Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014


           LEONARDO DA VINCI

  O PRIMEIRO GRANDE ANATOMISTA

                        III


Como seria de esperar de um pintor que regista as suas reflexões a luz, a sombra, a perceção visual e a perspetiva ocupam muitas páginas dos escritos de da Vinci. Os seus apontamentos refletem os conhecimentos de ótica do seu tempo. Leonardo esforçou-se por compreender a fisiologia da visão, mas ainda era cedo para o conseguir. 
O artista considerava a visão o mais importante dos sentidos e preocupava-se com a transmissão das impressões visuais. 


     Escreveu:  Diz-se que as donzelas têm o poder, através do olhar, de atrair o amor dos homens para elas próprias. 
O desenho de um dos seus cortes de crânio e cérebro mostra os nervos óticos a dirigirem-se para uma sucessão de três ventrículos. Os sinais seriam primeiro recebidos e depois interpretados. Uma parte deles seria, a seguir, memorizada. Julgava-se, ao tempo, que os ventrículos cheios de líquido eram o suporte da atividade cerebral. 


Vejamos agora esta representação do cérebro seccionado sagitalmente e rebatido para os lados. Há uma evolução extraordinária em relação ao esboço anterior. Leonardo teve uma ideia simples para estudar os ventrículos: encheu-os com cera quente. Depois de arrefecida, removia o cérebro envolvente, obtendo um molde sólido do sistema ventricular.


Vêm-se os ventrículos cerebrais, também observados de perfil, e a base do cérebro, com as meninges envolventes. 


 O quiasma ótico tinha sido já descrito por Mondino. Leonardo ilustra os olhos, os nervos óticos, o quiasma, os nervos olfativos, o motor ocular comum, o motor ocular externo e as divisões oftálmica, maxilar superior e mandibular do trigémeo. Note-se que, dos nervos oculomotores, apenas o patético não é representado.


Este avanço extraordinário no conhecimento anatómico não teve, nem poderia ter repercussão nas ideias de Leonardo sobre o funcionamento cerebral.


  O artista atreveu-se a desenhar uma cópula humana em corte aproximadamente sagital. Trata-se de uma compilação de ideias e de imagens, uma espécie de síntese do que Leonardo leu e observou. Será dos trabalhos de Leonardo da Vinci que contêm mais incorreções, mas não deixa de suscitar assombro. O útero é representado ligado à medula espinhal. Da Vinci inventou um canal que liga diretamente o coração aos testículos e outro que estabelece uma conexão entre o útero e as mamas. Curiosamente este trabalho, um dos mais imperfeitos do anatomista, foi dos primeiros a ser gravado em madeira e impresso.


 Por volta de 1510, Leonardo desenhou fetos humanos. Seria extraordinariamente difícil conseguir cadáveres de mulheres grávidas. O mais provável é que tenha dissecado embriões resultantes de abortos, projetando os seus achados para um período mais avançado da gestão.
 

 Este desenho de um feto no útero tem várias inexatidões. O ovário não se encontra na sua posição normal e a placenta representada é provavelmente de vaca. 


Os seus últimos estudos anatómicos foram dedicados ao coração. Leonardo desenhou as artérias coronárias.


 Identificou as aurículas, descreveu os movimentos de sístole e de diástole e compreendeu, antes de ninguém, o mecanismo de abertura e encerramento das válvulas do coração. Contudo, preso às ideias antigas segundo as quais as artérias funcionavam independentemente das veias e conduziam o fluxo vital, não foi capaz de ir mais além no entendimento da circulação sanguínea.
      Os grandes artistas eram sustentados por mecenas. Durante a sua segunda estadia em Milão, Da Vinci foi protegido pelo governador francês Charles d`Ambroise. 
      D´Ambroise faleceu em 1513. No final desse ano, Leonardo aceitou a proteção de Giuliano de Medici, o papa Leão X, e mudou-se para Roma com os seus discípulos. Realizou algumas dissecções humanas do Ospedale di Santo Spirito.


         Leonardo não se deu bem na corte pontifícia. Estaria a envelhecer. Por essa altura, Miguel Ângelo e Rafael eram mais solicitados do que ele para a feitura de obras de arte.
        Ocupou-se da drenagem dos pântanos de Pontino, a sul de Roma.
        Dedicava-se também a experiências estranhas e foi acusado de práticas sacrílegas. O papa Leão X proibiu a sua entrada no hospital do Espírito Santo. Terminava a carreira anatómica de Leonardo Da Vinci.
          Estava-se em 1514. André Vesálio nasceu no último dia desse ano.

         

      Leão X morreu em março de 1516 e Leonardo aceitou o convite de Francisco I para a corte francesa. Trabalhou num projeto de canalização em Sologne, a sul do rio Loire, e na planta de um palácio em Romorantin. Terá deixado de pintar, embora ainda produzisse alguns desenhos. Segundo António de Beatis, secretário do cardeal Luís de Aragão, seria um homem já velho, com uma hemiparésia direita de predomínio braquial. Não foi referida disfasia.


  Leonardo tinha a ambição de publicar um tratado de anatomia, «em benefício da arte» e não da Medicina. Diz ter composto cento e vinte capítulos.
Terá feito mais de 750 desenhos com anotações.

 Muito do seu trabalho anatómico perdeu-se. Da Vinci morreu em 1519. Deixou os desenhos ao seu discípulo e herdeiro Francesco Melzi. 



 Algumas gravuras terão sido copiadas por Alberto Durer, em 1517. Os trabalhos anatómicos de da Vinci terão influenciado a Anatomia de Johannes Dryander, de Marburg, publicada em 1537 e considerado o primeiro livro de neuroanatomia.
 Após a morte de Melzi, ocorrida por volta de 1570, a maior parte da coleção foi adquirida pelo escultor Pompeo Leoni, que levou alguns volumes de desenhos para Madrid. Morto Leoni, em 1609, um desses volumes foi comprado por Thomas Howard, conde de Arundel, e foi ter à coleção Real de Windsor.



O que chegou até nós apenas foi divulgado no começo do sec. XX. A Biblioteca Real do Castelo de Windsor conserva a maior coleção de desenhos de Leonardo da Vinci existente no mundo.


Se as ilustrações em que Leonardo reproduziu os vários planos de corpos humanos dissecados tivessem sido conhecidos pela comunidade médica ainda em vida do artista, ou pouco tempo após a sua morte, a obra de André Vesálio resultaria parcialmente ofuscada. 
O que é é. A História não se muda. A grandeza do espírito de Leonardo da Vinci é reconhecida há mais de cinco séculos, mesmo amputada do seu trabalho anatómico.   





BIBLIOGRAFIA

Leonardo da Vinci - Desenhos e Esboços, Frank Zollner, TASCHEN. 
Os Apontamentos de Leonardo da Vinci, organizado por H. Anna Suh, Parragon Books, 2007.
Leonardo da Vinci – Anatomia humana. Masson-Salvgat Medicina.

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