Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

terça-feira, 19 de abril de 2016


A PESTE BUBÓNICA DE 1899 

NO PORTO


Começo por apresentar fragmentos dum texto publicado por Ricardo Jorge a 20 de setembro de 1899.

A 4-7-1899 recebia eu um bilhete d'um negociante da rua de S. João, chamando a minha attenção para uns obitos que se tinham dado na rua da Fonte Taurina.
Mandei examinar á regedoria as certidões d'obito respectivas, que só tarde me costumam ser communicadas para o effeito estatistico; resavam ellas de molestias banaes. Apesar d'esta nocencia nosographica, mandei tomar informações no lugar por um empregado que voltou dizendo-me que tinham morrido pessoas e outras estavam doentes d'uma especie de febre com nascidas debaixo dos braços. Não se tratava pois da banalidade prevista, o que me resolveu a fazer uma visita pessoal á Fonte Taurina, onde com as informações colhidas e os doentes ainda presentes me convenci logo estar em frente d'um fóco epidemico de moléstia singular e nova. Caso anormal e grave, dei immediatamente conta do succedido ao snr. commissario geral de policia, como auctoridade sanitaria, ao snr. vereador do pelouro, como representante da administração municipal, e ao snr. director clinico do hospital para o internamento imediato e isolamento dos epidemiados.
Os serviços dependentes ou ligados á repartição de hygiene, como o da desinfecção e limpeza viaria, entraram sem demora em acção; e no dia seguinte acompanhava ao local o snr. inspector de policia Feijó e o sub-delegado de saude Joaquim de Mattos, sendo intimados os proprietarios e inquilinos ás beneficiações e limpezas das suas descuradas e imundas habitações, operações a que, diga-se de passagem, só procederam depois d'instancias repetidas.
A´ volta do fóco brotavam pouco e pouco casos suspeitissimos que me mantinham receioso, e não tardou o convencimento de que a peste avançava a passos lentos e espaçados, como é de seu uso e costume á primeira arremettida.
A 31-7 faziamos colheita fecunda, e dentro d'oito dias adquiria por mim a irrefragavel certeza de que tinha nos tubos de cultura isolado o puro e legitimo bacillo de Yersin. E d'essa convicção dei parte superiormente a 8-8. Submetti o achado ao meu companheiro e amigo Camara Pestana; devia-o á sua competencia magistral e á sua situação official á frente dos serviços bacteriologicos do paiz, A sua confirmação foi immediata.
As missões estrangeiras confirmaram totalmente, integralmente, tudo o que em materia de diagnostico e prognostico fora aventado pelo seu descobridor.


Por volta de 1840, eclodiu na província de Yunnan, na China uma epidemia de peste bubónica. Os navios propagaram-na pelo mundo. A Índia foi a região mais afetada, tendo sido ali registados, durante os doze anos seguintes, mais de dez milhões de mortos. A peste atingiu as Américas, a Oceania e continuou a viajar.
Ao chegar à Europa, o bacilo teria a virulência reduzida, ou ratos e homens teriam adquirido defesas contra o mal. Ocorreram surtos limitados em Glasgow, Paris, Marselha, Barcelona, Açores e Madeira, mas o Porto foi a primeira cidade europeia a ser afetada e também aquela em que a peste mais vidas ceifou: 132, em 320 casos oficialmente registados.
As observações registadas durante esta pandemia permitiram o desenvolvimento de progressos médicos significativos. Em 1894, em Hong Kong, Alexander Yersin identificou o bacilo da peste. Três anos depois, em Carachi, Paul-Louis Simond compreendeu o papel fundamental desempenhado pela pulga, como vetor de transmissão da doença dos ratos para os homens.


O Porto do final do século XIX era uma cidade de contrastes. Gabava-se de ser pioneira da iluminação a gás, da fotografia e do cinema e de ter introduzido na Península Ibérica o carro elétrico, mas as condições de vida da segunda cidade portuguesa eram deploráveis para as classes desfavorecidas. O sistema sanitário era rudimentar. Anos depois, em 1905, apenas 30 por cento dos arruamentos tinham esgotos. Perto de um terço da população vivia em “ilhas” de condições higiénicas lamentáveis. A cidade detinha uma das piores taxas de mortalidade das cidades europeias, com realce para a mortalidade infantil.
A crise deu a conhecer um homem de qualidades invulgares: o médico municipal Ricardo Jorge. Em julho de 1899, era o responsável dos Serviços de Saúde e Higiene da cidade e professor da cadeira de Higiene e Medicina Legal da Escola Médico-Cirúrgica do Porto. Acabaria quase crucificado na turbulência popular, jornalística e política desencadeada pelas medidas tomadas pelo governo central para combater a progressão da doença.
Houve autoridades médicas que sugeriram que a peste não era recente. Tratar-se-ia de uma exacerbação da endemia existente na cidade há mais de um ano, sem que o alarme fosse desencadeado ou fossem tomadas previdências adequadas. Esta questão foi usada como argumento contra a adequação do cerco sanitário.


Outra razão aduzida era não ter sido identificada a origem da peste. No entanto, a peste do Porto era bubónica, com as lesões facilmente visíveis.
Edmond Métin, baseado em conversas e entrevistas, considerou que a peste teria sido provavelmente trazida para o Porto, em 1897, por um navio de guerra português que viera de Macau e de Goa.
A resposta do nosso governo à ameaça à saúde nacional foi progressiva.
Proibiram-se as feiras e romarias. Os passageiros dos comboios que partiam do Porto eram obrigados a inspeção médica à partida e à chegada ao local de destino. As bagagens tinham de ser desinfetadas.
Seguiu-se a interdição do transporte ferroviário a partir do Porto.
Disse-se (e bem) que a proibição da saída de mercadorias por via-férrea só faria sentido se as viaturas de transporte de tração animal fossem também impedidas de ultrapassar os limites da cidade. O mesmo se aplicava ao transporte fluvial.  
O porto de Leixões esperou até 15 de agosto para ser declarado “escala marítima infetada”. Verificou-se ali a pressão da diplomacia francesa.  Ficou a suspeita de que o Brasil possa ter sido infetado a partir de embarcações saídas do Porto.
Pressionado pelos governos espanhol e francês, o ministério de José Luciano, apoiando-se no conselho da Junta Consultiva de Saúde Pública, decretou o cerco sanitário à segunda maior cidade portuguesa. Note-se que Portugal havia adotado essa medida, cinco anos antes, quanto a cólera grassara em Espanha.
Cerca de 2.500 soldados de infantaria e cavalaria montaram o cordão. Dificilmente poderiam impedir a passagem de ratos e pulgas.
O governo anunciou o cerco, mas levou dez dias a concretizá-lo.
Muitos dos portuenses que o podiam fazer abandonaram a cidade antes do bloqueio ser instaurado. Deslocaram-se por estrada, ou tomaram o comboio em estações não fiscalizadas. Não receavam apenas a peste: temiam a falta de alimentos e a agitação popular. Os jornais falaram em 20 e até em 40 mil habitantes saídos, mas esses números parecem exagerados.
Os jornais da cidade consideraram o cordão sanitário desproporcionado e ineficaz. Acusaram a capital de usar a peste como pretexto para combater a economia do Porto. Era a diabolização de Lisboa. A capital do ócio e do vício oprimia a capital do trabalho e da modéstia. Chegou a pedir-se a autonomia a norte do Mondego.Tratava-se duma agudização do complexo de segunda cidade do país. Edimburgo e Barcelona não teriam feito melhor. Os portuenses teriam, contudo, razão ao considerarem que as medidas governamentais procuravam mais conter a peste dentro da cidade do que extingui-la.
Os estabelecimentos comerciais do Porto encerraram, em sinal de luto. Muitas indústrias interromperam o funcionamento e despediram pessoal. A seguir à peste, veio a fome. 
O cordão sanitário acabaria por se manter quase até ao Natal, mas a peste persistiu no Porto, de forma endémica, até 1915.  
Na contestação, os periódicos recorreram a opiniões de médicos de opiniões contrárias às oficiais. O coronel médico Gomes da Silva, vindo de Macau, onde ajudara a combater a peste, foi uma das faces mais visíveis dos protestos. Note-se que a microbiologia era disciplina recente.
Ricardo Jorge foi apoiado pelas instituições médica nacionais e pelos especialistas estrangeiros que se deslocaram ao Porto. À parte do cordão sanitário, a que o higienista se opôs, as medidas tomadas eram corretas, para a época. Alertou as autoridades médicas e sanitárias e procurou a sua colaboração, antes mesmo de obter a confirmação bacteriológica da epidemia. Determinou o isolamento dos doentes (de início, no Hospital de Santo António) e fez desinfetar o pessoal que os transportava. 
   Pediu a encomenda, ao estrangeiro, de “soro antipestífero”. Conseguiu-o, numa escala até então inédita. De facto, uma parte da população do Porto serviu de cobaia para a experimentação de variados soros, alguns de ação desconhecida. Foi o próprio Ricardo Jorge, a 3 de setembro, a recomendar ao Governo Civil a regulamentação do seu uso. O Porto foi a primeira cidade do mundo em que foram usados em larga escala soros e vacinas para combater um surto de peste. Desconhecem-se os benefícios obtidos e os eventuais efeitos adversos.
O médico francês Albert Calmette, esteve no Porto por altura da epidemia. Relatou que “os portuenses fugiam à vacinação e escondiam os contagiados”. Seria mais tarde famoso pela sua contribuição para a criação do BCG (Bacile Calmette-Guérin).
Verificou-se que os ratos capturados nos armazéns da Ribeira estavam infetados pelo bacilo da peste. Ricardo Jorge recomendou o seu extermínio. Um mês após o seu aviso, a Junta de Saúde pôs as cabeças dos roedores a prémio: 120 réis por cada dúzia. Os cadáveres de ratos poluíram o Rio Douro e a pesca, na sua margem direita, teve de ser proibida.  
O povo do Porto sofreu com a peste e com o bloqueio sanitário. A dada altura, a fúria popular virou-se contra o médico que diagnosticara e procurara tratar a epidemia. A casa de Ricardo Jorge foi ameaçada e o clínico passou a ser acompanhado por uma escolta policial. As macas que transportavam os doentes do Hospital de Santo António para o Hospital do Bonfim, que recebera melhoramentos, seguiam à noite e variavam os trajetos. Ainda assim, os guardas do hospital eram apedrejados.
Já no seu declínio, a peste fez uma vítima ilustre: o bacteriologista Câmara Pestana perdeu a vida no cumprimento dos seus deveres profissionais. Foi contaminado, provavelmente no decorrer duma autópsia. Morreria em Lisboa, a 15 de novembro.


A atuação de Ricardo Jorge no diagnóstico da peste que assolou o Porto e no seu combate valeu-lhe a admiração de colegas, dentro e fora do país. No entanto, a contestação popular e os ataques da imprensa levaram-no a sair da cidade. Em outubro de 1899, o homem que iria dirigir a reforma sanitária em Portugal no começo do século XX foi nomeado Inspetor Geral de Saúde e transferido para Lisboa. Foi uma espécie de pontapé para cima.
Ricardo Jorge foi depois nomeado Professor de Higiene da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa. Em 1903 foi encarregado de organizar o instituto Central de Higiene, que hoje tem o seu nome.
O surto de peste manteve-se mais ou menos limitado ao centro do Porto. Não se registaram casos da doença em Gaia. O conjunto dos cemitérios do Porto registou 4.793 enterramentos em 1897, 4.829 em 1898, com uma subida, apesar de tudo, moderada em 1899: 5.398.
A contestação nortista, despoletada pela peste, ao governo de José Luciano teve consequências políticas. Em novembro de 1899, foram eleitos três deputados republicanos, entre os quais Afonso Costa. Chamaram-lhes “os deputados da peste”.

Bibliografia
Jorge, Ricardo. A Peste Bubónica no Porto – 1899 Seu Descobrimento – Primeiros Trabalhos. Repartição de Saúde e Hygiene da Camara do Porto, 1899.

Pontes, David. O cerco da peste no Porto Cidade, imprensa e saúde pública na crise sanitária de 1899. 2º Ciclo de Estudos em História Contemporânea. 2012.

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