Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

sábado, 11 de junho de 2016


   O PAPIRO DE EDWIN SMITH


O nome deste documento provém do negociante de antiguidades que o adquiriu em Luxor.
O papiro data de cerca de 1.500 anos a.c. e está exposto na Academia de Medicina de Nova York. É um rolo de quase cinco metros de comprimento por 33 cm de altura e parece incompleto. Trata de feridas de guerra. Ocupa-se mais das lesões da cabeça e pescoço, embora descreva vários ferimentos dos membros superiores, um tumor da mama e uma lesão da coluna vertebral.
Há quem alvitre que o papiro é da autoria de um cirurgião militar, o que é contraditado por outros. Kamel Hussein, citado por Fisher e Swan, afirma que, durante a quarta dinastia os egípcios eram um povo pacífico e dedicado às grandes construções. O médico responsável pelo papiro teria adquirido uma grande experiência no tratamento de lesões provocadas por quedas de alturas consideráveis. Contra ele, opino eu: seria de esperar que das quedas resultassem principalmente lesões dos membros inferiores. Ora, o autor do papiro demonstra essencialmente experiência em ferimentos causados por instrumentos actuantes de cima para baixo, com maior incidência na cabeça, no pescoço e nos ombros, como seriam mocas, ou maças de armas. Hussein não tem razão.


No texto, são referidas a anatomia, os resultados da observação, o diagnóstico, o prognóstico e o tratamento. São descritas, pela primeira vez na História de Medicina, as suturas cranianas, as meninges, a superfície exterior do cérebro com as suas pulsações e o líquido cefalo-raquidiano. Há referências ao coração, ao fígado, ao baço, aos rins, aos ureteres e à bexiga. É dada atenção à palpação do pulso. Os autores sugerem que os vasos sanguíneos tinham origem no coração.
Os tratamentos propostos assentam em bases racionais. Recorre-se, num único caso, a remédios mágicos.
O papiro de Edwin Smith é um documento de uma importância extraordinária. Pela primeira vez na história, é dada prioridade à observação dos doentes e à anatomia, pondo de lado as concepções magico-religiosas que impregnam o papiro de Ebers, a que se atribuiu uma datação ligeiramente mais recente. Há quem defenda a ideia de que a medicina egípcia influenciou a grega, podendo estar na origem das conceções de Hipócrates.
Que objetivos perseguiriam os autores do papiro de Smith e os seus copistas? Há quem pense que era um manual destinado a facilitar a atividade cirúrgica prática. Outros sugerem que se tratava de um instumento didático, pensado para apoiar o estudo dos alunos de cirurgia.


Nesta espécie de compêndio, surgem pela primeira vez termos comuns na linguagem médica, como “cérebro”, “fratura” e “convulsão”. Sugere-se o retorno sanguíneo ao coração e fala-se do sistema nervoso e da importância da espinal medula nos movimentos dos membros. 
Os casos clínicos são descritos de forma sistemática. Referem, essencialmente, situações cirúrgicas. Incluem o título, o resultado do exame, o diagnóstico, o tratamento e explicações sobre os termos obscuros utilizados.
O título é mais do que isso. Engloba a palavra “instruções” e descreve a lesão e a região ou o órgão atingido.
Ao tratar do exame, o médico que escreve dirige-se a uma segunda pessoa: “se examinar um homem afligido por… deve colocar as suas mãos sobre…” As descrições da observação dos doentes permitem concluir que os médicos egípcios da época recorriam à anamnese, à observação visual, à palpação, à avaliação dos movimentos da parte do corpo afetada e ao olfato.
O diagnóstico repete o título e acrescenta-lhe a atitude que o médico deve tomar, face à situação exposta. Ou a trata, ou a procurara conter, ou não a deve tentar tratar. Por exemplo: “O caso de alguém que tem uma ferida aberta na cabeça, penetrando o osso e deformando o seu crânio, e que apresenta rigidez do pescoço, será uma doença que não devo tratar".
É notável a primeira referência na História da Medicina à rigidez da nuca como parte do síndromo meníngeo.
O tratamento não é sempre aconselhado. Não é proposto em 16 dos 48 casos discutidos.
As propostas terapêuticas são de três tipos. Em três casos, foi aconselhada a contenção mecânica ou a a sutura e a cauterização (novidade absoluta na literatura médica). Em 20 casos, ao tratamento cirúrgico foi adicionada a prescrição medicamentosa. Em 19 outras situações, foram aconselhados unicamente medicamentos.
A duração do tratamento foi também objeto de análise, sendo dados conselhos pertinentes.
O glossário é outra novidade. Identificam-se termos de uso exclusivamente clínico, sem correspondência na linguagem comum.
A título de exemplo, registo aqui dois casos da coletânea.

Caso 31. Título: instruções respeitantes à luxação de uma vértebra cervical.
Exame: observa-se um homem que tem uma deslocação de uma vértebra do pescoço e se encontra insconsciente dos seus dois braços, das suas duas pernas e deixa escapar urina pelo membro sem dar por isso; a sua carne recebeu vento, os seus dois olhos estão muito vermelhos; trata-se duma deslocação duma vértebra do pescoço… ...No entanto, se é a vértebra média do pescoço que está deslocada, há uma emissão de sémen pelo pénis.
Diagnóstico: deverá dizer-se a respeito dele que se trata de alguém que tem uma deslocação de uma vértebra do pescoço, que está inconsciente das suas duas pernas e dos seus dois braços e que a sua urina escorre. É uma lesão que se não deve tratar.

Caso 45. Um homem apresentava um tumor volumoso no peito. A mão colocada nesse peito encontra o tumor frio, sem líquidos nem secreções. Diagnóstico: alguém que tem tumores volumosos, uma doença que devo conter. Tratamento: não há tratamento.

Em jeito de conclusão, pode dizer-se que os cirurgiões cujo saber esteve na origem do papiro de Edwin Smith precederam as ideias de Hipócrates no que concerne ao cuidado na observação, à formulação de uma verdadeira história clínica, ao prognóstico e à procura de métodos racionais de tratamento, com rejeição das práticas mágicas correntes na época. Os casos escolhidos são emblemáticos e refletem uma extensa experiência cirúrgica e um pensamento clínico sistematizado.  
Para as condições da época, o papiro de Edwin Smith foi um documento médico revolucionário.

Bibliografia
Espinosa, J. A. Una rareza bibliográfica universal: el papiro médico de Edwin Smith. ACIMED 03 2002, Sección Histórica.
Fisher, R, Shaw, Patrícia. El papiro quirúrgico de Edwin Smith. Anales Médicos vol.50, Núm.1 Ene-Mar. 2005. (recolhido na Internet)

Vargas, A, López, M, Lillo, C, Vargas, Mª J. El papiro de Edwin Smith y su transcendência médica e odontológica. Rev. Med. Chile vol.140 nº 10 Santiago, oct. 2012

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