Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

                  

                 JOSEF MENGELE

 



                           II

Durante a II Grande Guerra, Buenos Aires constituiu o principal ponto de apoio da Alemanha nazi na América do Sul. Os serviços de espionagem alemães tinham estabelecido ali um Quartel-general.

Perón e os coronéis que, através de um golpe de estado, tomaram o poder no ano de 1943, tinham pretendido aliar-se ao Führer. Foi na capital argentina que se organizou, em 1943, o derrube do governo boliviano pró-americano.

Perón fora aluno de oficiais do exército alemão. Admirava os estrategas prussianos. Mais tarde, deslumbrou-se com Mussolini. Durante perto de dois anos, foi adido militar da embaixada argentina em Roma.

                                   "Evita" e Juan Perón

Já durante a guerra, após a invasão-relâmpago da Polónia, visitou Berlim e a frente Leste. Lera o Mein Kampf na juventude. Via a Alemanha erguer-se do novo. Os alemães trabalhavam em boa ordem, ao serviço de um Estado bem organizado.

De regresso à Argentina, elaborou uma visão muito pessoal do conflito que assolava o mundo. A Itália fascista e a Alemanha nazi constituíam uma alternativa válida ao capitalismo e ao comunismo.

       Após a derrota das potências que admirava, Juan Perón pôs-se a fazer profecias. Contava que os soviéticos e os americanos se aniquilassem mutuamente com armas atómicas. Era a oportunidade para um país da América do Sul se afirmar no mundo.

        Por volta de 1940, os argentinos orgulhavam-se de ter mais de metade dos telefones, televisores e linhas férreas da América do Sul. Aproveitando os vastos recursos naturais, eram o povo com melhor nível de vida a sul dos Estados Unidos. Detinham também as taxas mais elevadas de alfabetização.

Existia na Alemanha uma pequena multidão de cérebros desempregados. Com a ajuda deles, a Argentina poderia modernizar-se. Haviam de construir-se barragens, centrais nucleares e mísseis. O seu país natal poderia converter-se numa superpotência.

Para alimentar essa utopia, Perón criou em Buenos Aires o Gabinete de Informação, dirigido por Rudi Freude, filho do rico banqueiro nazi Ludwig Freude, que contribuíra decisivamente para que ganhasse as eleições presidenciais de 1946. Foi organizada uma vasta rede de evacuação de criminosos de guerra europeus. Alguns sectores da Igreja apoiaram-na; era preciso enfrentar o comunismo ateu.

Foi assim que Perón abriu as portas a milhares de nazis, fascistas e colaboracionistas; entraram na Argentina militares, engenheiros, cientistas, técnicos, médicos e muitos criminosos de guerra. As ruas de Buenos Aires encheram-se de reacionários vencidos. Poderiam ser úteis para desenvolver o país.

Encontrava-se ali o rebotalho da Europa. Para além de nazis alemães e de fascistas italianos, havia oustachis croatas, ultranacionalistas sérvios e membros da Cruz Flechada húngara. Juntavam-se-lhes vichyistas franceses, rexistas belgas, falangistas espanhóis e católicos integristas.

 Não era apenas o interesse em mão-de-obra diferenciada que movia o governo peronista. A operação Aktion Feuerland (operação Terra-do-Fogo) consistira no transporte por seis submarinos alemães de um tesouro em divisas, ouro, platina, pedras preciosas e diamantes que foi recolhido por quatro intermediários alemães (incluindo o banqueiro Ludwig Freude) e depositado no Banco Germânico e no Banco Tornquist em nome de Eva Duarte, mais tarde celebrada como Eva Perón. Todos esses intermediários conheceriam mortes violentas, no decurso dos anos seguintes.

Foi para a Argentina que Josef Mengele se dirigiu. Viajou com um passaporte falso que tinha o nome de Helmut Gregor, a bordo do North King, onde seguiam numerosos emigrantes e refugiados. Havia ali italianos, alemães e judeus. O destino juntava sonhos díspares no mesmo convés.

Kurt, o seu passador em Génova, garantira-lhe que um alemão estaria à sua espera no cais, para o conduzir a casa de Malbranc, um antigo agente dos serviços de contraespionagem nazis que lhe daria proteção. Ao desembarcar, Mengele verificou que ninguém o aguardava. Juntou-se a dois calabreses e partilhou com eles um quarto numa pensão barata.

De manhã, tentou contactar Malbranc por telefone, mas não obteve resposta. Chamou um táxi e dirigiu-se a casa do compatriota. Não estava lá ninguém.

Kurt fornecera-lhe outro contacto: era Friedrich Schlottman, alemão proprietário de uma empresa têxtil. Procurou-o. Ausentara-se e deveria tardar alguns dias.

Embora trouxesse dinheiro que lhe permitiria pagar um hotel confortável, continuou na companhia dos calabreses. Entendia-os mal, mas percebeu que eram veteranos fascistas da conquista da Abissínia.

Mengele contava da lista americana dos criminosos de guerra. A esposa, Irene, recusara ir ter com ele à Argentina e ficara na Alemanha com Rolf, o filho de ambos. O pai mal conhecia o pequeno Rolf. Foi informado de que Irene ia tendo as suas aventuras.

Os dólares que trouxera não iriam durar sempre. Precisava de um emprego. Estudou cuidadosamente o mapa de Buenos Aires e forçou-se a aprender cada dia cem palavras de espanhol.

Acabou por se aproximar da revista mensal ultrarreacionária Der Weg e foi conhecendo outros nazis. Aproximou-se de Josef Schwammberger, que dirigira campos de trabalhos forçados e exterminara vários ghettos na Polónia, e de Willem Sassen, um jornalista que se alistara como voluntário num grupo de SS holandeses. Batera-se na frente russa e penetrara no território soviético até ao Cáucaso, onde tinha sido ferido com gravidade. Fora preso na Holanda por colaboracionismo, mas conseguira fugir e tornara-se consultor de relações públicas do ditador Stroessner, do Paraguai.   


                                                                     Hans Rudel

Mengele conheceu mais tarde o coronel Hans Ulrich Rudel, o ás dos ases da Luftwaffe, o piloto mais condecorado da Alemanha. Cumprira 2530 missões, destruíra 532 tanques inimigos e afundara um cruzador e um couraçado. Apesar de ter ficado sem uma perna, continuava a praticar alpinismo. A sua rede de influência iria ajudar repetidas vezes os propósitos de Josef Mengele.

Mengele, que se apresentava como Helmut Gregor, apenas se atrevia a revelar uma parte do seu currículo de vida. Era Hauptsturmfuhrer (capitão). Filiara-se no partido nazi em 1937, e na associação dos médicos nazis e nas SS um ano mais tarde. Iniciara o serviço militar no Tirol, numa unidade de caçadores alpinos. Alistara-se como voluntário nas Waffen-SS, e trabalhara no Gabinete Central de Repovoamento e de Raça na Polónia ocupada. Após o desencadear da Operação Barbarrossa seguira com a Divisão Viking. Estivera colocado na Ucrânia e participara na ofensiva do Cáucaso, na batalha de Rostov do Don e no cerco de Bataisk. Fora agraciado com a Cruz de Ferro de primeira classe.

O tempo foi passando e Mengele adaptou-se a Buenos Aires, que era a cidade mais avançada da América Latina. Tinha dezoito jornais diários, incluindo três em língua alemã. Funcionavam ali quase meia centena de teatros, além do Teatro Colón, dedicado à ópera e à música clássica.

No entanto, a Argentina enfermava de graves problemas. Existiam diferenças profundas entre os pobres, que eram a maioria, e a elite constituída pelos grandes criadores de gado que governavam efetivamente o país. Na capital, quase ao lado dos bairros ricos, pululavam as villas miséria, bairros de lata que abrigavam em condições precárias meio milhão de despojados da fortuna.

Mengele precisava de garantir o seu sustento. Aceitou um emprego como carpinteiro no bairro Vicente Lopez. Não se sabe como obteve as qualificações para o lugar.

Entretanto, conseguiu contactar Gerard Malbranc, que o acolheu na sua luxuosa moradia, situada num subúrbio elegante da capital argentina.

A família que, no pós-guerra, continuava a prosperar em Günsburg, apoiava-o com generosos envios de dinheiro. Mengele associou-se a outros antigos nazis. Compraram, em conjunto, um laboratório farmacêutico. Os negócios começaram a correr bem.

Em 1952, Willem Sassen apresentou Josef Mengele a Adolf Eichmann. Viviam ambos na Argentina com identidades falsas, mas o jornalista designou-os pelos nomes autênticos.


                                         Eichmann no seu julgamento

Os dois criminosos nazis não gostaram um do outro.

Eichmann considerava-se superior e era-o, seguramente, em termos históricos. Fora o grande coordenador do Holocausto e privara com Himmler, Göring e Heydrich. Conhecera demasiados oficiais superiores para ser capaz de dar importância a um mero capitão médico.

Mengele achou-o decadente, gordo e mal-arranjado. Ainda por cima, tinha a mão húmida e não era capaz de dar um aperto firme. Por outro lado, Eichmann vivia pobremente, enquanto Mengele continuava a ser apoiado pela sua próspera família.

De vez em quando, o antigo médico de Auschwitz abria uma parte do coração aos amigos alemães. Gostava de contar como socorrera dois membros da tripulação de um tanque em chamas. Lamentava a sorte, o exílio, a pátria ocupada e as saudades do uniforme.

Josef Mengele teria as suas fraquezas, mas era dado mais ao ódio de que ao amor.

Nunca o dissera a pessoa alguma, mas detestava a mãe, quase desde que deixara de mamar. Com os anos e com o exílio, o seu coração não tinha amolecido. Havia poucas pessoas no mundo a quem dedicasse um carinho verdadeiro. Quando soube da morte do seu irmão Karl, quase se alegrou.

O divórcio de Irene fora uma golpada funda no seu orgulho. Restava-lhe seguir em diante e aproveitar da vida o que ela tivesse para lhe dar.

Em 1953, Perón escapou por pouco a um atentado. A Argentina entrou numa prolongada crise financeira. A inflação agravou-se, reduzindo os salários reais dos trabalhadores. Após a morte de Evita, cujo corpo fizera embalsamar, el líder perdera o norte. Comia demasiado e organizava orgias com raparigas muito novas. Deixou-se engordar. Passara a ser chamado el Pocho, o gordo.

Em junho de 1955, rebentou uma rebelião militar contra o seu governo. Perón ainda aguentou esse primeiro assalto, mas a igreja retirara-lhe o apoio. Não admirava: Juan Perón legalizara o divórcio e a prostituição e permitira a instalação de diversas seitas religiosas no país. Havia padres presos e igrejas saqueadas.

A 16 de setembro, a Marinha de Guerra, liderada pelo almirante Isaac Rojas, bloqueou Buenos Aires. Perón demitiu-se e refugiou-se no Paraguai. Depois de algumas semanas de confusão, o poder ficou nas mãos do general Aramburu que procurou riscar da memória dos argentinos os inúmeros testemunhos do consulado de Perón.

Com o eclipse do seu protetor, os nazis perderam o conforto de que gozavam na Argentina. Muitos começaram a pensar instalar-se no Paraguai.

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