Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014


      COMEMORAÇÕES DO V CENTENÁRIO 
      DO NASCIMENTO DE ANDRÉ VESÁLIO

  Realizou-se em Setúbal, a 25 de outubro, uma sessão comemorativa do V centenário do nascimento do grande anatomista André Vesálio, considerado pela generalidade dos médicos o criador da anatomia moderna. 
  A iniciativa pertenceu ao Dr. Joaquim Barradas e a organização ficou a cargo de nós dois.  
   Há algum tempo, divulguei neste espaço alguns pequenos trabalhos sobre  a obra anatómica de da Vinci. Recentemente, desenvolvi-os e completei-os. Considerei que seria injusto, na homenagem a Vesálio, ignorar o grande anatomista que o precedeu. Foi dele que falei na minha conferência.

                     Retrato atribuído a Francesco Melzi

         LEONARDO DA VINCI  



 O PRIMEIRO GRANDE ANATOMISTA

                            I

                                      
O artista que retratou Ginevra d`Benci 



produziu também a primeira representação anatómica realista dum  corpo feminino.



O pintor que criou este São João Baptista efeminado que mais parece Maria Madalena antes de se arrepender e deixar a profissão, 



desenhou também armas de fogo de muitos canos que fazem lembrar os lançadores múltiplos de foguetes GRAD que os russos fabricam desde a II guerra mundial.





     Escreveu-se há muito que Leonardo da Vinci foi o espírito mais iluminado de toda Humanidade. Comparações com outros grandes vultos das ciências e das artes são difíceis de fazer e têm interesse reduzido. No entanto, bastariam os seus trabalhos anatómicos para lhe garantirem fama imorredoura.



Quem observa as gravuras anatómicas de Leonardo da Vinci admira-se por ele não ocupar um lugar de relevo na História da Medicina. Infelizmente, boa parte do seu trabalho científico perdeu-se.
Outra parte seria publicada apenas século e meio após a sua morte e ainda assim integrada no Trattato della Pittura. Por ironia do destino, o primeiro grande anatomista em nada influenciou o saber médico.



 Da Vinci nasceu em 1452. Estava-se em plena Renascença. Aprendeu no estúdio do escultor e pintor florentino Andrea del Verrocchio, cuja obra mais conhecida é a estátua equestre do condottieri Bartolomeu Colleoni.



 Sabe-se que Mondino dei Luzzi, dissecou dois cadáveres de mulher na cidade de Bolonha e, em 1316, redigiu um pequeno tratado de anatomia. Mondino foi o precursor da moderna anatomia humana. Nesta gravura é clara a relação de trabalho da época. Um cirurgião auxiliar praticava a dissecação, enquanto o mestre falava do alto da cátedra.


 Outros anatomistas, como Guido da Vigevano dissecaram cadáveres de enforcados.
Além de Vesálio, ou antes dele, houve anatomistas que praticaram disseções sem a intervenção de um cirurgião auxiliar. É o caso de Berengário de Carpi (1460-1530)  e Giambattista Hanani (1515-1579).
 Leonardo mudou-se de Florença para Milão em 1481 ou 1482.
Milão possuía um dos melhores centros médicos de Itália, o Ospedale Maggiore. A dissecção humana era permitida desde 1480 numa das suas secções, o Ospedale del Brolo.



Leonardo realizou provavelmente a sua primeira dissecção humana em 1487. Nos trabalhos produzidos anteriormente, reconhece-se, por vezes, a anatomia animal adaptada às formas humanas.
O artista sabia pouco latim, o que o limitava no aspeto cultural. Os primeiros estudos de Leonardo foram influenciados pelas ideias correntes no seu tempo. 




 É famosa a sua representação do «Homem Vitruviano», inscrito num quadrado e num círculo, um símbolo da correspondência matemática entre microcosmo e macrocosmo e da analogia entre a estrutura do homem e a do universo. O Zodíaco, a esfera exterior do Universo, governava a anatomia externa do homem; os planetas influenciavam o funcionamento das vísceras; a lua, o planeta mais interior, controlava tanto os movimentos das marés como dos líquidos do organismo, os humores.
Leonardo terá dissecado entre vinte e trinta cadáveres, nos hospitais de Milão e Roma.


Leonardo da Vinci não foi o primeiro pintor renascentista a interessar-se por conhecimentos anatómicos. Consta que, vinte anos mais cedo, o florentino Antonio del Poillaiuolo dissecou alguns cadáveres.



O conhecimento da anatomia das partes superficiais do corpo humano é bem visível na obra de Miguel Ângelo, 23 anos mais novo do que Leonardo. Miguel Ângelo terá dissecado cadáveres no hospital do Espírito Santo, em Florença. Planeou mesmo fazer um atlas de anatomia juntamente com Realdo Colombo.



Quando, no fim do século, Milão foi tomada pelos franceses, Leonardo passou por Veneza e voltou a instalar-se em Florença, onde começou o período mais fecundo da sua vida. 
Os desenhos anatómicos produzidos na idade madura assentaram já na observação cuidada de corpos humanos dissecados. Eis uma citação de Leonardo:

            A MINHA REPRESENTAÇÃO DO 

                      CORPO HUMANO SERÁ PARA TI 
                      TÃO CLARA COMO SE TIVESSES 
                      O PRÓPRIO CORPO DIANTE DE TI.

   Os conhecimentos do anatomista provêm dum esforço de compreensão visual dos factos. Os textos resultam pobres, face à exatidão das imagens.



Já antes do Renascimento pintores e escultores valorizavam, acima de tudo, a representação da figura humana. É nessa perspectiva que se deve situar o interesse inicial de Leonardo da Vinci pelos estudos anatómicos.

  No entanto, a obra de da Vinci foi muito para além da anatomia chamada artística, a anatomia superficial, que interessa diretamente a pintores e escultores: o estudo dos músculos e tendões cujo relevo se nota sob a pele, e se modifica com os esforços e posições, as transformações impostas pela idade e por algumas doenças e ainda a fisionomia, que trata das expressões corporais induzidas pelas emoções.
O que começou por uma necessidade prática de conhecer o corpo humano para melhor o desenhar ou esculpir, depressa foi desviado por uma intensa curiosidade para o esforço de compreender o funcionamento do nosso organismo. 

Bibliografia
Leonardo da Vinci - Desenhos e Esboços, Frank Zollner, TASCHEN. 
Os Apontamentos de Leonardo da Vinci, organizado por H. Anna Suh, Parragon Books, 2007.

Leonardo da Vinci – Anatomia humana. Masson-Salvgat Medicina
                                  
                                                                                                                                      (Continua)

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