Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

terça-feira, 29 de janeiro de 2019




       RELACÃO MÉDICO DOENTE


    NA LITERATURA PORTUGUESA





    CAMILO CASTELO BRANCO




Camilo Castelo Branco nasceu em Lisboa, em março de 1825 e faleceu em s. Miguel de Seide, em junho de 1980. Chegou a estudar Medicina, tendo obtido aprovação nas cadeiras de Anatomia e Química. Logo a seguir, desistiu do curso.
Camilo teve uma vasta produção literária. A dada altura da sua vida, chegou a ser considerado “o maior romancista de Península Ibérica”.
Por volta dos 40 anos, começou a queixar-se de diplopia e de cegueira noturna. Era a neurosífilis, que lhe provocaria atrofia óptica e acabaria por o conduzir ao desespero.
Escreveu a 13/3/1888:
Aqui esteve quatro horas o Dr. Gama Pinto, uma cara inteligentíssima revelando um excelente coração. Conheceu rapidamente o meu deplorável estado, e fez-me um bom discurso para me dar paciência e resignação para a cegueira.
Caíram todos os meus castelos no ar quando o médico, em vez de combater a minha cegueira, tratou de me armar de paciência para tolerá-la. Fez-se na minha alma uma noite escura, que nunca mais terá aurora.
Outro médico, Ricardo Jorge (1858-1939) conheceu Camilo Castelo Branco em 1884. Segundo Maximiliano de Lemos, “Ricardo Jorge era o médico mais talhado para prestar cuidados a Camilo e para se impor ao seu espírito doente e torturado”.
O doente rebelde aceitou a autoridade do seu novo clínico. No entanto, Ricardo Jorge não foi apenas médico de Camilo. Tornou-se, também, seu amigo pessoal, tendo-o visitado em Seide, na Póvoa, no Porto e em Lisboa. Ricardo Jorge colaborou ainda no tratamento de Jorge, o filho louco de Camilo e, em 1886, facilitou o internamento dele no Hospital Conde de Ferreira.
O insigne higienista Ricardo Jorge foi também um homem de cultura. Publicou artigos de jornal, críticas artísticas e literárias e poemas. Entre os seus escritos contam-se “El Greco” (1912), “Ramalho” (1915), ”Contra um plágio do Prof. Teófilo Braga” (1917), Francisco Rodrigues Lobo (1920), “Camilo e António Aires” e o poema “As Comendas”. Ricardo Jorge chegou mesmo a pensar escrever uma biografia de Camilo, mas não o chegou a fazer.
São raras as fotografias em que Camilo figura acompanhado. Apresenta-se, numa, junto a Ana Plácido e a um dos filhos. Na outra, mostra-se ao lado de Ricardo Jorge.
Camilo teve um fim de vida atribulado. Escreveu, em carta não datada, ao Dr. Rebelo da Silva:
A minha agonia está sendo tão nova e tão extraordinária que eu me considero nos últimos transes desta crudelíssima vida.
No entanto, o sofrimento não lhe coartava o sentido de humor. Escreveu a Trindade Coelho, a 9/7/1996:
Infelizmente, os jornais tratam da minha saúde, ad libitum, fantasiosamente, como os médicos.
Raramente as relações médico doente terão acabado tão mal como no caso de Camilo Castelo Branco e do último oftalmologista que o observou.
A 21 de maio de 1890, Camilo estava desesperado com a cegueira. Escreveu ao oftalmologista Edmundo de Magalhães Machado, de Aveiro, pedindo-lhe que o salvasse. A 1 de junho, o médico deslocou-se a Seide. Reconhecendo que o mal que afligia o escritor não tinha cura, optou por o não desanimar frontalmente. Aconselhou-o a melhorar o seu estado geral, para que os órgãos da visão se pudessem recompor. Recomendou-lhe tratamentos com as águas do Gerez.
Camilo compreendeu o recado. Enquanto Ana Plácido acompanhava o médico à porta, desfechou um tiro de revólver na cabeça. Levaria cinco horas a morrer.

Texto retirado do capítulo “Relação Médico doente na Literatura Portuguesa”, do livro a integrar no Processo de candidatura da Relação médico doente a Património Imaterial da Humanidade.





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