Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

sábado, 20 de outubro de 2018





  HOMENAGEM
AO DOUTOR MÁRIO BRAGA TEMIDO

                                         



Congratulo-me com o espírito de abertura com que a direção do Ateneu, presidida pelo doutor João Freitas, acolheu esta iniciativa, veiculada pelo nosso colega e amigo comum Fernando Martinho.
Sou presidente da Sociedade Portuguesa de Escritores e Artistas Médicos há poucos meses. Entendo que a SOPEAM se deve aliar pontualmente a instituições não médicas, para convívio e troca de informação cultural. Tem acontecido assim, no decurso dos dois últimos anos com a Liga de Amigos de Setúbal e Azeitão, e estou aqui hoje. Talvez, para o ano, se encontre um pretexto que nos junte outra vez.  


Evocar o doutor Mário Temido é chamar à memória os anos finais da minha juventude, quando o coração era mais aberto e a generosidade fazia parte natural do nosso quotidiano.
É recordar a Sé Velha, onde vivi durante a maioria dos anos que passei em Coimbra. Morei muito tempo no Beco da Carqueja. A Sé Velha era, e espero que continue a ser, um espaço especial dentro de Coimbra, um lugar de convivência chegada entre estudantes e a população em geral.
Terá havido outros locais no país em que a juventude estudantil se tenha aproximado dos pequenos funcionários públicos e dos empregados de comércio com visões políticas progressivas, mas, aos meus olhos, a experiência da Sé Velha será sempre única.
Por bares e cafés em que toda a gente se conhecia, discutia-se quase abertamente a situação política, geralmente numa perspetiva de Esquerda. Sonhávamos, em conjunto, com um Portugal democrático, moderno, pacífico, livre da herança colonial e em convivência fraterna com os povos das antigas colónias, que deveriam definir livremente os próprios destinos.
Lembrar o doutor Mário Temido é, naturalmente, falar do Ateneu de Coimbra, a cuja Mesa da Assembleia Geral presidiu. O Ateneu desempenhou um papel histórico como polo agregador de pessoas de boa vontade que não se reviam nas vetustas estruturas políticas do Estado Novo e tinham a coragem de afrontar o regime salazarista.
O interesse científico do doutor Mário Temido pela malária é fácil de entender. Nasceu e cresceu no Baixo Mondego, uma região onde o desenvolvimento da cultura do arroz agravou a endemia antiga de paludismo – as sezões. A doença foi erradicada em Portugal nos meados do século XX, mas os mosquitos anopheles continuam aí e é bem possível que as recentes alterações climáticas favoreçam o reaparecimento da malária entre nós.
Quando fundámos o Posto Médico do Ateneu, éramos jovens médicos, cheios de boa vontade, mas inexperientes. O doutor Mário Temido era o companheiro mais velho que nos esclarecia as dúvidas e aconselhava, nos casos mais difíceis, que nem eram tão raros assim.
Como a juventude na profissão não permitia exageros de confiança redobrávamos de cuidados na abordagem dos doentes mais frágeis. É possível que enviássemos para a urgência do hospital, que era logo ali acima, casos clínicos que a poderiam dispensar.


Sem dizer nomes, vou contar um episódio da vida de um senhor cujo filho era proprietário de um pequeno estabelecimento na Rua do Correio. O homem, que teria, à data, os anos que eu conto hoje, possuía um coração muito fraco. De tempos a tempos, ia vê-lo a casa e, quando me parecia necessário, mandava-o para o hospital.
Aconteceu assim numa sexta-feira. Surpreendeu-me que, logo na segunda-feira seguinte, me voltassem a chamar. Contou-me o doente:
− Ó senhor doutor… Eu estava na cama três. Morreu o da cama um e, algumas horas mais tarde, o da cama dois. Domingo de manhã, faleceu o da cama quatro. Ela saltou! A morte saltou por cima de mim! Assinei o pedido de alta e aqui estou!
Eram mais os dias calmos e de convívio. Como disse, o relacionamento dos estudantes com a malta da Sé Velha, era especial.
Eu vivia duma bolsa de estudo e as mesadas chegavam a atrasar-se três, quatro e mais meses. Vivíamos, então, a crédito. Certa vez que me viu preocupado, o Mário Ferreira, proprietário do Café Oásis, a quem já devia três meses de bicas e cigarros, chamou-me de lado. “Doutor Trabulo, disse-me. Não se chateie. Pegue lá cinquenta paus. Leve a esposa a jantar fora e depois vão os dois ao cinema. Quando receber, paga tudo junto…”
Foram anos bons. Vivíamos modestamente, mas tínhamos a alegria própria da juventude. O doutor Mário Temido ia-nos apoiando com a sua amizade e o seu saber. Fico contente por ter surgido esta oportunidade de o recordar.

António Trabulo
(Palestra proferida no Ateneu de Coimbra a 19/10/2018)

2 comentários:

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  2. Recordo com saudade o Dr. Mário Braga Temido, 1º Presidente da Junta de Freguesia da Sé Nova-Coimbra pós 25 de Abril com quem laborei durante o mandato, distinto Médico e Amigo de coração aberto para toda a comunidade Coimbrã.
    José Rojão

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