Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

quinta-feira, 28 de abril de 2016


DEMÊNCIA E EUTANÁSIA*


                          Auto-retrato de William Utermohlen

A demência é uma coisa terrível. Se a história da tua vida estivesse escrita num quadro negro, seria como uma esponja que fosse apagando tudo, de baixo para cima. Esqueces primeiro o que comeste ao pequeno-almoço. Depois, não sabes o que fizeste ontem nem onde estiveste a semana passada. A seguir, não te lembras do sítio onde guardaste os óculos ou o telemóvel. Mais tarde, desaprendes de fazer coisas. Dar o nó dos atacadores dos sapatos, por exemplo, é um conjunto complexo de gestos que a aprendizagem automatizou. As pequenas tarefas de cada dia perdem esse automatismo e tornam-se enigmas – ia dizer puzzles – impossíveis de resolver. Dás conta de estar a perder qualidades e ficas deprimido. A progressão da doença é inexorável. Começas por desconhecer os teus netos e a seguir não sabes que tens filhos. A dada altura, nem a tua mulher reconheces. Lembro-me de uma senhora muito educada que, numa fase adiantada da doença, dizia respeitosamente ao marido: «Não percebo o que é que o senhor está a fazer na minha cama».
A perda da afetividade acompanha a deterioração da capacidade de raciocínio. Vai, tudo, piorando aos poucos. Às tantas, não amas ninguém, não conheces ninguém e não entendes nada do que se passa à tua volta. Ignoras-te a ti próprio. Deixaste de ter alma. Continuas apenas a sentir fome e sede e a experimentar dor. A dor perdura e tarda em sumir. É dos últimos indícios do «eu» a desaparecer.
Quem perde, de todo e de vez, a capacidade de sentir e de pensar, deve ser considerado morto. Terá direito a apagar-se, sem mais sofrimento e com um mínimo de dignidade. Trata-se de um gesto de piedade. Acho que se devem ajudar esses corpos que foram gente a deixar o mundo. Assim, não sofrem mais, não provocam sofrimento em ninguém e não dão trabalho nem despesa. Eu queria que me fizessem isso, se chegasse a esse ponto…


*Texto modificado do romance “Gerações”, por publicar.

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