Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011


AMATO LUSITANO – RELATO DE UMA TREPANAÇÃO

Já falei aqui de João Rodrigues, ilustre médico português de fé judaica.  Nasceu em Castelo Branco em 1511. Perseguido pela “Santa” Inquisição, deixou a Pátria e exerceu a profissão em diversas cidades europeias. Morreu em Salónica, em 1568. Ficaria conhecido na História da Medicina com o nome de Amato Lusitano.
Firmino Crespo traduziu as Centúrias para português (julgo que do latim original) e escreveu o prólogo da edição. Eis um excerto da sua introdução:

Se elementos da farmacologia, então usados seriamente, hoje nos podem despertar sorrisos, pela ingenuidade deles, é obrigatório não nos esquecermos da distância do tempo. Certamente que também alguns processos clínicos ou drogas medicinais hoje em voga poderão espantar ou fazer sorrir os cientistas e médicos de anos vindouros.


Primeira centúria – Cura IV

Um militar que era soldado do imperador, em Caieta, de idade viril, robusto, forte, de natureza melancólica, era atormentado por uma tão grande dor de cabeça que parecia que os olhos lhe saltavam fora. Depois de ter consultado médicos de Nápoles e de Roma, cuja ação e conselho de nada lhe aproveitaram, veio até Ferrara, já passado um ano desse que vinha a ser atormentado por tal dor.

Depois de diagnosticar uma "sarna gálica" e de lhe administrar os medicamentos que julgou apropriados, o doente não melhorou.

O militar já estava aborrecidíssimo deste trabalho e cansado duma doença tão cruel, e de tomar tantos medicamentos que nada tinham feito. Por minha parte, matutando sempre no remédio para doença tão atroz, subitamente penso que só alcançaria a saúde ou a cura se lhe fosse aberta a cabeça. De facto, era minha convicção de que se corrompera o cérebro, donde nasciam as dores tão horríveis e cruéis. Estas dores provinham profundamente, do sínciput, abrangendo principalmente os olhos e a região deles.
Mandado logo vir um cirurgião e rapado o cabelo por meio de uma navalha de barba, mando-lhe abrir a cabeça, precisamente no sítio em que a dor se apresentava maior. O corte era grande, penetrando até ao crânio e feito por duas linhas que se cruzavam reciprocamente ao meio. No dia seguinte, mando que perfurem com a primeira e segunda lâminas da navalha até à meninge dura. Com esta operação, começou a dor a abrandar. Passados dias, mando excisar alguns ossos do mesmo crânio. Tirados eles, o militar começou a sentir-se melhor, a ponto de ser de novo restituído à saúde com a ingestão dum cozimento de guaiaco. Curamos também a perfuração ou secção do crânio como quaisquer outras chagas.

Esta centúria merece-me dois comentários. Em primeiro lugar, pouco parece ter evoluído a Medicina do período neolítico até ao século XVI, no que respeita às indicações terapêuticas das trepanações, se pusermos de lado as intenções mágicas. Por outro lado, é bem claro o papel dominante do físico frente ao cirurgião, que se limita a cumprir ordens. Os nossos antepassados médicos eram uns senhores. Até sabiam latim… Os nossos antepassados cirurgiões nasceram na classe dos barbeiros. Julgo conhecer tentativas de impor essa relação de trabalho, no século passado, em especialidades cirúrgicas emergentes.


Referências:
Centúrias de Curas Medicinais. Amato Lusitano. Tradução portuguesa. Centro editor livreiro da Ordem dos Médicos, Lisboa, 2010.

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