Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

sábado, 5 de novembro de 2016



QUEBRANTO


O “quebranto”, ou “olhado” é uma entidade mais fácil de delimitar que o “ar”, a “espinhela caída” ou o “cobrão” e tem como única etiologia conhecida o mau-olhado, motivado geralmente por sentimentos de inveja.
Segundo o Dicionário de Bluteau, escolhido por ter sido publicado durante o período de vigência do estudo de José Paiva e também pela sua riqueza descritiva, olhado, quebranto e fascinação são três nomes que significam o mesmo. Olhado denota a causa, quebranto denota o efeito e fascinação significa uma e outra coisa… Entre os muitos sintomas que causa, é notável o quebrantamento, pouco vigor e grande lassidão de todo o corpo, donde nascem grandes desejos de estar deitado, suspiros longos, bocejos muitos, apertos do coração, aborrecimento a todo o comer, as cores do rosto mudadas, a cabeça descaída, o rosto triste…
O conjunto dos sintomas configura um estado depressivo. Para o tratamento, ouçamos dois relatos de José Pedro Paiva.
Martinho Afonso, de Anobra, mais tarde preso pelo Santo Ofício, curava o quebranto proferindo as palavras seguintes: Eu te benzo em nome de Deus, em nome de Jesus, a hora em que Deus nasceu, meu Senhor Jesus Cristo, eu ponho minhas mãos vós ponde Vossa Divina virtude, Santa Eusébia pariu Santa Ana, Santa Ana pariu a Virgem, a Virgem pariu Jesus Cristo, assim como estas palavras são santas verdades, assim vós meu Senhor Jesus Cristo, este mal, este olho, este quebranto seja fora do corpo e das ilhargas e de todos os membros deste pecador. Em seguida rezava três Padres-nossos e idêntico número de Ave Marias em honra da Santíssima Trindade, com o que, segundo ele, melhoravam os enfermos.
Maria Antunes, viúva, de trinta e três anos, moradora no Pedrógão Grande tomava sete brasas que fizera das palhas duma vassoura com que varria a casa e as lançava numa tigela com água, dizendo: dois to deram, três to tiraram e ia lançando as brasas até fazer o dito número; rezava cinco Padre-nossos e cinco Ave Marias em louvor das chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo e dava a beber ao doente três golos da água da tigela e depois disso lhe dava três voltas ao redor da cabeça e tomava a dita água e a lançava para trás do lume.
José Pedro Paiva comenta o significado simbólico desta prática. Dois olhos foram os que deram o quebranto e três as pessoas da Santíssima Trindade que os tiraram; a vassoura é um instrumento de poder sagrado, na medida em que serve para limpar; as cinzas transportam o valor residual deste caráter sagrado; a água tem um caráter purificador e regenerador; os círculos em volta da cabeça visavam preservar o corpo dos malefícios do olhado e o ritual de lançar a água para um local por onde se não passasse simbolizava a retenção dos poderes maléficos no instrumento de cura, que deveria ser colocado num local inacessível, para que o mal se não repetisse.
Na Internet, encontram-se inúmeros artigos sobre o quebranto e os modos de o combater. São descritos métodos de confirmar o diagnóstico, sobretudo em crianças, em que a semiologia é mais pobre. Eu assisti a um, em Coimbra, há cinquenta anos. Os que são repetidamente descritos na Net são semelhantes ao que presenciei. Deita-se água num prato e deixam-se depois escorrer cinco pingos de azeite. Se o azeite se juntar numa só bolha, estará tudo bem. Se o azeite continuar separado, há quebranto e deve ser tratado.
Na terapêutica e prevenção, para além das rezas, recorre-se ao uso de amuletos conhecidos, como as figas, as patas de coelho, os olhos turcos e as ferraduras. Há quem coloque determinados cristais nos aposentos. Nos rituais de tratamento entram muitas vezes os ramos de arruda e de rosmaninho.
Curiosamente, para quem acredita nele, o olhado não atinge apenas humanos. Animais que perdem a vivacidade e esmorecem e plantas que murcham sem causa aparente podem também ser vítimas do malefício.

Fontes:
Bluteau, Raphael. Vocabulario português e latino. Coimbra, Colégio das Artes da companhia de Jesus, 1712 – 1728.
José Pedro Paiva. Práticas e crenças mágicas. O medo e a necessidade dos mágicos na Diocese de Coimbra (1650 – 1740). Minerva Histórica, Coimbra, 1992.

Internet.

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