Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

terça-feira, 19 de julho de 2011

A MULHER QUE SE MATOU POR MIM


Há muitos anos, chamaram-me para observar uma doente que vivia na minha rua. Peguei na maleta de mão, caminhei durante duas centenas de metros e subi ao primeiro andar da casa onde ela morava com a família.
A senhora teria à volta de setenta anos. Nem estava muito mal, mas parecia gasta. Não tinha o tino perfeito e falava sem cessar. Os familiares escapavam-se como podiam daquela enxurrada de palavras. Acabava por passar muito tempo sozinha.
Eu tinha aprendido a escutar e a interromper as conversas no momento oportuno. Fosse lá alguém travar aquela mulher... Não fui capaz. Aguentei.
Falou de uma caterva de maleitas e voltou atrás quantas vezes quis. Era diabética e hipertensa. Enumerou os podres da família e queixou-se dos parentes. Dissertou durante hora e meia. Aproveitei a primeira pausa no seu longo discurso para juntar uma receita inocente aos remédios que já tomava e pisguei-me. Nem me lembrei de cobrar a consulta. 
Semanas depois, apareceu-me um dos sobrinhos, afogueado. A doente estava pior. 
Alguns dias após a minha visita, modificara bruscamente o comportamento. Desleixara a higiene pessoal e passara a vestir de forma estranha. Começaram a desaparecer em casa coisas de pouca monta: uma ou outra peça de roupa, escovas e cosméticos. A culpada foi fácil de descobrir. 
Sem lhe dizerem anda, passaram a vigiá-la discretamente. Constataram que ia recolhendo o que encontrava à mão e aferrolhava tudo numa arca velha. 
Nessa manhã, tinham ido dar com ela a ataviar-se frente ao espelho.Vestira uma saia demasiado comprida, soltara o cabelo e besuntara laboriosamente a cara com produtos de beleza. Acabara de pintar os lábios de um vermelho muito vivo.
A explicação daqueles preparativos deixou a família embaraçada. A senhora desenvolvera um delírio calado e empolgante que metia romance e casamento. Juntara o seu bragal e aprazara aquele dia para a boda.  
Como a não deixaram sair de casa, fechou-se no quarto e engoliu todos os comprimidos que encontrou.
O pobre do sobrinho estava a suar e pôs-se vermelho como pimento maduro quando me contou que o noivo era eu.
Antes de ver a doente, pedi que me mostrassem as caixas de medicamentos que ela havia ingerido. Por sorte, eram todos inofensivos.
Sentia-me pouco à vontade, quando entrei no quarto dela, mas a obrigação profissional sobrepôs-se rapidamente às circunstâncias da consulta. 
A mulher parecia um espantalho e chorava baixinho. Estranhamente, não dizia palavra.
Lá se deixou observar. Não encontrei sinais de alarme. A tensão arterial era razoável e a fita mostrava valores aceitáveis de açúcar na urina. Como se tratava de uma pessoa frágil, achei prudente enviá-la ao hospital para lhe lavarem o estômago. Era conveniente fazer análises para avaliar os danos e mantê-la sob vigilância durante algumas horas. 
Muito admirado fiquei quando soube que a senhora tinha falecido. Aconteceu nessa mesma noite, no serviço de urgência.
Revi mentalmente o processo. Entre as minhas duas visitas dera-se, provavelmente, um acidente vascular cerebral. Note-se que relato um caso que ocorreu antes da minha entrada para o internato da especialidade, anos antes da existência da Tomografia Computorizada ou da Ressonância Magnética. Muitos diagnósticos, então, assentavam em bases clínicas. Eu ignorava a causa da morte. A doente tinha factores de risco conhecidos para doença arterial. 
Não houve autópsia, provavelmente por erro de comunicação. Era obrigatória, em caso de tentativa de suicídio. Ainda telefonei para um colega que tinha estado de banco no Hospital de São Bernardo, mas não adiantou grande coisa. A mulher parecia estável, quando da última observação clínica. Minutos depois, uma enfermeira dera com ela morta.
Fiquei a pensar naquela vida. Julgo que a doente se fixou em mim porque fui o único ouvinte atento de que dispôs durante anos.
Esqueci-me de dizer que a senhora era cega. Terá gostado do pouco que ouviu da minha voz.

A história é verídica, no essencial. Aconteceu comigo em 1972 ou 1973. Vou integrá-la no livro "O Geronte dos Mares e outras Histórias".

Sem comentários:

Enviar um comentário