Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

AMATO LUSITANO

João Rodrigues foi um entre milhares de judeus portugueses que o fanatismo da Inquisição e a insuficiente visão política do rei Manuel empurraram para longe da terra natal. Manuel I herdou a empresa fabulosa das Descobertas mas permitiu cedo que os seus alicerces fossem abalados. Os portugueses glorificam a Expansão. Orgulham-se dos seus marinheiros mas lembram poucas vezes os mercadores que financiavam as caravelas. Entre os burgueses ricos de Lisboa, havia judeus. Ajudaram também a tecer as malhas do Império. Ao partirem, emprestaram prosperidade a outras nações e empobreceram a nossa. Alguns conservaram, até à morte, orgulho em serem portugueses. Foi o caso do médico João Rodrigues de Castelo Branco que, na idade madura, assinou os seus trabalhos científicos com o nome de Amato Lusitano.
Amato Lusitano nasceu em Castelo Branco, em 1511, numa família de marranos. O seu apelido, Chabib,vertido para latim, deu Amatus. Muito novo, foi estudar para Salamanca. Aprendeu Letras, Medicina e Cirurgia. Aparentemente, era aplicado em Espanha, nessa época, um protocolo ainda mais revolucionário que o de Bolonha, pois o cristão-novo, aos dezoito anos, já estava autorizado a praticar Medicina.
Em 1529, voltou a Portugal. Viajou pelo País e exerceu clínica em Lisboa durante algum tempo.
O ano de 1531 ficou debruado a negro na nossa História. Foi assinada a bula que instituía a Inquisição em Portugal. A insegurança forçou muitos judeus a emigrar. O País foi dessangrado de mercadores e de quadros.
Em 1534, João Rodrigues estava em Antuérpia, onde iria permanecer durante sete anos. Depois, andou de terra em terra. Ensinou Anatomia e Botânica na Universidade de Ferrara. Os seus trabalhos de dissecção em cadáveres humanos permitiram-lhe descrever uma válvula na veia ázigo e perceber que ela direccionava o fluxo de sangue. Abriu assim as portas para o conhecimento da circulação sanguínea, que só viria a ser bem entendida muitos anos mais tarde.
Amato Lusitano passou por Ancona e por Veneza. Em 1550, foi chamado a Roma para tratar o papa Júlio III. Paulo IV, que sucedeu a Júlio na cadeira de S. Pedro, mostrou-se intolerante para com os judeus. Amato Lusitano fugiu à pressa de Ancona para Pesaro. Abandonou mesmo alguns textos médicos já concluídos, como a 5ª centúria, que ainda foi recuperada, e os Comentários ao Livro I de Avicena, que se perderam para sempre.
De Pesaro, foi para Ragusa(actual Dubrovnik). Ali, as discordâncias sobre Dioscórides com Piero Andrea Mattioli ultrapassaram o âmbito da Medicina. Na sua Apologia Adversus Amathum, Mattioli acusou-o de professar a religião judaica, expondo-o à morte.
Em Maio de 1559, João Rodrigues de Castelo Branco partiu para Salónica, então sob domínio do Império Otomano. Os fiéis do Islão eram muito mais tolerantes que os cristãos e Amato pôde praticar em público a sua fé de sempre. Faleceu em Janeiro de 1568, vitimado pela peste que ajudava a combater. Tinha 57 anos.
Entre as suas obras avultam as Centuriae Medicinalia, que são descrições de casos clínicos agrupados aos centos. A título de curiosidade, cito a atenção que Amato Lusitano dá a maneiras invulgares de engravidar. Na 4ª Centúria, refere a história de uma gravidez devida à fecundação pelo esperma derramado num banho. Conta, na 7ª, outro caso de gravidez em que o sémen foi transportado por uma mulher casada que com outra se entregava ao tribadismo. Daí à fábula das éguas lusitanas fecundadas pelo vento ainda vai um longo caminho...
As Centúrias (Amato Lusitano escreveu sete) foram reeditadas múltiplas vezes. Conhecem-se 59 traduções em línguas diferentes. Para além da descrição das características clínicas dos doentes, o mestre português indicava as terapêuticas utilizadas. Permitem ainda partilhar um olhar interessado sobre a Europa do século XVI. Dão indicações sobre o modo de viver de povos diversos, a alimentação, a organização social, as tensões políticas, as guerras e as novidades que iam chegando das terras descobertas. O grande médico português foi também um cidadão do mundo.
Referências: História da Medicina em Portugal. Maximiano Lemos. Publicações Dom Quixote/ Ordem dos Médicos, Lisboa, 1991.
Wikipedia
Gravuras: Internet.
Também publicado em O BAR DO OSSIAN

1 comentário:

  1. Boa tarde:
    Continuo a ler as suas Histórias da Medicina e
    uso-as como precioso veículo de cultura.
    Bem haja!
    Cumprimentos
    Zory

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