Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

quarta-feira, 9 de novembro de 2016


HOSPITAIS -BARRACA



A Anestesia propriamente dita não foi a única preocupação do historiador médico Joaquim Figueiredo Lima. Obviamente, a Anestesia não se desenvolveu de forma isolada e esteve ligada, desde o início, à Cirurgia, à Obstetrícia e, também, à Estomatologia. As condições em que os doentes eram anestesiados e operados e, por conseguinte, a assepsia, a antissepsia e a conceção das edificações hospitalares representam uma preocupação constante do autor, expressa num número significativo das páginas do seu livro.
Como foi dito anteriormente, o trabalho de Figueiredo Lima assenta nas Teses de Dissertação Inaugural de alunos finalistas das Escolas Médico-Cirúrgicas de Lisboa e do Porto, no final do sec. XIX e no início do sec. XX.
Em 1867, José Victorino de Sousa Albuquerque dissertou sobre as condições higiénicas do Hospital de Santo António do Porto, com relação às operações de grande cirurgia. Afirmou, a dada altura:
As bases sobre as quais devem assentar a forma dos hospitais encontram-se nas seguintes palavras de Trelat: «É preciso que tudo esteja disposto para a livre e abundante circulação de ar; que os ventos varram as superfícies de construção, que não encontrem nem ângulos nem partes reentrantes, e que o sol possa penetrar na totalidade das salas espaçosas e completamente separadas umas das outras, para não constituírem focos de infeção recíproca.
Albuquerque escreve, mais adiante, referindo-se à enfermaria: «A ventilação lá é impossível, porque, abertas as janelas que comunicam com a arcaria, o ar pode entrar, mas não tem por onde estabelecer corrente, por não haver em nenhuma das paredes opostas abertura para a sua saída. Em frente da entrada para esta enfermaria está o quarto chamado de operações, apenas separado daquela por uma pequena casa escura e imunda onde estão as latrinas, que muitas vezes lançam para a enfermaria um cheiro insuportável.
Mais à frente, José Albuquerque resume os resultados das más condições cirúrgicas: «Das amputações da coxa não nos consta que uma só tenha vingado, sendo tal o receio destes resultados que só se praticam tais operações quando a inevitabilidade da morte é reconhecida não se operando».
Dez anos mais tarde (em 1877) José Dias de Almeida Júnior, que viria a ser cirurgião, pediatra, Lente da Escola Médico-Cirúrgica e Diretor do Hospital de Santo António, volta a sublinhar a questão do arejamento e critica duramente as condições higiénicas do hospital: «Pelo que diz respeito ao sistema de despejos, nós já aludimos a ele em algumas partes; para provar as suas más condições basta dizer que, no centro de cada uma das novas enfermarias de mulheres, há uma latrina, onde a limpeza não pode ser bem mantida, porque lhe falta a grande abundância de água que seria necessária; que não há a desinfeção tão aconselhada hoje e que tão bons resultados tem dado».
No espaço de tempo mediado entre as teses de Sousa Albuquerque e de Almeida Júnior acontecera, nos Estados Unidos da América, a Guerra da Secessão. Tornara-se necessário tratar os feridos na proximidade dos campos de batalha. Para os abrigar, montavam-se, lado a lado, pequenas barracas de madeira. Verificaram-se reduções surpreendentes nas taxas de mortalidade e morbilidade, em comparação com registadas nos hospitais tradicionais.
Por indicação de Virchow, o projeto foi recuperado durante a guerra franco-prussiana (1870-1971) e os resultados voltaram a ser animadores. Em 1871, o Correio Médico de Lisboa propôs a construção de hospitais barracas para prevenir as infeções hospitalares. A ideia foi apresentada, no mesmo ano, à Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa.
José de Almeida Júnior, na terceira parte da sua tese, defendeu a construção de hospitais barracas para a prática de cirurgia. Escreveu:
Os hospitais barracas fizeram a sua prova como hospitais de guerra; como hospitais civis a sua carreira não tem sido menos brilhante.
A separação, o espalhamento dos doentes é o único meio de evitar os efeitos perniciosas da acumulação.
Constituídos por pavilhões isolados, cada um com a sua atmosfera própria, suficientemente separados entre eles, colocam os doentes em ótimas condições. Podem-se multiplicar os pavilhões que se não altera significativamente a salubridade do conjunto.
A ideia da dispersão das construções hospitalares, compostas por diversos pavilhões em lugar duma construção monolítica vingou, durante algum tempo. O exemplo dessa conceção vê-se ainda hoje, em Lisboa, no Hospital que tem o nome de Curry Cabral e foi construído entre 1902 e 1904.

                          Hospital de Curry Cabral

Mais tarde, o progresso da engenharia de construção hospitalar iria permitir melhorar as condições de higiene dos edifícios e os grandes hospitais de Lisboa, Porto e Coimbra foram sendo inaugurados entre 1953 e 1987. 

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