Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

sábado, 17 de abril de 2010

HISTORINHAS DA MEDICINA

Há doenças que se reconhecem do outro lado da rua. Na calçada que sobe da Avenida da Liberdade para o Hospital dos Capuchos e que, ao longo dos seus quatrocentos metros de extensão, muda três vezes de nome (Rua das Pretas, Rua do Telhal, Rua de Santo António dos Capuchos), cruzei-me repetidas vezes com um acromegálico. Estive tentado a dirigir-lhe a palavra, mas não fui capaz de o fazer. Educaram-me no preconceito de que deve ser sempre o doente a procurar o médico. Ignoro se chegou a ser tratado.
Apesar dos progressos magníficos que se têm verificado nas técnicas de diagnóstico, continuam a existir patologias que apenas se dão a conhecer através da anamnese. Quem não fala do seu mal, não obtém ajuda. É um caso desses que relato hoje.
Entrou-me no consultório um homem alto e magro que andaria pelos vinte e cinco anos. Vinha acompanhado por uma mãe possessiva. Não se afastava do filho e parecia receosa de lhe tirar a mão da cintura ou do ombro. Os médicos ficam de pé atrás quando um homem feito chega com a mãe. Está-se à espera de alguma fragilidade.
Costumo perguntar: "de que se queixa?", "em que posso ajudá-lo?", ou pedir: "conte-me o que o traz cá".
As dificuldades consistem, muitas vezes, em separar o trigo do joio. Há que filtrar, da profusão de queixas, as que podem ser úteis para nos orientar no processo de diagnóstico. Os médicos têm mentalidades muito arrumadinhas: diagnosticar é um jogo que consiste em sintetizar o essencial de cada caso clínico e enformá-lo, até caber numa gavetinha que tem escrito por fora o nome da doença. Investe-se nisso todo o saber e o potencial necessário dos meios complementares de diagnóstico. Quando não se consegue fazê-lo, recorre-se a um especialista da área. Alguns doentes infelizes que não se prestam a ser arrumados, ficam mal vistos. E quantas vezes nos passa pela cabeça que há gavetas com rótulos demasiado vagos e imprecisos, que no futuro, serão talvez divididas em mais compartimentos...
Voltemos ao caso de hoje. Foi a mãe quem falou:
- Ele já está muito melhor...
- Mas diga-me, minha senhora! Está melhor de quê?
- Muito melhor, senhor doutor! Muito melhor!
Vi que, dali, não conseguia nada e voltei-me para o doente.
- Quem vem ao médico, traz sempre algum problema. O senhor não se quer queixar?
- Não! Eu estou bem.
Intrigado, procedi metodicamente ao exame neurológico, esperando que o gelo se quebrasse e que as queixas acabassem por ser expressas.
Quando apaguei a luz para lhe observar os fundos oculares, o doente recuou bruscamente e deu um berro de medo e ameaça. Coloquei-lhe a mão no ombro direito, para o sossegar, e já lá encontrei a mão da senhora. Acendi a luz e pedi que se sentassem. A história soltou-se.
- Senhor doutor! - Disse a mãe - Isto está quase resolvido. Tento eu como ele temos rezado muito.
- Será bom contarem-me o que há ainda para resolver...
O homem permaneceu calado. A mulher endireitou os ombros e resolveu falar.
- Senhor doutor! É o diabo que o anda a tentar. Manda-o, todos os dias, matar-me a mim e, depois, matar-se ele. Ai, quantos padre-nossos e avemarias rezámos... Mas, graças a Deus, vai estando melhor.
Pensei em esquizofrenia. Pedi licença e telefonei a um psiquiatra, pedindo a observação imediata e a previsão de internamento urgente. Parecia-me estarem duas vidas em risco.
Poucos dias antes, mãe e filho tinham estado no consultório de um colega distinto. Não fornecendo dados que o pudessem orientar, saíram de lá com a prescrição de um ansiolítico ligeiro...


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