Pouco sabemos, de ciência certa, do exercício da Medicina no Período Paleolítico na Península Ibérica e, em especial, das artes médicas dos Lusitanos. É tentador procurar estabelecer analogias com os dados colhidos entre povos que conservaram, até épocas recentes, hábitos primitivos.
A Medicina, a Religião e a Magia misturavam-se, no alvorecer da Humanidade.
O culto dos antepassados está presente em quase todas as religiões primitivas. É fácil imaginar que o papel que representaram no Período Paleolítico não tenha sido muito diferente do que ocupam na mitologia de alguns povos africanos actuais. Ainda hoje se acredita que os antigos sobrevivem, ainda que de modo ténue, e que conservam o gosto e o poder de interferir nos assuntos dos vivos. Ajudam e premeiam, mas sobretudo, vinga
Quimbandas e Xamâs, distantes pela Geografia mas próximos pelas funções, medeiam as relações com o mundo imaterial. São eles, também, quem diagnostica e trata as doenças. O tratamento comporta geralmente uma parte religiosa e outra medicamentosa. Esta implica o recurso à ingestão de substâncias variadas, habitualmente de origem vegetal.
Entre a Religião e a Medicina, o caminho é bem curto. Para além das montanhas e dos bosques, que se imaginavam povoados por deuses, também o deslizar dos rios e os murmúrios das fontes eram objectos do culto dos nossos antepassados. Foram encontradas, na Península Ibérica, lápides dedicadas às divindades das fontes e datadas da época da dominação romana. Chamavam-lhes “ninfas”, ou apenas “fontes”.
É fácil imaginar que as águas que brotavam quentes da terra (as caldas) ou as que se distinguiam pelo seu cheiro ou sabor, eventualmente sulfuroso, fossem consideradas detentoras de virtudes curativas. Da sobrevivênci
Apenas no Período Neolítico final (Calcolítico) foram encontrados amuletos com aparente significado mágico. São antepassados, em intenção, da Medicina Preventiva. Esperava-se que dessem protecção contra certas doenças. Na falta de conhecimento das causas dos males que traziam o sofrimento e a morte, recorria-se à magia. Não sabemos, entre nós, de regras sanitárias transportadas para a Religião, como a proibição do consumo da carne de certos animais.
A sangria foi método terapêutico comum entre egípcios, indianos, gregos e romanos. Povos das Américas do Norte, Centro e Sul, da Nova Guiné e da Austrália também recorreram a ela. Foi usada tão indiscriminadamente que maldizentes afirmavam que os médicos apenas sabiam sangrar.
Na Beira, na Estremadura, e em antas do Alentejo, foram achadas laminazinhas de cristal de rocha e de sílex que fazem, de algum modo lembrar lâminas de bisturi. Tais “micrólitos”, com os cabos de osso e madeira que o tempo terá destruído, poderão bem ter servido de lancetas para sangrar veias e drenar abcessos.
Estrabão, ao falar da etnologia de povos montanhosos da Ibéria, contava que os familiares expunham os doentes à beira dos caminhos para que quem passasse e tivesse padecido de mal semelhante, ou dele tivesse notícia, os pudesse aconselhar. Nada há de novo nessa estratégia. Já os Assírios a praticavam.
A Medicina, a Religião e a Magia continuam a misturar-se nos dias de hoje. Ainda, há tempos, se usavam pedaços de cera que sobrava das velas das festas da Semana Santa como amuleto contra as trovoadas. Que dizer dos santos que tomaram conta, na Europa, do monoteísmo judaico? Alguns foram considerados protectores contra doenças como o ergotismo ou a peste. Que dizer dos poderes curativos da Senhora de Fátima?
Quem passar, hoje ou amanhã, pelo Campo de Santana, em Lisboa, frente à Faculdade de Medicina, poderá facilmente observar, no monumento ao médico Sousa Martins, uma grande quantidade de ex-votos e de placas de agradecimento pelas graças recebidas.
Vê-se que, ao longo dos tempo, não mudámos assim tanto. Os séculos passaram, mas o território é o mesmo e a mentalidade das pessoas não se alterou tanto como seria de esperar. Muitos dos nossos compatriotas, sem descrerem da medicina moderna, ao enfrentarem dificuldades que não podem ultrapassar, procuram alargar o domínio da esperança, apelando ao sobrenatural, como faziam os nossos distantes antepassados.
Referências:
J. Leite de Vasconcelos. Medicina dos Lusitanos. Conferência proferida na Faculdade de Medicina de Lisboa em 1925.
J. Leite de Vasconcelos. Religiões da Lusitânia. Imprensa Nacional, Lisboa, 1897.
Religiões da Lusitânia. Loquuntur Saxa. Museu Nacional de Arqueologia, Lisboa, 2002.
António Trabulo. O dia em que Deus começou a desmontar o mundo ( no prelo).
Imagens:
Amuletos fálicos, Religiões da Lusitânia, Loquuntur Saxa, Museu Nacional de Arqueologia, Lisboa, 2002.
Ara votiva ao Deus Endovélico, idem.
Artefactos do Paleolítico superior. H.N. Savory. Espanha e Portugal. Editorial Verbo, Lisboa, 1971
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