Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011


   O MEU TEMPO DE ESTUDANTE

     Eu tinha boa cabeça e pude ser o melhor aluno do meu Liceu sem me esforçar por aí além. Era minimamente responsável e sentia a necessidade de estudar mais e melhor. Tardei, contudo, a concretizar esses objetivos. A verdade é que eu queria ser “marrão” e nunca fui capaz de o conseguir.
     Há alguns anos, a minha filha mais velha, médica também, esteve alguns meses com a AMI em S. Tomé. De volta, contava que os naturais da terra eram preguiçosos e explicava por quê: quase nem era preciso sairem do carreiro para estenderem a mão e colherem bananas de um cacho; entravam na água, lançavam a rede mesmo ali ao pé e obtinham uma refeição para a família. Provavelmente, quem precisa apenas de molhar os tornozelos ou os joelhos para conseguir uma boa pescaria nunca se fará grande navegador.
     Eu fixava objetivos e, de modo geral, cumpria-os, ainda que adiasse habitualmente para Outubro os exames mais difíceis.  
   Como outros cábulas, aprendi cedo o que era indispensável para passar de ano. Na Anatomia Descritiva, por exemplo, quem se contentava em chegar aos treze ou catorze valores escusava de estudar o aparelho urogenital. Eu até estava a fazer um bom exame quando o velho professor Maximino me mandou descrever a loca prostática. Nunca tinha ouvido falar de tal coisa. O meu “ Ãn?” foi tão espontâneo e sentido que a assistência desatou a rir. Saí de lá com treze.
     No ano seguinte, estudava, por vezes, num café com um colega que hoje é Professor Catedrático. Quando fomos a provas, eu obtive um treze e ele um catorze. Não ficou satisfeito e declarou:
     − Entre o meu catorze e o teu treze há um abismo de sabedoria!
     Haveria...
     Julgo que em todo o lado há pessoas que ganham tanto como as outras mas que fazem mais e melhor. O prestígio da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra assentava na qualidade de meia dúzia de professores. Renato Trincão, o “Trinquinhas” era um deles. Ensinava Anatomia Patológica.
   Eu tinha boa memória visual e engracei com o microscópio. No exame prático, o Trinquinhas entusiasmou-se com a minha prova e fez-me elogios rasgados. Não me deslumbrei. Sabia o que me esperava. Tinha um conhecimento razoável dos dois primeiros volumes da sebenta. O terceiro estava reservado a quem ambicionava mais de quinze valores. O meu ficou por abrir. Poucos dias depois, lá veio a prova oral. O professor Renato Trincão julgava ter acabado de descobrir um grande aluno e interrogou-me apenas sobre a matéria que constava do terceiro volume. Para desconsolo do Mestre, não fui capaz de responder a qualquer pergunta. Ainda assim, deu-me quinze valores.


     Um rapaz cresce e faz-se homem. Uns amadurecem mais cedo e outros mais tarde. Nas duas semanas que se seguiram ao exame de Patologia Médica, no quinto ano, continuei a estudar durante um par de semanas, estando já em férias. Tinha finalmente dado conta de que o saber era imprescindível. Um ou dois anos mais e teria os doentes à porta do consultório. Ai de mim, se não fosse capaz de os tratar!
     Acabei o curso com média de quinze valores, o que me classificava entre os quinze ou vinte melhores de um curso de cerca de cem. Soube-me a pouco, mas a verdade é que eu não merecia mais.
     Com o tempo, lá fui ganhando hábitos de trabalho e de estudo organizado. Mesmo assim, não me livrei, até hoje, de um pesadelo que se vai repetindo, com pequenas variações: o exame é daqui a dias e eu não comecei a estudar. Muitas das vezes, ainda nem sequer comprei a sebenta... 

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