Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011



                        CIRURGIA PROTELADA


Por volta de 1983, 1984, a cirurgia dos aneurismas ainda tinha má reputação. Na minha equipa, apenas eu e o Carlos Maurício a executávamos com alguma regularidade.
Quem vem de longe chega mais cedo. Não é um provérbio chinês, mas poderia ser. Como sempre morei em Setúbal, era habitualmente dos primeiros médicos a entrar no Serviço. As anestesistas sabiam que eu não me atrasava e iam adiantando o trabalho.
Certa manhã, ao entrar na autoestrada, o meu carro foi abalroado por outro automóvel e capotou. Percebi que tinha passado para a faixa de rodagem de sentido contrário e receei um novo choque. Lembro perfeitamente ter estado à espera que a luz se apagasse.
A luz não se apagou e não me doía nada. Apalpei-me e achei que estava inteiro. O carro tombara de lado. Desapertei o cinto de segurança, abri a porta da direita, subi e saltei para o chão.
Juntou-se rapidamente à minha volta um pequeno grupo de pessoas. Uma viatura da GNR passou por ali e parou. O militar que conduzia conhecia-me. Comentou, ao ver-me bem disposto:
− O Senhor Doutor é corajoso!
Ri-me. A coragem não era chamada para ali. Eu estava satisfeito por continuar vivo e íntegro.
O condutor do automóvel que provocara o acidente era muito simpático. Responsabilizou-se e fartou-se de pedir desculpa.
Nesse tempo, ainda não havia telemóveis. Só depois de ver rebocar o meu carro (que foi direitinho para a sucata) é que me lembrei de falar para o Bloco Operatório a dizer que não tinha possibilidades de chegar aos Capuchos a tempo de operar. Passava muito das dez horas da manhã.
O Maurício, que não conhecia o doente, não quis meter a foice em seara alheia. O Senhor Manuel foi acordado. Não foi fácil convencê-lo de que não tinha sido operado. Pediu um prazo para recuperar da ansiedade, antes de voltar ao Bloco.
Operei-o, semanas depois. Tudo correu bem. Até morrer, de outra doença qualquer, o Senhor Manuel visitou-me com regularidade. Pedia a minha opinião sobre cada passo da sua vida. Lembro-me de se ter vindo aconselhar acerca do casamento da filha.
Se viajarem para os lados de Setúbal e virem um velhote de chapéu a conduzir uma Diane branca fujam, pois o homem, ou o fantasma dele, apesar de ser muito simpático é um perigo a conduzir.


A imagem é do clássico livro de técnica operatória de Ludwig Kemp

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