Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

terça-feira, 30 de junho de 2015

      

        MEDICINA TRADICIONAL CHINESA


             EM MACAU, NO SÉCULO XX



Durante séculos, a medicina tradicional chinesa foi a única a que os habitantes de Macau tiveram acesso.
Os primeiros boticários europeus foram jesuítas. Médicos e sangradores tardaram a instalar-se na pequena cidade-estado. Falei nisso, neste blogue, algum tempo atrás.
O começo do rompimento com a tradição chinesa tem uma data: 1913. Foi nesse ano que o Dr. José Caetano Soares chegou a Macau. Tomaria conta do Hospital de S. Rafael em 2016.
O prestígio deste clínico tornou popular na Cidade do Santo Nome de Deus a medicina ocidental.
O processo não foi acelerado porque o número de médicos formados em Portugal era insuficiente para atender a população chinesa. Em abril de 1935, Caetano Soares estimava em 40% a percentagem da população de Macau que optava pela medicina tradicional. Os seus cálculos baseavam-se na frequência do Hospital Keng Wu.
Em 1944, a insuficiência da oferta de cuidados europeus de saúde continuava a obrigar as autoridades portuguesas a tolerarem a continuação do exercício profissional por parte dos curandeiros chineses. Não existiam na colónia médicos, parteiros e dentistas em número suficiente.
As leis foram acompanhando a evolução da realidade do território. Em 1954, foi já possível limitar (em teoria) o exercício da arte de curar aos chineses habilitados por escolas ou instituições reconhecidas pelas autoridades sanitárias.
Em 1964, foi adotada uma legislação curiosa. Os médicos chineses passaram a ser considerados enfermeiros. Na prática, o exercício da medicina tradicional passou a ser clandestino.


O professor italiano António Scarpa fez uma viagem de estudo pelo Extremo-Oriente e, em 1965, publicou as impressões recolhidas em Macau.
«A maioria das farmácias – sejam ocidentais, mistas ou chinesas – pertence aos chineses, os quais, como é evidente, simpatizam com a sua medicina; acontece que, quando uma pessoa solicita determinado fármaco não-chinês, o vendedor oferece-lhe uma mezinha tradicional, acompanhada do mais amável dos sorrisos e das mais persuasivas recomendações – motivo por que o cliente, muitas vezes e sobretudo se é chinês, acaba por adquirir a especialidade sugerida pelo farmacêutico.
Os boticários chineses não frequentam qualquer escola profissional. Iniciam a sua carreira como simples moços de farmácia, passando depois, a pouco e pouco, por três graus sucessivos, até conseguirem o cargo de diretor de farmácia.


Raras vezes o farmacêutico faz poções ou xaropes. Em geral, serve-se das drogas prescritas e junta-as num único cartucho de papel que, depois, entrega ao cliente. Este, chegando a casa, faz pessoalmente a poção, conforme as instruções que o médico lhe deu.
Os médicos tradicionais chineses pertencem, geralmente, a famílias de médicos, orgulhando-se da sua ascendência que, por si mesma, pode constituir título para exercer a medicina; desde rapazinhos, os filhos dos médicos conhecem algumas noções de medicina, aprendidas com os pais. Terminada a escola média chinesa, que dura seis anos, os alunos inscrevem-se numa Chung i Hòk Uén, isto é, numa Escola de Medicina Chinesa que em regra tem a duração de cinco anos. Frequentemente, as lições são dadas de noite, durante duas ou três horas, a fim de consentirem que os alunos se dediquem a outras atividades de dia.»
No final de 1970, foram renovadas as licenças a 108 médicos, 60 dentistas, 31 enfermeiras, 18 parteiras e 86 praticantes de medicina tradicional chinesa. 
As modificações culturais são, quase sempre, lentas e progressivas. Disse o padre Manuel Teixeira: «as antigas famílias de Macau tinham em suas casas cadernos de mezinhas caseiras e populares para as mais diversas». Anos mais tarde, quando as procurou recolher para estudo, obteve apenas alguns exemplares cedidos por senhoras que iam na oitava década da vida. Lá, como cá, os tempos mudaram. De modo geral, a época dos mestres chinas pertence à História.

Apoio bibliográfico:
Scarpa, A. A medicina tradicional chinesa em Macau. 
Soares, J. C. Notas sobre a medicina chinesa.
Teixeira, M. Os mestres chinas.
Todos estes artigos integram o livro A Medicina em Macau, do padre Manuel Teixeira. Governo de Macau, Macau, 1998.

Sem comentários:

Enviar um comentário