Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

domingo, 4 de setembro de 2011

CURSOS EUROPEUS DE NEUROCIRURGIA

Nos primeiros anos da década de 70, um grupo de ilustres neurocirurgiões europeus agrupados na E.A.N.S. (Associação Europeia de Sociedades Neurocirúrgicas) animou um projecto de ensino pós-graduado que ajudaria a alargar as relações internacionais no âmbito da Especialidade. O primeiro Curso da E.A.N.S. efectuou-se em Bruxelas, em 1974.
A iniciativa não se limitava ao velho continente. Participaram, logo de início, neurocirurgiões em formação provenientes de alguns países do Magrebe e, pouco tempo depois, também de Israel. Recorde-se que, em 1974, a União Europeia se chamava Comunidade Económica Europeia e contava apenas com nove países membros. Destes, o Reino Unido, a Irlanda e a Dinamarca tinham aderido no ano anterior. Pretendia-se, a nível científico, preceder o alargamento político no espaço europeu. A Neurocirurgia deu o contributo que estava ao seu alcance e impulsionou a modernização da Especialidade em diversos países periféricos, como o nosso. Ainda no tempo da chamada “cortina de ferro”, em 1976, foi possível realizar o terceiro curso na cidade universitária húngara de Pecs. 
O francês Bernard Pertuiset, o inglês R. T. Johnson, o alemão Hans Pia e o belga Jean Brihaye constituíram o núcleo duro que impulsionou a iniciativa. 
O projecto foi pensado de forma realista. Assentou em cursos intensivos anuais com uma semana de duração. Para reduzir os custos, utilizaram-se as instalações universitárias onde os docentes trabalhavam. Os internos eram geralmente alojados em residências de estudantes, por altura das férias. O preço das inscrições era acessível.

Manchester, 1978. Reconhecem-se, na primeira fila, Brihaye, Johnson, Pertuiset, Pia e Isamat.

Com alguma heterogeneidade e um ou outro caso de flagrante improviso, as aulas eram bem preparadas. Contaram com a participação interessada e gratuita de muitos dos melhores neurocirurgiões europeus. Alguns deles aliavam ao saber excelente capacidade de comunicação. Os cursos perduram até hoje.
O meu primeiro Director de Serviço, António Vasconcelos Marques, conhecido por ter operado Oliveira Salazar, ficou para a História devido à criação, em Lisboa, de uma unidade pioneira de tratamento de traumatizados crânio-encefálicos. Dava-se melhor com a “alta roda” da Neurocirurgia mundial do que com alguns Colegas portugueses e foi orador em vários dos primeiros cursos.
Vasconcelos Marques, senhor de uma personalidade vincada, viveu a vida de uma forma muito pessoal. Começava a trabalhar depois do almoço e arrastava a sua actividade pela noite dentro. De manhã, que era quando, naquele tempo, os médicos portugueses se ocupavam nos hospitais públicos, dormia. Teve muitos amigos e inimigos. Pessoalmente, recordo-o com saudade.
Por influência dele, foram internos e jovens especialistas do Serviço de Neurocirurgia dos Hospitais Civis de Lisboa que constituíram o primeiro grupo português a frequentar os cursos europeus da Especialidade.

                                           Bruxelas, 1974

As aulas começavam de manhã cedo, geralmente às 8.00 horas. Vasconcelos Marques era pontualíssimo. Dormia olimpicamente na primeira fila da assistência. Quando o orador se calava, abria os olhos e fazia uma pergunta pertinente. Vemo-lo nesta fotografia ao lado de Johnson e do nosso grupo inicial: eu, o Magro Jacinto, o Carlos Maurício e o Costa Oliveira, que já nos deixou. Falta aqui o Oliveira Antunes. Estará sentado lá para trás.
Anos mais tarde, quando o Maurício foi Presidente da Sociedade Portuguesa de Neurocirurgia e me nomeou Coordenador da Comissão de Ensino, reunimos um grupo valioso de colaboradores e demos início aos cursos anuais da Sociedade Portuguesa de Neurocirurgia. Seguiram inicialmente o modelo europeu e atingiram um nível científico interessante. Começaram em 1996 e ainda continuam. Colaborei na organização dos quatro primeiros. O próximo (XV) realiza-se em Outubro, em Montargil.

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