior, ao criar as Universidades de Lisboa e do Porto. Foi chefe do governo da chamada União Sagrada, por altura da entrada de Portugal na primeira Grande Guerra. Em 1918, foi eleito Presidente da República.



António Caetano Egas Moniz leccionou Anatomia e Fisiologia em Coimbra. Implicado na rebelião de 28 de Janeiro de 1908, três dias antes do regicídio, foi preso no elevador da Biblioteca, juntamente com Afonso Costa e com o visconde da Ribeira Brava.
Fundou o Partido Republicano Centrista, dissidente do Evolucionista de António José de Almeida. Os seus partidários acabariam por se diluir entre os apoiantes de Sidónio Pais. Durante o consulado sidonista, foi embaixador de Portugal em Madrid e ministro dos Negócios Estrangeiros, tendo contribuído para o começo da normalização das relações entre o Estado Português e o Vaticano.
É, até hoje, o único médico português laureado com o Prémio Nobel. Nos últimos anos, a sua leucotomia pré-frontal tem sido contestada por grupos de activistas inocentes que julgam ser possível comparar a realidade da Psiquiatria antes e depois do advento das modernas drogas antipsicóticas. Muitos médicos, dentro e fora do País, consideram que Moniz deveria ter ganho outro Nobel pela sua descoberta da angiografia cerebral, que viria a dar um incremento notável ao desenvolvimento da Neurocirurgia.
Os grandes espíritos também têm as suas fraquezas. Conta-se que, quando Egas Moniz se encontrava muito doente, já perto do fim da vida, uma sua empregada terá comentado:
- O Senhor Professor está tão mal... Até já recebe as visitas sem pôr o capachinho...
Fontes: História de Portugal, Círculo de Leitores, Lisboa, 1994.
Wikipedia.
Foto: Net.
Também publicado em O BAR DO OSSIAN

REGRESSO AOS BLOGUES

Durante algum tempo, não visitei os meus blogues. A razão é simples: andei ocupado com a escrita de romances. Acabo de entregar para publicação as obras Lubango e República - Luz e Sombra. Estou de regresso!

segunda-feira, 7 de junho de 2010

HISTORINHAS DA MEDICINA

Os médicos são, em regra, bons ouvintes. Não admira. A chave para o diagnóstico de muitas situações patológicas está nas palavras dos doentes.
Nem sempre é assim. Às vezes, os pacientes contam as histórias como as interpretam, valorizando aspectos marginais ou coincidentes com a evolução dos seus males. Parece até que nos querem enganar. Aconteceu assim com uma senhora alentejana que entrou angustiada no meu consultório.
- Senhor Doutor! Há quase um ano, roubaram-me o ouro. Pensei, pensei, e descobri a ladra. Acusei-a em público. Encheu-se de vergonha e fugiu a chorar. Deram com ela dois dias depois, no fundo de um poço. Nunca mais deixei de pensar naquela mulher. Fiquei tão transtornada que até a cara me mudou! Vim cá para tratar dos nervos.
Bem, a cara tinha mudado mesmo. A pele tornara-se mais espessa, enquanto os lábios, a língua e o queixo lhe cresciam. Os dedos das mãos engrossaram e os anéis recuperados deixaram de lhe servir. Teve de passar a usar sapatos de um número maior. Tratava-se de uma acromegália.
Curiosamente, tinha uma irmã gémea. Eram tão parecidas tempos atrás que, quem as não conhecia bem, encontrava dificuldades em distingui-las. Ofereceu-me uma fotografia antiga em que estavam juntas. Eram raparigas bonitas, mas a minha doente mal se reconhecia.
Felizmente, a cirurgia teve êxito e as alterações morfológicas induzidas pela doente regrediram em boa parte. As duas gémeas alentejanas não voltaram a ser iguais mas recuperaram alguma semelhança.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

domingo, 23 de maio de 2010

HISTORINHAS DA MEDICINA


Numa tarde de quinta-feira, eu estava de banco em S. José.

Ao percorrer um dos longos corredores do hospital encontrei-me com o Vítor. Era cirurgião geral e teria dois ou três anos mais do que eu. Dávamo-nos bem.

Dessa vez, saudou-me de modo esfuziante. Era como se tivessem passado anos sem nos vermos, quando tínhamos estado juntos na Urgência da semana anterior.

Deu-me um grande abraço. Mal me deixou respirar, perguntou:

- Trabulo! Estás mesmo bem?

Eu ficara espantado com o ênfase da recepção.

- Estou. E tu?

Trocámos algumas frases e seguimos os nossos caminhos. Encontrei-o de novo, um par de horas mais tarde, no bar. Era outra vez o Vítor de sempre, bem-humorado e tranquilo.

- Desculpa lá, Trabulo, a minha reacção de há pouco. Tinham-me dito que tinhas morrido.

Ri-me. Não era a primeira vez que aquilo acontecia. Alguns anos antes, em Setúbal, tinha corrido largamente o boato da minha morte. Uma doente pouco sensata telefonou mesmo lá para casa e perguntou à minha mulher:

- É verdade que o Senhor Doutor morreu?

Felizmente, eu tinha acabado de sair, cheio de saúde.

Ao entrar no Posto Médico julguei surpreender expressões de assombro em alguns rostos. Era como se estivessem a ver um fantasma, mas eu não podia adivinhá-lo.

Contaram-me a história mais tarde. Sei de velhinhas que choraram por mim. Não consta que raparigas novas tenham vertido alguma lágrima.


Foto: Internet.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

A PESTE EM PORTUGAL NOS SÉCULOS XIV E XV


A primeira epidemia de que tenho notícia no território português ficou registada nas memórias do convento de Seiça:"no anno de 1310 foi a pestilencia grande, e morrerom entom em dous mezes 150 religiosos".

Anos mais tarde, o Chronicon Conimbricense fala da mortandade ligada à doença e à fome:"e neste anno de 1333 morrerom muitas gentes de fame quanta nunca os homes viron morrer por esta razon; è tantos fueron los passados que fueron soterrados en os adros das Egrejas, que non cabian en elles, è os soterraban fora dos adros è deitavanos nas covas quatro à quatro, è seis à seis, assi como os achavam mortos por nas ruas".

A visita da peste a Portugal em 1348 ficou registada por escrito:"morria-se quase em saúde e os que hoje estavam sãos, iam amanhã a caminho da sepultura". O mal não tinha imaginação: os sintomas repetiam-se de forma previsível: febre elevada, hemoptises, delírio, coma e morte. Quando esta tardava alguns dias, desenvolviam-se abcessos nas axilas e virilhas. O contágio era imediato e a piedade sumia-se: Os filhos abandonavam os pais e os cônjuges separavam-se. Morria-se sozinho.

Havia, entre nós, fés destinadas ao martírio: os judeus, acusados de envenenarem poços e fontes, iam sendo periodicamente massacrados.

Em 1384, o rei de Castela cercou Lisboa. O exército invasor foi atacado pela peste. Conta Fernão Lopes:"começarão de morrer de peste allgûus do arrayall da gente de pequena condição. E quando allgûu caualeyro ou escudeyro acertaua de se finar, leuavão-nos os seus a Cyntra ou Alanquer ou a allgûu dos outros logares que por Castela tinhão voz, e ally os abrião e sallgauão e punhão em ataudes do ar, ou os cozião e goardavam os ossos para os depois leuarem pera donde erão". Supõe-se que esta epidemia foi do chamado "tifo dos exércitos".

Em 1414, quando se preparava a armada que deveria conquistar Ceuta, foram contratados navios estrangeiros que trouxeram o mal com eles. A peste vitimou a rainha Dona Filipa de Lencastre. A "ínclita geração" partiu orfã para o Norte de África.

Registaram-se, em Portugal, epidemias mortíferas em 1423, 1432, 1435 e 1437. Algumas delas encontraram os portugueses com as resistências diminuídas pela fome. O rei D. Duarte foi levado pela peste em 1438.

As epidemias assolaram diversas regiões de Portugal nos anos de 1448, 1458, 1464 e 1469. Em 1477, a peste devastou Coimbra e propagou-se a Lisboa. As cidades procuravam defender-se do mal. Os vereadores do Porto, assustados, estabeleceram um plano de defesa. Foi interdita a entrada na cidade a quem não jurasse sobre os santos Evangelhos não vir de Coimbra nem de qualquer outro lugar onde a peste grassasse."E per esta mesma guiza se gardara a barca de Gaya a qual gardaron os moradores de Miragaya". As providências falharam e a peste entrou no burgo nortenho.

Alguns mecanismos de propagação das epidemias começavam a ser compreendidos. Em 1486, morreram de peste alguns habitantes da Porta do Olival, no Porto. A zona foi isolada. Estabeleceu-se um período de trinta dias de proibição de entrada na cidade a quem viesse de zonas infectadas. Organizou-se ainda, na margem Sul do Douro, um hospital destinado ao isolamento dos doentes. Foi localizado no Senhor do Além. As medidas tomadas produziram efeito e o Porto, dessa vez, foi poupado.

As epidemias foram-se repetindo, um pouco por todo o País. A utilidade das medidas de saúde pública foi-se tornando evidente. Em 1484, o rei D. João II mandou que se limpassem as canalizações e os monturos e esterqueiras e proibiu que se vazassem as imundices fora dos locais determinados. Ainda não se conheciam bactérias nem vírus, mas as causas da doença eram já atribuídas ao desrespeito das normas de higiene.

A última epidemia do século XV durou muito tempo. A sua natureza é difícil de determinar, podendo estar em causa surtos sucessivos de doenças diferentes. No final do século, deve ter predominado o tabardilho ou febre punctiforme, que alastrou em Espanha e foi trazida para Portugal pelos judeus forçados a refugiar-se no nosso País.


Fontes: Lemos, Maximiano. História da Medicina em Portugal. Publicações Dom Quixote/Ordem dos Médicos, Lisboa, 1991.

Imagem: O Triunfo da Morte. Obra não assinada, existente na Galeria Nacional da Sicília, em Palermo. A grande História da Arte, Público, 2006.


Também publicado em O BAR DO OSSIAN.

sábado, 17 de abril de 2010

HISTORINHAS DA MEDICINA

Há doenças que se reconhecem do outro lado da rua. Na calçada que sobe da Avenida da Liberdade para o Hospital dos Capuchos e que, ao longo dos seus quatrocentos metros de extensão, muda três vezes de nome (Rua das Pretas, Rua do Telhal, Rua de Santo António dos Capuchos), cruzei-me repetidas vezes com um acromegálico. Estive tentado a dirigir-lhe a palavra, mas não fui capaz de o fazer. Educaram-me no preconceito de que deve ser sempre o doente a procurar o médico. Ignoro se chegou a ser tratado.
Apesar dos progressos magníficos que se têm verificado nas técnicas de diagnóstico, continuam a existir patologias que apenas se dão a conhecer através da anamnese. Quem não fala do seu mal, não obtém ajuda. É um caso desses que relato hoje.
Entrou-me no consultório um homem alto e magro que andaria pelos vinte e cinco anos. Vinha acompanhado por uma mãe possessiva. Não se afastava do filho e parecia receosa de lhe tirar a mão da cintura ou do ombro. Os médicos ficam de pé atrás quando um homem feito chega com a mãe. Está-se à espera de alguma fragilidade.
Costumo perguntar: "de que se queixa?", "em que posso ajudá-lo?", ou pedir: "conte-me o que o traz cá".
As dificuldades consistem, muitas vezes, em separar o trigo do joio. Há que filtrar, da profusão de queixas, as que podem ser úteis para nos orientar no processo de diagnóstico. Os médicos têm mentalidades muito arrumadinhas: diagnosticar é um jogo que consiste em sintetizar o essencial de cada caso clínico e enformá-lo, até caber numa gavetinha que tem escrito por fora o nome da doença. Investe-se nisso todo o saber e o potencial necessário dos meios complementares de diagnóstico. Quando não se consegue fazê-lo, recorre-se a um especialista da área. Alguns doentes infelizes que não se prestam a ser arrumados, ficam mal vistos. E quantas vezes nos passa pela cabeça que há gavetas com rótulos demasiado vagos e imprecisos, que no futuro, serão talvez divididas em mais compartimentos...
Voltemos ao caso de hoje. Foi a mãe quem falou:
- Ele já está muito melhor...
- Mas diga-me, minha senhora! Está melhor de quê?
- Muito melhor, senhor doutor! Muito melhor!
Vi que, dali, não conseguia nada e voltei-me para o doente.
- Quem vem ao médico, traz sempre algum problema. O senhor não se quer queixar?
- Não! Eu estou bem.
Intrigado, procedi metodicamente ao exame neurológico, esperando que o gelo se quebrasse e que as queixas acabassem por ser expressas.
Quando apaguei a luz para lhe observar os fundos oculares, o doente recuou bruscamente e deu um berro de medo e ameaça. Coloquei-lhe a mão no ombro direito, para o sossegar, e já lá encontrei a mão da senhora. Acendi a luz e pedi que se sentassem. A história soltou-se.
- Senhor doutor! - Disse a mãe - Isto está quase resolvido. Tento eu como ele temos rezado muito.
- Será bom contarem-me o que há ainda para resolver...
O homem permaneceu calado. A mulher endireitou os ombros e resolveu falar.
- Senhor doutor! É o diabo que o anda a tentar. Manda-o, todos os dias, matar-me a mim e, depois, matar-se ele. Ai, quantos padre-nossos e avemarias rezámos... Mas, graças a Deus, vai estando melhor.
Pensei em esquizofrenia. Pedi licença e telefonei a um psiquiatra, pedindo a observação imediata e a previsão de internamento urgente. Parecia-me estarem duas vidas em risco.
Poucos dias antes, mãe e filho tinham estado no consultório de um colega distinto. Não fornecendo dados que o pudessem orientar, saíram de lá com a prescrição de um ansiolítico ligeiro...


sexta-feira, 9 de abril de 2010

AMATO LUSITANO

João Rodrigues foi um entre milhares de judeus portugueses que o fanatismo da Inquisição e a insuficiente visão política do rei Manuel empurraram para longe da terra natal. Manuel I herdou a empresa fabulosa das Descobertas mas permitiu cedo que os seus alicerces fossem abalados. Os portugueses glorificam a Expansão. Orgulham-se dos seus marinheiros mas lembram poucas vezes os mercadores que financiavam as caravelas. Entre os burgueses ricos de Lisboa, havia judeus. Ajudaram também a tecer as malhas do Império. Ao partirem, emprestaram prosperidade a outras nações e empobreceram a nossa. Alguns conservaram, até à morte, orgulho em serem portugueses. Foi o caso do médico João Rodrigues de Castelo Branco que, na idade madura, assinou os seus trabalhos científicos com o nome de Amato Lusitano.
Amato Lusitano nasceu em Castelo Branco, em 1511, numa família de marranos. O seu apelido, Chabib,vertido para latim, deu Amatus. Muito novo, foi estudar para Salamanca. Aprendeu Letras, Medicina e Cirurgia. Aparentemente, era aplicado em Espanha, nessa época, um protocolo ainda mais revolucionário que o de Bolonha, pois o cristão-novo, aos dezoito anos, já estava autorizado a praticar Medicina.
Em 1529, voltou a Portugal. Viajou pelo País e exerceu clínica em Lisboa durante algum tempo.
O ano de 1531 ficou debruado a negro na nossa História. Foi assinada a bula que instituía a Inquisição em Portugal. A insegurança forçou muitos judeus a emigrar. O País foi dessangrado de mercadores e de quadros.
Em 1534, João Rodrigues estava em Antuérpia, onde iria permanecer durante sete anos. Depois, andou de terra em terra. Ensinou Anatomia e Botânica na Universidade de Ferrara. Os seus trabalhos de dissecção em cadáveres humanos permitiram-lhe descrever uma válvula na veia ázigo e perceber que ela direccionava o fluxo de sangue. Abriu assim as portas para o conhecimento da circulação sanguínea, que só viria a ser bem entendida muitos anos mais tarde.
Amato Lusitano passou por Ancona e por Veneza. Em 1550, foi chamado a Roma para tratar o papa Júlio III. Paulo IV, que sucedeu a Júlio na cadeira de S. Pedro, mostrou-se intolerante para com os judeus. Amato Lusitano fugiu à pressa de Ancona para Pesaro. Abandonou mesmo alguns textos médicos já concluídos, como a 5ª centúria, que ainda foi recuperada, e os Comentários ao Livro I de Avicena, que se perderam para sempre.
De Pesaro, foi para Ragusa(actual Dubrovnik). Ali, as discordâncias sobre Dioscórides com Piero Andrea Mattioli ultrapassaram o âmbito da Medicina. Na sua Apologia Adversus Amathum, Mattioli acusou-o de professar a religião judaica, expondo-o à morte.
Em Maio de 1559, João Rodrigues de Castelo Branco partiu para Salónica, então sob domínio do Império Otomano. Os fiéis do Islão eram muito mais tolerantes que os cristãos e Amato pôde praticar em público a sua fé de sempre. Faleceu em Janeiro de 1568, vitimado pela peste que ajudava a combater. Tinha 57 anos.
Entre as suas obras avultam as Centuriae Medicinalia, que são descrições de casos clínicos agrupados aos centos. A título de curiosidade, cito a atenção que Amato Lusitano dá a maneiras invulgares de engravidar. Na 4ª Centúria, refere a história de uma gravidez devida à fecundação pelo esperma derramado num banho. Conta, na 7ª, outro caso de gravidez em que o sémen foi transportado por uma mulher casada que com outra se entregava ao tribadismo. Daí à fábula das éguas lusitanas fecundadas pelo vento ainda vai um longo caminho...
As Centúrias (Amato Lusitano escreveu sete) foram reeditadas múltiplas vezes. Conhecem-se 59 traduções em línguas diferentes. Para além da descrição das características clínicas dos doentes, o mestre português indicava as terapêuticas utilizadas. Permitem ainda partilhar um olhar interessado sobre a Europa do século XVI. Dão indicações sobre o modo de viver de povos diversos, a alimentação, a organização social, as tensões políticas, as guerras e as novidades que iam chegando das terras descobertas. O grande médico português foi também um cidadão do mundo.
Referências: História da Medicina em Portugal. Maximiano Lemos. Publicações Dom Quixote/ Ordem dos Médicos, Lisboa, 1991.
Wikipedia
Gravuras: Internet.
Também publicado em O BAR DO OSSIAN

quarta-feira, 31 de março de 2010

HISTORINHAS DA MEDICINA


FALSOS MÉDICOS

Soube de uma falsa médica que foi condecorada pelo Presidente Jorge Sampaio nas cerimónias do dia 10 de Junho. Desempenhava uma actividade notável na promoção da defesa dos direitos dos portadores de uma doença rara. Na altura, intitulava-se médica reformada e não parecia representar perigo para os doentes. Dizia deslocar-se frequentemente à Alemanha para consultar uma autoridade na matéria, mas não consta que tenha passado de Badajoz.

Sempre achei que era fácil passar por médico. Na Psiquiatria, entidade alegadamente instalada nas fronteiras do corpo e da alma, o mais importante, na pequena patologia, é, às vezes, saber ouvir. Aprender as indicações e as posologias de um par de ansiolíticos e de alguns antidepressivos não constitui tarefa maior. O conhecimento científico pode tornar-se fácil de simular. Num contexto bem diferente, sei de moças bonitas que passaram por inteligentes e cultas por terem desenvolvido uma capacidade estranhamente rara: saberem calar-se. Chamem-lhes burras...

Como especialista com alguma experiência prévia nas urgências polivalentes, lembro-me de passar pelas salas de observação do banco de S. José e de me atrever a tentar diagnosticar, a alguma distância: aquele doente queixa-se de uma cólica renal; o do lado tem um edema agudo do pulmão; o outro padece de bronquite asmática; o da direita sofreu um acidente vascular cerebral... Acertava muitas vezes.

A patologia dominante, mesmo nas grandes urgências médicas, não é muito variada. A terapêutica inicial é mais ou menos uniforme para a maioria das situações. Qualquer pessoa sensata, mesmo sem preparação médica, pode aprender a conhecê-las e a fixar o primeiro tratamento. Quando ocorrem dúvidas, é quase sempre possível uma pessoa inventar um pretexto para se mudar para a sala vizinha e esperar que apareça alguém capaz de resolver o problema. Por outro lado, fica bem pedir a opinião de um médico mais diferenciado e segui-la.

Anos atrás, uma familiar de um colega meu ausente do País pediu-me que metesse uma cunha para lhe conseguir uma consulta de Oftalmologia. Dirigi-me a um jovem e brilhante especialista do Hospital dos Capuchos que se prontificou a atendê-la.

Confidenciou-me a senhora, dias depois:

- Deve ser um falso médico! Pediu ao colega do lado que colocasse a vinheta na receita e que a assinasse...

domingo, 21 de março de 2010

HISTORINHAS DA MEDICINA


Iniciei o estágio da Especialidade em Julho de 1973.

Éramos poucos e lançaram-me logo às feras da Urgência. Ignorante e receoso, fui obrigado a representar o Serviço de Neurocirurgia como se andasse lá há muito tempo e tivesse aprendido grandes coisas.

De dia, ainda era apoiado. À noite, a responsabilidade caía-me toda nos ombros. Lembro-me da voz grossa do meu chefe, o Doutor Correia de Almeida:

- Olhe que só tenho gasolina para chegar a Queluz...

Era lá que ele morava. Vinha, quando era mesmo preciso.

Ao entrar na Especialidade, mudei também de equipa de Banco e conheci o Doutor Bandeira. Homem experiente e cortês, teria mais dez anos do que eu. Conversávamos com alguma frequência. Às vezes, acontecia que um de nós era chamado ao trabalho e o diálogo interrompia-se.

O Doutor Bandeira pareceu-me um pouco distraído. Quando o encontrava de novo, minutos ou horas mais tarde, chegava a parecer-me que perdera o fio à meada. O colega mais velho ouvia-me com a mesma gentileza de sempre mas, em metade das ocasiões, parecia ter esquecido o que fora dito antes.

Creio que foi apenas no terceiro dia de Urgência com a mesma equipa que vi juntos os irmãos Bandeira. Atrapalhei-me e receei estar a sofrer de diplopia (visão dupla). Ainda conhecia mal o grupo de trabalho. Não me tinha passado pela cabeça ter estado a lidar com gémeos idênticos.

Um era Cirurgião Geral e o outro Ortopedista. Um deles coxeava ligeiramente. Conheciam todas as anedotas de gémeos e não pareciam apreciá-las. Terá sido por isso que nunca lhes contei esta história.

Se algum dos dois a ler, que aceite um abraço amigo!

quinta-feira, 11 de março de 2010

HISTORINHAS DA MEDICINA


O Professor José Bacalhau não era uma pessoa comum. Depois de ter estado afastado, durante vários anos, da Faculdade de Medicina de Coimbra por questões não sei se internas se externas à Universidade , regressou para terminar a carreira no lugar que era seu. Homem de fraca figura, adorava representar.

Criara, em benefício dos alunos, uma série de aforismos médicos que chegara a publicar. Haviam de acudir aos clínicos de vilas ou aldeias se o estudo não fosse muito e a memória lhes falhasse. A minha deve estar a falhar bastante, pois só me lembro de um: "Gástrico a salivar, de cancro desconfiar".

Naquele tempo, as aulas teóricas eram de assistência facultativa e as práticas obrigatórias. Para garantir uma audiência que lhes confortasse os egos, muitos professores promoviam as teóricas a teórico-práticas. As faltas eram assinaladas pelo bedel.

Lá estava, no salão (creio que era o "nobre") do hospital antigo, uma centena de alunos ensonados a esforçar-se por ouvir o Mestre de Propedêutica Cirúrgica.

Para ser prática, a aula obrigava à presença de doentes. Recordo um velho baixinho sentado numa cadeira colocada um pouco à esquerda e à frente da secretária do Professor. Olhava o auditório com receio. Seria assim que as vítimas encaravam os anfiteatros romanos.

O Professor José Bacalhau começou a colheita da História Clínica pelos antecedentes.

- O senhor fuma?

- Não, senhor professor.

- O senhor bebe?

- Não, senhor professor.

- O senhor anda com mulheres?

- Não, senhor professor...

José Bacalhau sacou um berro do fundo da alma:

- O SENHOR É UM BURRO!

O pobre doente fez-se ainda mais pequeno.

A risada cruel da turma terá satisfeito a ânsia de ribalta do professor de cirurgia. Também me ri, mas saí da aula a pensar que, quando adoecesse, preferia internar-me num hospital não escolar.


quinta-feira, 4 de março de 2010

HISTORINHAS DA MEDICINA


Em 1968, eu morava em Coimbra, no Beco da Carqueja. A colina que descia da Universidade para o Arco de Almedina desnivelava a casa. As janelas da frente eram de um primeiro andar baixo e as detrás de um terceiro elevado.

Do lado da entrada, viam-se e ouviam-se bem as serenatas da Sé Velha, sem ser preciso ir até ao Largo, que distava uma vintena de passos. As traseiras davam para a Rua do Correio. No rés-do-chão havia uma mercearia modesta. Às vezes, descíamos um cestinho atado por um cordel e fazíamos subir, para o lanche, uma garrafa de cerveja cheia de uma mistura de vinho branco e licor de caramelo, a que os da zona chamavam "velhinha".

O sr. Daniel, pai do dono da mercearia, era velho e muito doente. Naquele tempo, eu frequentava o estágio que completava o Curso. Como a família não tinha posses para chamar repetidas vezes um médico respeitável, recorriam aos meus serviços. Não seriam muito competentes, mas eram gratuitos.

Não sendo licenciado, achava que não me ficava bem, e que podia até ser perigoso, deixar morrer um doente entregue aos meus cuidados. Assim que o sr. Daniel piorava, eu mandava-o internar no Hospital da Universidade, que era ali bem perto.

A falta de vagas já se fazia sentir naquele tempo e, logo que o meu doente mostrava algum sinal de recuperação, era reexportado para o domicílio. O sr. Daniel (o nome verdadeiro não era esse), foi bola de uma espécie de jogo de ping pong travado durante meses entre mim e os H.U.C.

Numa sexta-feira à tarde, chamaram-me outra vez a casa dele. O homem estava mal. Aconselhei, uma vez mais, o seu internamento.

Segunda-feira, voltaram a chamar-me. Lá fui. O sr. Daniel continuava em situação delicada, mas foi capaz de acender uma luzinha no olhar quando me viu.

- Sr. doutor! Ela saltou-me por cima!

- Como?

- A morte! Pulou de uma cama para a outra! Acho que ainda lhe vi o rastro...

- Vá lá, sr. Daniel! A situação não é assim tão má...

O doente estava tranquilo.

- O sr. doutor esforça-se por sorrir, mas eu não sou tonto. Conheço o estado em que me encontro e agradeço os seus cuidados e o seu esforço. Mas ouça-me, que vale a pena contar-lhe o que aconteceu... Eu estava na cama 3. Sábado de manhã, morreu o doente da cama 1. Na mesma noite, apagou-se o desgraçado da cama 2. Ontem, pouco antes do meio-dia, foi a vez do da cama 4 deixar de respirar.
Ela saltou por cima de mim! Levantei-me como pude, pedi as minhas coisas e exigi alta. O enfermeiro era novo e não me quis deixar sair sem autorização do médico, mas não havia nenhum disponível. Disse-lhe que não estava preso e que assumia todas as responsabilidades. Vim e aqui estou. Sei lá se Ela não ia dar pela minha falta e voltar atrás...

segunda-feira, 1 de março de 2010

SUN YAT SEN, MÉDICO EM MACAU





Espero que o papa Pedro Hispano me perdoe a heresia, mas Sun Yat Sen foi o homem mais ilustre que alguma vez praticou Medicina em território português.

Em 1892, o "pai" da República Chinesa iniciou a sua vida clínica no Hospital Keng-Wu, em Macau, como médico voluntário. Keng-Wu (lago do espelho) é um dos onze nomes literários que os chineses dão a Macau.

A aldeia de Cuiheng, onde Sun nasceu, dista menos de 40 quilómetros de Macau. No passado, o "condado" da Montanha Perfumada abrangia as duas localidades. O pai, Sun Dacheng, trabalhou como sapateiro em Macau entre os 16 e os 32 anos. Aos 13 anos, Sun Yat Sen visitou pela primeira vez Macau, na companhia de sua mãe. Voltaria muitas vezes.

O Hospital chinês tinha sido fundado em 1871. Mais do que hospital, era uma organização de beneficiência sustentada pelos chineses ricos de Macau. Para além de proporcionar consultas, internamento e remédios, a fundação recolhia cadáveres e dava-lhes sepultura gratuita, reparava as ruas da cidade, socorria os sinistrados, sustentava escolas e resolvia querelas entre o povo. Vendia também arroz a preço baixo à gente carenciada.

À data, os chineses fugiam da Medicina europeia e o Hospital Keng-Wu tratava mais doentes que os Hospitais de S. Rafael e S. Januário juntos, apesar de os mestres chinas não terem grande formação e de a mortalidade no internamento ser elevada. O patrono do Hospital era o lendário cirurgião Hua-Tó, que viveu de 265 a 322 d. C. É considerado o maior cirurgião chinês e o primeiro a utilizar narcóticos para a anestesia. Encarcerado por ordem do poderoso déspota Tsó-Tsó, faleceu na prisão. Após a sua morte, foi venerado como um santo dos nossos. Era objecto de culto em vários altares dos pagodes de Macau.

Formado aos 26 anos, na Faculdade de Medicina de Hong Kong para chineses, Sun Yat Sen começou a exercer clínica europeia no Hospital Keng-Wu onde, até essa data, se praticava apenas a medicina chinesa. Terá ali executado diversas intervenções cirúrgicas. O dr. Sun pediu ao Hospital um empréstimo, que lhe foi concedido, para montar uma farmácia sino-europeia, e abriu consultório em Macau, na Rua das Estalagens. Foi o primeiro médico chinês a fazê-lo no território.

Sun Yat Sen era acarinhado pela comunidade chinesa e bem aceite pelos portugueses. Relacionou-se com o macaense Francisco Hermenegildo Fernandes, que trabalhava na Imprensa, ainda na época em que estudava em Hong Kong.

O seu primeiro grande ensaio político - Carta a Zheng Zaoru - foi publicado num jornal de Macau em 1890.

Uma parte da sua família acabou por se fixar em Macau. Sun Yat Sen tem ali três estátuas e uma casa museu, para além de um jardim e de duas ruas com o seu nome.

Sabe-se que não foi como médico que Sun Yat Sen se notabilizou. A sua história é bem conhecida. A República da China dá-lhe um lugar de relevo entre os seus heróis nacionais.






Fontes:




Teixeira, Manuel. A Medicina em Macau. Governo de Macau, Macau, 1998.




Wikipedia.




Fotografias:




Wikipedia




Também publicado em O BAR DO OSSIAN.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

HISTORINHAS DA MEDICINA


Era Inverno e ainda não amanhecera. Segunda-feira, dirigia-me de carro para o meu trabalho, no Hospital de S. José. Na data, não existia a Ponte Vasco da Gama e só havia uma auto-estrada para Lisboa. Os tempos eram seguros e podia-se ajudar um desconhecido sem receio de assaltos.

Em frente à cadeia, encontrei um homem a pedir boleia. Encostei o automóvel à berma da estrada e deixei-o entrar. Minutos depois, explicou-me para onde se dirigia.

- Sabe, senhor? Eu sou recluso e obtive agora a primeira autorização para ir passar o Sábado e o Domingo a casa. Tenho de estar cedo na cadeia, senão para a semana não me deixam sair outra vez.

- Mas a cadeia é lá atrás!

- Como? A cadeia de Setúbal?

- Essa mesmo. O senhor estava em frente dela. Era só atravessar a rua...

- Que grande chatice! E agora?

- Agora, eu deixo-o na Estação de Serviços, que é já a seguir. O senhor atravessa a auto-estrada e pede outra boleia. Talvez ainda chegue a tempo...

Parei, desejei-lhe boa sorte e voltei ao caminho, sem saber se havia de sorrir ou de entristecer. O homem só conhecia a cadeia do lado de dentro das grades.


Foto: Internet

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

HISTORINHAS DA MEDICINA


A mulher era mais elegante do que magra. Andaria pelos quarenta anos e conservava um rosto bonito. O marido estava emigrado na Alemanha e só vinha a Portugal em Agosto e Dezembro.

O que melhor lembro dela é a mistura de força e de fraqueza, de coragem e de vontade de desistir. Quase todos somos um pouco assim, mas aquela senhora parecia transparente, como se tivesse a pele de vidro e qualquer um lhe pudesse espreitar as emoções.

Falou sem dizer. Contou coisas sem interesse. Via-se que tinha dificuldade em expor o problema que a tinha levado a pagar a consulta.

Aguardei.

Depois de vários rodeios, endireitou-se na cadeira e declarou:

- Senhor doutor! Antes de mais, quero que saiba que não pretendo nada de si!

Julguei que a doente me ia contar um segredo. Seria importante para ela mas, ao longo dos anos, os médicos escutam confidências demais. Se puderem, até lhes fogem.

Olhei o relógio. Estava a atrasar-me. Procurei evitar uma expressão de desinteresse.

- Senhor doutor! Eu quero apenas saber se me pode receitar um vibrador pela A.D.S. E.

Disse-lhe que não.

Ignoro se foi a minha postura ou a indisponibilidade da protecção social aos funcionários da Administração Pública que a desapontou. O certo é que não voltou ao consultório.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

HISTORINHAS DA MEDICINA


Aconteceu no meu consultório de Setúbal.
O homem, determinado, entrou à frente.
Parecia trazer demasiada pressa.
A mulher, claramente dominada,
seguia-o três passos atrás.
Não vinha pela arreata, mas parecia.
Ele sentou-se primeiro.
Andaria chegado
aos setenta anos, mas esforçava-se por manter o corpo bem direito.
A expressão do rosto era de desalento.
Ela seria quinze anos mais nova.
Tinha um ar fresco
apesar do cabelo branco, farto e bonito.
Devia ser pessoa de bom feitio, pois libertou facilmente
um sorriso cândido quando a cumprimentei.
Foi o homem quem falou.
Era um comerciante relativamente abastado e enviuvara meia dúzia de anos antes, numa altura em que as duas filhas, já casadas, se gastavam com os empregos e com as crianças. Não se davam mal, mas restava-lhes pouco tempo para darem atenção ao pai.
Nunca fora homem de aventuras. Antes de dar um passo, olhava bem o sítio onde assentar o pé.
Deitara os olhos pela terra e escolhera uma senhora modesta, viúva também mas sem filhos, tida como séria e asseada. Era bastante mais nova e toda a gente sabe que as mulheres duram mais do que os homens. Propôs-lhe casamento. Em troca do bem-estar e da segurança económica, pretendia companhia e protecção na velhice.
As coisas correram mal. Dois anos depois de casada, a mulher começou a ficar esquecida. Trocava os nomes às pessoas e abandonava facilmente a carteira na mercearia ou no talho.
Foi piorando. Passou a esquecer as panelas ao lume e a deixar esturrar a comida. Algum tempo depois, perdeu o sentido de orientação. Saía de casa e já não era capaz de regressar sem auxílio. Foi apagando da memória, do novo para o velho, tudo o que lá tinha estado registado. Acabou por esquecer que tinha casado outra vez e recusava ao marido a entrada no leito.
Ainda por cima, desleixara o vestir e, de vez em quando, urinava na cama.
O homem põe e os deuses dispõem. O senhor tinha programado o melhor possível os últimos anos de vida.
Via-se obrigado a tomar cada vez mais conta da mulher que recrutara para lhe suavizar a velhice.
O médico de família tinha-lhe falado na doença de Alzheimer.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

GARCIA DE ORTA


Garcia de Orta viveu, segundo consta, entre 1501 e 1568. Os pais eram cristãos-novos. Há quem afirme que nasceu em Elvas e quem garanta que é natural de Castelo de Vide.
Orta estudou em Salamanca e Alcalá, provavelmente de 1510 a 1515. Regressou a Portugal e, em 1526, obteve a carta que lhe permitia exercer Medicina. Dedicou-se, por algum tempo, à clínica em Castelo de Vide. Depois de várias tentativas falhadas, foi aceite pela Universidade de Lisboa, em 1531, como regente interino da cadeira de Filosofia Moral.
Em 1534, provavelmente para escapar às atenções da santa Inquisição, embarcou para a Índia, com o posto de físico do Capitão-mor do Mar da Índia, Martim Afonso de Sousa. Não regressaria a Portugal.
Durante quatro anos acompanhou o seu protector Martim de Sousa em guerras e viagens marítimas e terrestres. Fixou residência em Goa a partir de 1538. Foi médico do Hospital de el-rei e físico de alguns vice-reis e governadores-gerais, e até de potentados indianos. Para além de clínico, terá sido comerciante e mesmo proprietário de um navio mercante.
Católico em público, parece ter continuado a seguir em privado a lei de Moisés. Pouco depois da sua morte, vários familiares seus foram encerrados nas masmorras do Santo Ofício. A sua irmã Catarina terá sido queimada viva, em Goa, por ser “judia impenitente”. Em Dezembro de 1580, as ossadas do grande médico foram desenterradas e queimadas, como era costume fazer aos judaizantes que tinham conseguido enganar em vida a Inquisição.
Quando publicou os Colóquios, Garcia era homem de mais de sessenta anos. Viveu, pelo menos, até 1568.
O livro “Colóquios dos Simples e Drogas e Coisas Medicinais da Índia”, impresso em Goa em Abril de 1563, representou provavelmente o primeiro contributo determinante de um português para a Medicina europeia. A edição original da obra teve circulação limitada. O reconhecimento mundial de Garcia de Orta ficaria a dever-se às traduções latinas e francesas e, em especial, à divulgação que dela fez o grande botânico Charles de L`Escluse.
“Colóquios” será um dos livros mais interessantes publicados pelos portugueses da Índia durante os séculos XVI e XVII. São descritas pormenorizadamente muitas plantas indianas, uma desconhecidas e outras mal conhecidas na Europa, e são referidas as suas aplicações terapêuticas. A obra inclui ainda o que parece ser a primeira descrição da cólera na História da Medicina.
Sobre o valor dos Colóquios escreveria três séculos mais tarde o professor alemão F. A. Fluckiger: “Ninguém descreveu ainda as drogas indianas com mais cuidado, nem reuniu sobre elas informações mais aproveitáveis do que fez Garcia... Os Colóquios ocuparão um lugar de honra na história da farmacognose”.
Garcia de Orta foi um homem que se adiantou à sua época. Tinha a preocupação da objectividade e descrevia o que observava. A sua divisa era “eu vi”.
Na Índia teve possibilidade de exprimir com alguma liberdade o seu pensamento, o que não aconteceria na Europa, onde era quase impossível, à data, contestar as ideias de Hipócrates, Avicena e Galeno.
“Não me ponhais medo com elles, eu vi.”
Curiosamente, é publicada nos Colóquios a primeira poesia impressa de Camões. Trata-se de uma ode dedicada ao vice-rei conde de Redondo, em que o poeta descreve Garcia de Orta.

E vêde carreguado
De annos, letras e longa experiencia
Um velho que insinado
Das Gangeticas Musas na sciência
Podaliria subtil, e arte siluestre,
Vence o velho Chiron de Achilles mestre.



Referências:
Dicionário de História de Portugal (direcção de Joel Serrão), Livraria Figueirinhas, Porto, 1985.
História da Medicina em Portugal, Maximiano Lemos, Publicações Dom Quixote/ Ordem dos Médicos, Lisboa, 1991.
Os descobrimentos portugueses. Luís de Albuquerque, Publicações Alfa, Lisboa, 1885.
Fotografias:
História das Inquisições, Francisco Bethencourt, Círculo de Leitores, Lisboa, 1994.
Os descobrimentos portugueses. Luís de Albuquerque, Publicações Alfa, Lisboa, 1885.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

HISTORINHAS DA MEDICINA

O primeiro governo de Cavaco Silva tinha tomado posse há dois dias.
A equipa de Neurocirurgia de serviço ao “Banco “ do Hospital de S. José era constituída por mim e pelo meu amigo Ribeiro da Costa. Cerca da meia-noite, acabámos de observar os traumatizados que estavam na sala de observações. Na verdade, os doentes não cabiam nas pequenas salas e a nossa S.O. era o corredor.
Como tudo parecia calmo, subimos ao Serviço 10 e fomos dormir.
Por volta das duas da manhã, fomos acordados por uma empregada auxiliar com muitos anos de casa.
– Senhores doutores! Levantem-se! Está ali a ministra!
Eu e o Ribeiro da Costa tínhamo-nos na conta de pessoas sensatas. Sabíamos bem que os ministros não andavam pelos hospitais de madrugada, a menos que estivessem doentes. Tratava-se obviamente de uma brincadeira. Ignorámos o aviso e voltámos a adormecer.
Tivemos pouca sorte. Pouco depois, irrompeu pelo quarto, esbaforido, o Arlindo, internista que chefiava a equipe de Urgência:
– Trabulo! Ribeiro da Costa! Saltem depressa da cama! A Leonor Beleza está há meia hora à vossa espera.
Lá fomos. Não me lembro da explicação que demos para o atraso, nem estou certo de que tenhamos dado alguma. Acompanhámos a senhora numa visita guiada ao Serviço. Deve dizer-se que ela era linda. Trazia um belo casaco comprido que lhe realçava a figura elegante.
Tratava-se, segundo julgámos, de uma nova forma de fazer política, prolongando a campanha eleitoral para além da tomada de posse. Ficámos convencidos de que, até se esquecer do caso, a ministra terá pensado que nos tínhamos escapado do Serviço, gastando aquele tempo todo a vir de casa para o hospital.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

HISTORINHAS DA MEDICINA

Lembro-me de ter ouvido alguém perguntar por que razão as rádios, as televisões e os jornais divulgavam apenas notícias más. A resposta é simples: as pessoas interessam-se mais pelo que choca e angustia. Relatos das vidas que vão correndo bem não interessam aos jornalistas. A felicidade é valorizada apenas quando se perde.
Em tempos, juntavam-se pequenas multidões à entrada do “Banco” do Hospital de S. José. Entretinham-se a ver chegar as ambulâncias que iam descarregando dores, preocupações ou desgraças.
Quem trabalhou numa grande Urgência hospitalar foi obrigado a assistir a muitas tragédias e a testemunhar comportamentos humanos extremos.
Há cerca de um quarto de século, eu estava ocupado a observar os traumatizados de crânio menos graves, instalados precariamente em macas dispostas lado a lado ao longo da parede do corredor. Ao começo da manhã, contavam-se frequentemente duas e três dezenas. Era preciso desviá-las para ganhar acesso à cabeceira dos doentes.
De súbito, abriram-se estrondosamente as portas que davam para o “balcão” e irrompeu pelo corredor da Urgência uma maca empurrada por dois jovens bombeiros enervadíssimos. A corrida terminou junto à parede do fundo, por não haver mais para onde ir.
Médicos e enfermeiros aproximaram-se rapidamente para cuidar do presumível doente. O que viram impressionou até os mais experimentados. A maca continha os despojos de um homem de meia idade trucidado por um comboio. Os pedaços vinham todos, mas ninguém perdera tempo a reconstruir aquele “puzzle” macabro. Um pé e um membro superior, decepados, tinham sido colocados junto ao tronco. A cabeça fora arrumada entre os joelhos, para não cair.
Quando viram as batas brancas, os jovens bombeiros caíram neles. Acho que nem proferiram palavra. Tão pouco foi preciso dar-lhes indicações. Encetaram uma retirada humilde e lenta, para fazerem certificar o óbito no “balcão”. O cadáver pôde então seguir para a Medicina Legal.
A equipa de serviço contava com excelentes profissionais, mas nenhum estava habilitado a fazer milagres.