Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

sexta-feira, 27 de março de 2015


HISTÓRIA DA CIRCULAÇÃO SANGUÍNEA

IV

 DE CLAUDIO GALENO A WILLIAM HARVEY


De modo geral, o processo de aquisição do conhecimento desenvolve-se de forma progressiva, assentando cada avanço em conquistas anteriores. Não aconteceu exatamente assim com a compreensão da circulação sanguínea. Dissemos atrás que, para Galeno, o sangue não circulava: era formado continuamente no fígado e extinguia-se nos tecidos periféricos. A autoridade de Galeno impôs-se, na Medicina europeia e árabe, durante cerca de um milénio.



O primeiro médico do mundo a entender a pequena circulação sanguínea foi o árabe Abu-Alhassan Alauldin Ali Bin Abi-Hazem Al-Quarashi. Nasceu em Damasco em 1210 e faleceu em 1288. Ficou conhecido pelo nome de Ibn al-Nafis. Expôs as suas conceções no Comentário ao Canon de Avicena, quase quatro séculos antes da publicação da obra decisiva de William Harvey. Nem Leonardo da Vinci, que entendeu o funcionamento das válvulas cardíacas antes do nascimento de Vesálio, nem o próprio André Vesalio, que negou, na segunda edição da sua obra fundamental De humani corporis fabrica, em 1555, a existência da comunicação interventricular, essencial para a teoria de Galeno, tiveram conhecimento dos trabalhos de al-Nafis.



Miguel Servet publicou em 1553 a sua obra Christianismi Restitutio em que descrevia o mecanismo da pequena circulação sanguínea. Seria um conhecedor da literatura muçulmana e judaica e terá tido acesso aos escritos de Ibn al-Nafis, traduzidos para o latim em 1547 por Andrea Alpago di Belluno. Não fez, contudo, referência à descoberta do médico árabe. Involuntariamente ou não, ficou, até ao começo do século XX, com os louros atinentes à descoberta da pequena circulação sanguínea.



Matteo Realdo Colombo (1516-1559), discípulo de Vesálio e seu sucessor na Cátedra de Anatomia em Pádua, resumiu os avanços científicos dos anatomistas que o precederam. Reafirmou a ausência de comunicação interventricular, descreveu os mecanismos de abertura e encerramento valvulares e voltou a explicar a pequena circulação, confirmando os escritos de Miguel Servet com vivissecções de cães e outros animais. O seu livro De Re Anatomica foi publicado meses após a sua morte. Inclui algumas descobertas originais, como a expansão arterial com as pulsações e o encerramento da válvula pulmonar durante a diástole para impedir o refluxo sanguíneo. O seu contributo mais importante para a circulação sanguínea terá sido a descoberta de que a ação principal do coração residia na sístole e não na diástole.
Realdo Colombo foi um personagem controverso. Ao contrário de outros médicos ilustres, começou por ter formação cirúrgica e conheceria mal os textos clássicos. Ficaram célebres as suas críticas a Vesálio e a suposta usurpação da primazia de Fallopio na descrição do clitóris. Realdo, na sua obra, nem sempre citou devidamente os anatomistas que o precederam. Muitos médicos, incluindo William Harvey, ficaram convencidos de que tinha sido ele o descobridor da pequena circulação.   



Andrea Cesalpino nasceu em Arezzo, na Toscânia, em 1519. Viria a falecer em Roma em 1603. Estudou com Realdo Colombo. É sobretudo conhecido na história da ciência como botânico. Foi o primeiro médico a fazer referência à circulação do sangue. Afirmou que o centro do sistema circulatório residia no coração e não no fígado. Percebeu que o sangue fluía nas veias apenas numa direção, a do coração, ainda que não tenha entendido que circulava em circuito fechado. Nas suas obras Quaestionum medicarum Libri II e Facultatibus medicamentis Libri II, publicados em 1593, postulou que o sangue se deslocava continuamente da veia cava para o coração e percorria o circuito pulmonar até à aorta. Embora admitisse que algum sangue venoso passava diretamente para as artérias, assomou-se do entendimento da grande circulação. Estava aberto o caminho para o trabalho de William Harvey.




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