Histórias da Medicina Portuguesa

No termo de uma vida de trabalho, todos temos histórias a contar. Vamos também aprendendo a ler a História de um modo pessoal. Este blogue pretende viver um pouco da minha experiência e muito dos nomes grandes que todos conhecemos. Nos pequenos textos que apresento, a investigação é superficial e as generalizações poderão ser todas discutidas. A ambição é limitada. Pretendo apenas entreter colegas despreocupados e (quem sabe?) despertar o interesse pela pesquisa mais aprofundada das questões que afloro.
Espero não estar a dar início a um projecto unipessoal. As portas de Histórias da Medicina estão abertas a todos os colegas que queiram colaborar com críticas, comentários ou artigos, venham eles da vivência de cada um ou das reflexões sobre as leituras que fizeram.

quinta-feira, 4 de março de 2010

HISTORINHAS DA MEDICINA


Em 1968, eu morava em Coimbra, no Beco da Carqueja. A colina que descia da Universidade para o Arco de Almedina desnivelava a casa. As janelas da frente eram de um primeiro andar baixo e as detrás de um terceiro elevado.

Do lado da entrada, viam-se e ouviam-se bem as serenatas da Sé Velha, sem ser preciso ir até ao Largo, que distava uma vintena de passos. As traseiras davam para a Rua do Correio. No rés-do-chão havia uma mercearia modesta. Às vezes, descíamos um cestinho atado por um cordel e fazíamos subir, para o lanche, uma garrafa de cerveja cheia de uma mistura de vinho branco e licor de caramelo, a que os da zona chamavam "velhinha".

O sr. Daniel, pai do dono da mercearia, era velho e muito doente. Naquele tempo, eu frequentava o estágio que completava o Curso. Como a família não tinha posses para chamar repetidas vezes um médico respeitável, recorriam aos meus serviços. Não seriam muito competentes, mas eram gratuitos.

Não sendo licenciado, achava que não me ficava bem, e que podia até ser perigoso, deixar morrer um doente entregue aos meus cuidados. Assim que o sr. Daniel piorava, eu mandava-o internar no Hospital da Universidade, que era ali bem perto.

A falta de vagas já se fazia sentir naquele tempo e, logo que o meu doente mostrava algum sinal de recuperação, era reexportado para o domicílio. O sr. Daniel (o nome verdadeiro não era esse), foi bola de uma espécie de jogo de ping pong travado durante meses entre mim e os H.U.C.

Numa sexta-feira à tarde, chamaram-me outra vez a casa dele. O homem estava mal. Aconselhei, uma vez mais, o seu internamento.

Segunda-feira, voltaram a chamar-me. Lá fui. O sr. Daniel continuava em situação delicada, mas foi capaz de acender uma luzinha no olhar quando me viu.

- Sr. doutor! Ela saltou-me por cima!

- Como?

- A morte! Pulou de uma cama para a outra! Acho que ainda lhe vi o rastro...

- Vá lá, sr. Daniel! A situação não é assim tão má...

O doente estava tranquilo.

- O sr. doutor esforça-se por sorrir, mas eu não sou tonto. Conheço o estado em que me encontro e agradeço os seus cuidados e o seu esforço. Mas ouça-me, que vale a pena contar-lhe o que aconteceu... Eu estava na cama 3. Sábado de manhã, morreu o doente da cama 1. Na mesma noite, apagou-se o desgraçado da cama 2. Ontem, pouco antes do meio-dia, foi a vez do da cama 4 deixar de respirar.
Ela saltou por cima de mim! Levantei-me como pude, pedi as minhas coisas e exigi alta. O enfermeiro era novo e não me quis deixar sair sem autorização do médico, mas não havia nenhum disponível. Disse-lhe que não estava preso e que assumia todas as responsabilidades. Vim e aqui estou. Sei lá se Ela não ia dar pela minha falta e voltar atrás...

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