Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

domingo, 20 de novembro de 2022

             
               A REFORMA POMBALINA 
        
        DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA 


                  Colégio de Jesus e Colégio das Artes em 1732 
                                (gravura de Carlo Grandi)


Quando se esvaziou do componente mágico, a Arde de Curar passou a compor-se de três disciplinas: a medicina, a cirurgia e a farmácia.

Os médicos detiveram durante séculos um estatuto social superior ao de cirurgiões e boticários. A medicina era tida como “arte doutrinal”. Os médicos possuíam melhor preparação teórica, o que lhes permitia formular diagnósticos e propor terapêuticas. A cirurgia e a farmácia eram consideradas “artes mecânicas”, portanto menores. Cirurgiões e boticários executavam na prática os tratamentos determinados pelos médicos, sendo considerado menos relevante na sua formação o componente teórico. Esta situação perdurou até ao final do século XVII. A partir daí os procedimentos começaram lentamente a modificar-se.

Eram exigidos aos cirurgiões certos conhecimentos anatómicos, mas pretendia-se essencialmente que manejassem os instrumentos para cumprirem com eficácia as orientações médicas.

Era conveniente que os boticários conhecessem as plantas medicinais. Deveriam, porém, ser peritos em praticar as técnicas que transformavam as drogas isoladas em medicamentos.

Situados hierarquicamente abaixo desses grupos, exerciam funções ao serviço da saúde os sangradores e os barbeiros.

A reforma dita pombalina da Universidade de Coimbra teve início em 1772 e apenas reverteu parcialmente essa discriminação. Reformulou o ensino da medicina, procurando aproximar a formação dos médicos portugueses da dos seus congéneres dos países mais desenvolvidos da Europa.

Os pilares mais importantes da reforma institucional foram a criação, na Faculdade de Medicina, de três novos estabelecimentos: o Hospital Escolar, o Teatro Anatómico e o Dispensatório Farmacêutico.

O Hospital Escolar pretendia aproximar dos enfermos estudantes e professores. Passaram a ser ministradas ali as aulas práticas de Clínica Médica. Os hospitais que serviam até então a população da cidade situavam-se longe da Universidade, em locais “baixos, húmidos e pouco saudáveis”.

Ao tempo, funcionavam em Coimbra o Hospital Real, o Hospital da Convalescença e o Hospital dos Lázaros. Foi necessário preparar um hospital novo, gerido pela Faculdade.

O Teatro Anatómico destinava-se naturalmente ao ensino da anatomia, tendo em conta que a prática da dissecação em cadáveres humanos era indispensável à aprendizagem da cirurgia. Os Estatutos de 1772 previam a fusão entre medicina e cirurgia. A Faculdade de Medicina passava a acreditar os profissionais nas duas áreas. A cirurgia tornava-se parte integrante da medicina e era exercida pelos mesmos licenciados.

Um sinal do espírito claramente pós-galénico dos redatores dos Estatutos foi a indicação de que as autópsias deveriam servir também para determinar as causas da morte “para se proceder com melhor sucesso em outras moléstias semelhantes”.

O Dispensatório Farmacêutico tornava-se o local privilegiado para o ensino de farmácia aos alunos de medicina, enquanto formava também boticários. Fornecia medicamentos tanto aos doentes internados no hospital como aos que eram tratados em regime ambulatório. Estas novas instituições não se isolavam dentro dos muros da Universidade. Estavam abertas à comunidade coimbrã, prestando um serviço público valioso.

Tratava-se de reformular os paradigmas do ensino e da prática médica. Os tempos tinham mudado. A tradição galénica, que impregnara a formação dos médicos europeus durante milénio e meio, era agora vivamente contestada. Mais que nos velhos textos gregos e latinos, era na experiência que assentavam agora as esperanças de melhoria do saber médico.

As palavras de abertura dos Estatutos eram devastadoras para a prática tradicional da medicina: “ Tendo a Medicina por objeto duas cousas de tão grande importância como são a conservação e o restabelecimento da saúde dos homens, tem infelizmente sucedido não se fazerem nela os progressos que convinham, chegando muitos a desconfiar de que pudesse já haver Ciência na Medicina; e outros a desprezar a que atualmente existe; e ainda a temê-la, como perigosa e nociva, por ser muitas vezes ministrada cegamente pelas mãos da ignorância”.

A partir de certa altura, a utilidade da Faculdade de Filosofia da Universidade de Coimbra passou a ser vivamente contestada. Um grande número dos alunos que a frequentavam pretendia seguir medicina. O curso de filosofia era, aliás, obrigatório para os futuros médicos. Por que não a integrar então na Faculdade de Medicina? A polémica arrastou-se durante anos.

Os Estatutos previam que os lentes criassem ciência e elaborassem tratados para uso dos alunos. No entanto, tal como agora, Portugal era bem mais um país receptor do que produtor do saber científico.

Os estudantes matriculavam-se na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, depois de terem cumprido os estudos preparatórios na Faculdade de Filosofia. Curiosamente, era nessa Faculdade que os alunos frequentavam o Gabinete de História Natural, o Laboratório Químico e o Gabinete de Física.




                          Fachada do Laboratório de Química. 
                     Gravura de G. Elsdom e R.F. Almeida, 1877
                Mantém-se atualmente, após obras de recuperação.

É curioso constatar que a reestruturação da Universidade de Coimbra, que foi acompanhada pela contratação de professores estrangeiros de mérito e pela aquisição de material científico atualizado, coincidiu com uma redução drástica do número de alunos da Instituição que, de cerca de 4.500 caiu para meio milhar. Não foram os critérios de admissão que se tornaram mais exigentes. O que aconteceu foi a brusca diminuição da oferta de ensino pré-universitário, resultante da expulsão dos jesuítas.