Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011


        A CEGUEIRA DE CAMILO

     Camilo Castelo Branco sofreu de neuro-sífilis. Para além de problemas locomotores e de diplopia, desenvolveu  atrofia óptica  bilateral que o acabaria por levar à cegueira e ao suicídio. Foi observado por alguns dos melhores oftalmologistas do seu tempo, como Manuel Lopes Santiago, Augusto Sebastião Guerra, Pedro Adriano Van Der Laan, Gama Pinto e outros.
     Terá sido o próprio sofrimento que o inclinou a escrever sobre um cego (O cego de Landim, em Novelas do Minho) e sobre um oftalmologista (O olho de vidro, romance baseado na vida do médico setecentista Brás Luís de Lima, autor de Portugal Médico).
     Existem diversas obras sobre a cegueira de Camilo. Camilo e os médicos, de Maximiano Lemos, e A cegueira de Camilo, de Gomes Costa Filho, serão as mais conhecidas. No entanto, o próprio escritor foi registando por escrito a evolução da sua doença.



    O mal de olhos de Camilo Castelo Branco manifestou-se em 1865, ou mesmo antes. 
     Em 28 de Abril de 1866, Camilo confessou, em carta a José Barbosa e Silva:
        Foi muito grave o prognóstico da minha doença de olhos; mas hoje está averiguado que é efeito de venéreo inveterado. Sofro há 4 meses uma diplopia (visão dupla). É horrível para quem não tem outra distracção além da leitura. Tarde será o meu restabelecimento.

    Em 6 de Junho de 1878, escreveu ao visconde de Ouguela:
     Tenho de volta de mim catorze luzes para ver o que escrevo. Desde que o Sol se esconde estou cego. O pior é que escrevo com um dos olhos fechados para não ver tudo em duplicado.

      Apontou, a 7 de Fevereiro de 1886:
     Os jornais tratam da minha saúde fantasiosamente, como os médicos. A minha enfermidade, ataxia locomotora, não é das que retrocedem, nem sequer estacionam. Hoje ainda me sustento de pé, com dificuldade; amanhã não poderei falar das pernas senão como retórica e luxo de anatomia. A visão segue as perturbações medulares. Tenho cegueiras completas quando passo de um quarto luminoso para outro mal alumiado. O que eu vejo bem é a morte a aproximar-se, e saúdo-a risonhamente, porque a vida do meu filho Jorge também está por pouco.

     Voltou a queixar-se, a 22 de Novembro de 1886:
      Os incuráveis padecimentos que se vão ampliando todos os dias levam-me ao suicídio – único remédio que lhes posso dar. Rodeado de infelicidades de espécie moral, sendo a primeira a insânia de meu filho Jorge e a segunda os desatinos de meu filho Nuno, nada tenho a que me ampare nas consolações da família. A mãe destes dois desgraçados não promete longa vida; e, se eu pudesse arrastar a minha existência até ver Ana Plácido morta, infalivelmente me suicidaria.

     Escreveu, a 13 de Março de 1988:
   Aqui esteve quatro horas o Dr. Gama Pinto, uma cara inteligentíssima revelando um excelente coração. Conheceu rapidamente o meu deplorável estado, e fez-me um bom discurso para me dar paciência e resignação com a cegueira.
     Caíram todos os meus castelos no ar quando o médico, em vez de combater a minha cegueira, tratou de me armar de paciência para tolerá-la. Fez-se na minha alma uma noite escura, que nunca mais terá aurora.

     Lamentou-se, a 22 de Junho de 1888:
     Cada dia, pior. A agudeza da vista central, que ainda tinha em Lisboa, desapareceu. Suspendi tudo que era remédio. Endoideço, porque vou cegar inteiramente.

     A 27 de Novembro de 1888, começava a desesperar:
     Não dou um passo sem que me conduzam, não conheço ninguém, apenas distingo vultos ao aproximarem-se.

     Ainda escreveu, a 29 de Agosto de 1889:
     Atormentam-me os frenesins tabéticos que me não deixam sossegar de noite, e muito pouco de dia. Minha mulher acompanha-me neste calvário e verga ao peso da cruz enorme.

     A 21 de Maio de 1890, Camilo escreve ao oftalmologista Edmundo de Magalhães Machado, de Aveiro, rogando-lhe que o salve da cegueira. O médico desloca-se a Seide a 1 de Junho. Reconhecendo nada ser capaz de fazer pela visão do escritor, diz palavras de circunstância. Enquanto Ana Plácido acompanhava o médico à porta, Camilo suicidou-se, disparando um tiro de revólver na cabeça.


Referências: além do meu livro Eu, Camilo, este artigo apoiou-se em Camilo Castelo Branco – Memórias fotobiográficas, de Viale Moutinho, e no Dicionário de Camilo Castelo Branco, de Alexandre Cabral.

Etiquetas: Camilo Castelo Branco, História da Medicina.


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