Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

segunda-feira, 20 de abril de 2020





DEUSA COBRA





Adquiri há algum tempo e contra a opinião da minha mulher uma escultura em pedra julgo que se trata de calcário a um antiquário alentejano. Tem dois palmos de altura por três de largo e é bastante pesada. Foi com esforço que eu e o vendedor a introduzimos no porta-bagagem do automóvel.
Nunca tive uma peça tão bela e não voltarei a ter outra assim. É uma deusa serpente. Tem uma cabeça de mulher e outra de cobra. Raras pessoas terão tido o privilégio de admirar coisa parecida.
 Ao longo dos meses, conforme o tempo disponível, vasculhei a Internet à procura de informação. A bibliografia sobre deusas serpentes na Península Ibérica é abundante, mas não encontrei qualquer imagem de escultura igual ou semelhante.
Os gregos antigos chamavam à Península Ibérica Ofiusa, terra de serpentes. Em Portugal e em Espanha, abundam as lendas sobre cobras, dragões e mouras. Estas mouras (de que são bem conhecidas lendas em Mértola e em Palmela) têm muitas vezes formas híbridas, metade mulher e metade serpente e estão habitualmente relacionadas com a água (fontes e cavernas). Melusina é outra figura conhecida nas lendas europeias. Trata-se de um espírito feminino também híbrido que habita na vizinhança de rios e fontes sagradas.
Julga-se que aos habitantes originais da Península Ibérica se foram juntando, entre o oitavo e o sexto século antes de Cristo, povos indo-europeus de origem celta, conhecedores da metalurgia do ferro. Os celtas trouxeram para cá o seu panteão de deuses, incluindo nele o culto da serpente. No entanto, a serpente era já um mito pan-mediterrâneo. Tratou-se, assim, de uma reinoculação. O culto celta da serpente misturou-se provavelmente com outros rituais há muito estabelecidos na Península.
A serpente é olhada de modos diferentes nas lendas antigas. Representa, em alguns casos a evolução cíclica da Natureza. Trata-se de um animal que aparece e desaparece e que muda de pele. Oculta-se na terra durante o tempo frio, para regressar na primavera. Torna-se um símbolo da morte, antes de se associar à ideia de ressurreição. Será por isso a insígnia da Medicina.
É muitas vezes considerada um símbolo de fecundidade. Tanto é vista como uma figura benéfica (traduzindo eventualmente o culto residual da Deusa Mãe) como é apresentada como representação do diabo, na tradição judaico-cristã. Nas mitologias europeias chega a ocupar o lugar de um deus polivalente. Umas vezes reina sobre o mundo subterrâneo, o lugar dos mortos. Outras, superintende à música e à magia. Noutros locais, ajuda a cuidar do gado e a preservar a saúde.
                                                                         

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