Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

terça-feira, 24 de março de 2015

HISTÓRIA DA CIRCULAÇÃO SANGUÍNEA
I
MIGUEL SERVET
UM MÉDICO HEREGE
        

Atravessamos uma época de intolerância religiosa em que se volta a matar em nome de Deus. Se, atualmente, são alguns muçulmanos que se entregam ao radicalismo, será bom não esquecer que na Europa, durante séculos, a chamada heresia foi muitas vezes punida com a morte na fogueira. Curiosamente, o ódio a quem se atrevia a pensar de modo diferente do oficial chegou a irmanar católicos e calvinistas, que se detestavam mutuamente. O caso de Miguel Servet, a quem, durante séculos, foi atribuída a descoberta da pequena circulação sanguínea, é exemplar. O médico e pensador espanhol cometeu a proeza de ser queimado por duas fés: vivo, em Genebra, pelos calvinistas, em 1553, e em imagem, em Paris, pela igreja católica.
Miguel Servet (Michael Servetus) nasceu, provavelmente em 1511, na povoação espanhola de Villanueva de Sigena (Huesca, Aragão). Estudou Direito em Toulouse e Medicina em Paris. Viajou pela Europa e conheceu alguns reformadores notáveis. Aos vinte anos, publicou a obra De Trinitatis erroribus (Os erros da Trindade) em que negava o dogma da Trindade e a divindade de Cristo. A juventude emprestava-lhe o destemor: à época, o código justiniano impunha a pena de morte a quem recusasse aceitar a doutrina da Trindade.
Servet leu a Bíblia da primeira à última página e não encontrou a mínima referência à trindade divina. Concluiu que essa doutrina havia sido forjada no Concílio de Niceia, no ano 325 da era cristã.
Miguel Servet praticou medicina na região de Lyon durante cerca de quinze anos. Foi médico pessoal de Guy de Maugiron, vice-governador do Dauphiné, e do arcebispo Palmier de Viena.
Em 1553, já na idade madura, publicou a obra intitulada Christianismi Restitutio (Restituição do Cristianismo), em que rejeitava a ideia de predestinação das almas para o inferno. No mesmo livro, descreveu a circulação pulmonar. Explicava que o sangue ia do coração aos pulmões e regressava regenerado.
 «O espírito vital regenera-se nos pulmões de uma mistura de ar inspirado e de sangue delicado elaborado no ventrículo direito do coração. Sem dúvida, esta comunicação não se faz através das paredes do coração, como se acreditou até hoje, e é impulsionado até aos pulmões por meio de um grande orifício».
Não explicou como atingira esse conhecimento.
Trocou correspondência com João Calvino, criador de uma vertente do protestantismo. A permuta de ideias acabou mal. Calvino, que ficou conhecido como humanista, não deu mostras dessa qualidade na perseguição que moveu a Servet. Chegou a escrever: «se a minha autoridade valesse algo, eu nunca lhe permitiria viver».

                            João Calvino
  
Em abril de 1553, Miguel Servet encontrava-se em Viena e foi preso pelas autoridades eclesiásticas. Conseguiu escapar da prisão. Em junho do mesmo ano, apesar de não estar em França, foi condenado pela Inquisição local sob a acusação de heresia. Os seus livros foram queimados.  
O cerco apertava-se. Servet pensou refugiar-se em Itália. Teve a pouca sorte de se deter em Genebra, fiado na tolerância dos calvinistas. O erro custou-lhe a vida.
        Alguma atração inexplicada o ligava a João Calvino. A 13 de agosto, ouviu um sermão do reformador. Foi reconhecido e preso. Num julgamento alegadamente presidido por Calvino, foi condenado à morte por negar a Trindade e recusar o batismo infantil.



  A 27 de outubro de 1553, Miguel Servet foi queimado vivo numa fogueira de lenha verde. A lenha verde ardia mais devagar e aumentava o sofrimento dos supliciados.

Fontes: 
Bedrikow, R., Golin, V. Carta ao editor. A história da descoberta da circulação pulmonar. J. Pneumologia vol.21 nº1, São Paulo, jan/fev 2000.
Botelho, J.B. Miguel Servet: a resistência aos dogmas católicos e protestantes. Publicado na Internet, em História da Medicina, em 04/04/2012.

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