Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

quinta-feira, 22 de novembro de 2018




GRIPE PNEUMÓNICA
III
A PENUMÓNICA EM PORTUGAL

    Os portugueses poderiam mesmo chamar “espanhola” à gripe pneumónica. Os primeiros casos ocorreram em maio de 1918, em Vila Viçosa. Foram trazidos de Espanha por trabalhadores sazonais portugueses vindos de Badajoz e de Olivença.


A gripe espalhou-se rapidamente pelo Alentejo. Chegou a Lisboa e ao Porto em junho. Em pouco tempo, espalhou-se por todo o país.
Em setembro, instalou-se na Madeira, levada por passageiros embarcados no navio Mormugão.


Atingiu no mesmo mês os Açores, transmitida por doentes que seguiram, por mar, de Bordéus para Ponta Delgada.
     Quando ocorreram, em Vila Nova de Gaia, em agosto, alguns casos de pneumonia fulminante, houve quem receasse estar a enfrentar um surto de peste bubónica, de que havia memória recente. Ocorreu uma epidemia de peste, na região, no final do século XIX. As autoridades sanitárias esclareceram que se tratava de gripe, mas a população nada terá ganho com a troca.


Era o início da segunda vaga de gripe. Durou poucos meses, mas acompanhou-se de uma taxa mortalidade que chegou aos 6,6%.
      Perante um flagelo que não entendiam, nem eram capazes de combater, muitos portugueses refugiaram-se na religião e procuraram obter, como durante a Idade Média, por meio de preces e procissões, o auxílio que as autoridades sanitárias eram impotentes para proporcionar.


Segundo João Frada, os concelhos da Região Norte foram relativamente poupados pela doença.
Por outro lado, as taxas mais elevadas de mortalidade não se verificaram nos concelhos mais populosos do continente. Benavente foi a povoação mais afetada pela epidemia, tendo morrido sete por cento dos doentes atingidos. Entre as cidades, as mais afetadas foram Covilhã e Leiria.
Foram, nessa altura, ensaiadas as primeiras vacinas polivalentes.


Ricardo Jorge, diretor do então Instituto Central de Higiene, teve um papel importante, ainda que nem sempre consensual, no combate à gripe. Tornou obrigatória a notificação de todos os casos, procurou impedir as movimentações das forças militares e as migrações dos trabalhadores agrícolas sazonais e esforçou-se por conter os aumentos dos preços dos medicamentos nas farmácias. Suspendeu as aulas e proibiu as visitas aos hospitais. No entanto, as salas de espetáculos continuaram a funcionar.
        Em Lisboa, o Liceu Camões e o convento das Trinas foram transformados em hospitais.


Como noutros países, as crianças pequenas e os adultos jovens foram mais atingidos.
Segundo Helena Rebelo de Andrade, a pandemia gripal encontrou Portugal a braços com uma crise “económica, social, política e sanitária”.
     O quadro clínico era semelhante aos das gripes dos nossos dias: febre, cefaleias, mialgias, ardor faríngeo, rinorreia e, ocasionalmente, conjuntivite. Na maioria dos casos, a doença evoluía bem e curava em 3 a 5 dias.
       A complicação mais temida era a pneumonia primária, com expetoração hemoptoica e espumosa. Provocava muitas vezes síndromes de insuficiência respiratória aguda, matando o doente num dia ou em dois. Ocasionalmente, eram invadidos outros órgãos e sistemas, surgindo miocardites, encefalites e, provavelmente em associação com o uso de salicilatos, síndromas de Reye.


     Neste gráfico, é bem claro o efeito da gripe pneumónica na evolução da curva de mortalidade do nosso país.
Que conselhos se poderiam dar aos doentes? Alguns são atuais hoje, como ficar em casa, repousar e adotar uma dieta ligeira. Recomendavam-se caldos de galinha e gargarejos mentolados. A febre era combatida com soluções de quinino e salicilatos. A tosse tratava-se com xaropes de benzoato de sódio e de acetato de amónio. Nos casos mais graves, recorria-se a injeções de soluções arsenicais, cafeína e adrenalina.
      A desgraça estava à vista de todos. Saíam, cada dia, funerais da própria rua e até da casa ao lado. A epidemia era transversal a todas as classes sociais. Morriam padeiros, leiteiros, médicos e coveiros. Os sinos das igrejas tocavam quase continuamente a finados.



        A morte banalizou-se. Faltavam os caixões e muitos corpos eram sepultados em valas comuns envoltos em serapilheiras. 
    No nosso país, foram mais atingidos pela gripe as crianças com menos de dois anos de idade e os adultos jovens. Metade dos óbitos registou-se entre os 20 e os 40 anos de idade.

  NÚMERO DE ÓBITOS EM PORTUGAL
(MILHARES)
JOÃO FRADA   60
JOSÉ MANUEL SOBRAL  DE » 50 A » 100
WIKIPEDIA       CERCA DE 120


       O número de óbitos registado em Portugal varia também, segundo as fontes, entre 50 e 120 mil. João Frade contabiliza exatamente 60.174, mas poderão ter-lhe escapado inúmeros casos sem diagnóstico ou com diagnósticos enganosos. Note-se que em 1918, os portugueses eram menos de seis milhões.
          Entre dezenas de milhar de desconhecidos, a gripe ceifou as vidas de várias personalidades com relevo na sociedade portuguesa.


                 O pintor Amadeu de Souza Cardoso


       O suposto vidente de Fátima, Jacinto Marto


       O pianista e compositor António Fragoso
       E, last but not least, o fundador do Sporting, José Alvalade.

    A gripe pneumónica provocou uma crise demográfica grave no nosso país, com um saldo negativo de 70.291 habitantes, só em 1918.






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