Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

domingo, 6 de abril de 2014

A MINHA EXPERIÊNCIA COMO MÉDICO DO

  NAVIO HOSPITAL GIL EANNES



                          II
         O PRIMEIRO GIL EANNES
    
A história do primeiro Gil Eannes começou em 1916. Os submarinos alemães estavam a infligir pesadas perdas à marinha mercante britânica. Os ingleses pretendiam apoderar-se das várias dezenas de cargueiros alemães refugiados nos nossos portos. Em março, os navios foram requisitados e a Alemanha declarou guerra a Portugal. 
     Alguns navios ficaram cá. Um deles chamava-se Lahneck. Media 85 metros de comprimento e era capaz de transportar 2.000 toneladas de carga.



O cargueiro alemão mudou de nome e foi transformado em cruzador auxiliar da Marinha portuguesa. Durante a guerra, foi usado no transporte de tropas. Serviu depois a carreira dos Açores. 
O bacalhau ganhara um lugar importante na alimentação dos portugueses. No interior do País, que não tinha acesso ao peixe fresco, constituía uma das fontes mais baratas de proteínas. Em especial, a região norte consumia uma parte importante do bacalhau seco pescado ou importado. O Poder estava interessado em alcançar a autossuficiência nacional neste produto.


Os pescadores portugueses que se dedicavam à pesca do bacalhau trabalhavam em condições difíceis. Ocorriam muitas doenças e algumas mortes.
Era necessário um navio que apoiasse a frota em lugar de cada um interromper a pesca e ir a terra sempre que necessitava de água, carvão, isco, sal ou alimentos frescos. Fazia falta, sobretudo, a assistência médica. Seria importante o exame médico dos pescadores antes do embarque, mas a prevenção tardou a ser efetuada. A tuberculose pulmonar era frequente entre os pescadores. 

                                  SAINTE JEANNE D`ARC
Os franceses tinham um navio hospital, o Sainte Jeanne d´Arc, que acompanhava a sua frota pesqueira e prestava pontualmente apoio a pescadores portugueses doentes. Os franceses ajudavam, mas queixavam-se das despesas que tinham de suportar e achavam que os armadores portugueses deveriam participar no financiamento.
A marinha francesa dispunha de navios hospitais de assistência à pesca longínqua desde o fim do século XIX. O primeiro foi o Saint Pierre, lançado ao mar em 1886.


Em janeiro de 1922, a Associação dos Oficiais da Marinha Mercante de Ílhavo dirigiu um requerimento ao Ministro da Marinha. Lembravam que a pesca do bacalhau ocupava mais de 50 navios portugueses que empregavam cerca de 3.000 homens.

             Lugre de três mastros ( final do sec. XIX)

Pediam que uma das várias embarcações nacionais disponíveis fosse adaptada a navio hospital e acompanhasse a nossa frota bacalhoeira até aos Bancos da Terra Nova.
O governo levou a petição a sério. Em 1917, os capitães dos navios bacalhoeiros tinham feito diversas exigências aos armadores. O conflito laboral arrastou-se e, nesse ano, os lugres não partiram para a pesca do bacalhau. 
   O cruzador Carvalho Araújo, que levava um médico a bordo, foi destacado para a Terra Nova, na campanha de 1923.

CARVALHO ARAÚJO

Decidiu-se então adaptar o Lahneck/Gil Eannes a navio de assistência. Foi à Holanda fazer as transformações necessárias e partiu para a Terra Nova em maio de 1927. Dispunha de médico, farmácia e enfermeiro. Era muito mais do que um navio hospital. Fornecia água, carvão e sal aos navios de linha. Trazia de terra animais para abate, melhorando a alimentação dos pescadores, sempre deficitária em produtos frescos antes da introdução das instalações frigoríficas, quase três décadas mais tarde. Como saía depois dos navios de pesca, transportava o correio entretanto enviado. Além disso, tinha serviço telegráfico.


A viagem inaugural não teve seguimento imediato e, em 1928, o Gil Eannes foi usado no transporte de presos políticos para a Guiné e para Angola. Regressaria à Terra Nova nos dois anos seguintes. Foi, depois, utilizado para transportar guarnições para Macau e presos políticos para Timor. Fez viagens para a Inglaterra até 1936.
Nesse ano, foi lançado um programa de renovação da frota pesqueira portuguesa, tendo sido melhorados ou construídos perto de 50 navios. A partir de 1940, passariam a construir-se sobretudo arrastões.
Em 1937 foram instituídas as Casas dos Pescadores, integradas na organização cooperativa do trabalho marítimo. Tinham essencialmente funções de previdência social, de acordo com os ideais da Democracia Cristã. Salazar, enquanto estudava em Coimbra fora dirigente do Centro Académico de Democracia Cristã (C.A.D.C.). Anos mais tarde, teve o cuidado de esclarecer que a ênfase estava na palavra «cristã» e não em «democracia». 
    Algum tempo depois, a Sociedade Nacional dos Armadores de Bacalhau transformou-se em Grémio.
Foi, significativamente, a partir do ano de 1937 que o Gil Eannes passou a servir regularmente a frota bacalhoeira, após um intervalo de 10 anos. Navegou integrado na nossa Marinha de Guerra até 1941. Em 1942 foi desarmado e entregue à Sociedade Nacional de Armadores de Bacalhau. Estava-se em plena guerra. 


Em agosto de 1942, os serviços secretos britânicos suspeitaram de que tanto o arrastão Álvaro Martins Homem como o Gil Eannes estavam a comunicar aos alemães, via rádio, a posição de navios aliados com que se cruzavam. Os ingleses pensaram em afundar o Gil Eannes, mas reconsideraram. Intercetaram o nosso navio hospital na viagem de regresso a Lisboa. Prenderam e levaram com eles o alegado espião Gastão Ferraz, operador de rádio.

Fontes: Gil Eannes. Câmara Municipal de Viana do Castelo. Comissão Especial pró Gil Eannes, 1997.
Fotografias: Revista Oceanos nº 45, Internet, arquivo pessoal.


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